Um dos maiores orgulhos
que tive em minha atividade de organizador de livros foi a de propiciar ao
leitor brasileiro um mínimo convívio com a poesia deste excelente poeta
português que é Armando Silva Carvalho (1938). Refiro-me a Armas brancas e outros poemas, que em 2006 organizei e prefaciei
para a coleção Ponte Velha, da Escrituras Editora, coleção então sob a minha
coordenação geral. O livro trazia na capa uma obra de Ivald Granato e
reproduzia em seu interior nada menos do que 30 obras deste imenso artista,
fruto de sua generosidade, de sua doação completa, de sua cumplicidade sempre
renovada. Assustei-me há pouco com a notícia de sua morte. Dias antes havíamos
nos falado, por ocasião de meu aniversário. Conheci Ivald Granato graças a
Jacob Klintowitz, no momento em que este acabara de publicar Gesture and art, delicioso volume com
350 páginas de estudos e reproduções de obras do próprio Granato. Neste mesmo
ano o tivemos como artista convidado da edição # 50 da primeira fase da Agulha Revista de Cultura, acompanhado
de um ensaio de Klintowitz. E em seguida o suplemento DC Ilustrado, do Diário de
Cuiabá, publicou uma entrevista que lhe fiz. Sempre tive uma declarada
antipatia por homenagens a defuntos recentes, gesto que em geral sempre me
parece expressar um indiscreto charme do oportunismo. Raramente abro alguma
exceção, e aqui está um desses exemplos incomuns, posto que reproduzimos a
entrevista acima referida, como forma de reconhecimento pela grandeza da obra
de Ivald Granato (1949-2016). Abraxas
Ivald Granato é o melhor artista que o mundo pop deu ao Brasil. Evidente que para ele não importa essa condição de “o melhor”, tanto quanto importa ao pop. Granato recorreu a todos os truques do mundo pop e por suas veias conduziu a primazia de uma pintura que soube rapidamente ir além do pop. O artista não comporta comparações entre os grandes nomes do pop em todo o mundo, pois cada um de seus artistas é fruto de uma sociologia distinta. Importa saber que Ivald Granato deixou longe, minúsculo, quase invisível no retrovisor, o restante do mundo pop no Brasil. Com a intrigante performance de seus pincéis, infinitamente além do bailado gestual dos truques de palco e do circo autopromocional do mundo pop, a pintura de Granato hoje constitui uma obra refinada e de intensa consistência estética. No Brasil da Discoteca do Chacrinha, a pintura de Ivald Granato é uma avis rara, em todos os sentidos. Este diálogo com o artista reflete sua sinceridade. É uma breve partitura incendiária para os leitores do DC Ilustrado.
FM | Em meio a todos esses personagens que saltam frenéticos da ponta de
teu pincel, como se invadissem o salão de uma gafieira, e que ali se mesclam a
tantos outros encarnados pelo próprio pintor, talvez não esteja de mais indagar
quem é Ivald Granato. Ou melhor: qual Ivald Granato se sobressai em meio a
todos eles?
IG | Sempre fui plural, gosto da diversificação, o lado simples da vida e
meio sem graça. O fato de variar é dinâmico e fica sempre atuante colaborar com
o processo de viver.
IG | Sim, tenho um pouco de muitos, mas tenho muito de poucos.
FM | Recordo uma exposição tua, Dorsaymomaqui (1994), que a imprensa
abordava como sendo uma evocação de outros artistas, como Picasso ou Gauguin.
Já o Jacob Klintowitz, em ensaio com que abre livro dedicado a ti, observa que
a tua maneira “de construir a figura, através das relações dos volumes internos,
tem o seu exemplo máximo na obra emblemática de Paul Cézanne”. Há algum
destaque, não necessariamente na pintura, alguém em particular que tenha
importância essencial para ti, alguém que talvez até aqui a crítica nem tenha
percebido, em parte por limitar a vida de um pintor ao universo da pintura?
IG | Dorsaymomaqui foi extremamente experimental e ambicioso, pois fazer
um relato da história da arte sem sobrepor a fotografia na base do olhar foi
excitante, forte e desafiador. Achei essa experiência formidável, deitei e
rolei, foi compulsivo e muito alto astral. Não foi a primeira vez que fiz
coisas assim nas pastas, pintei retratos e estilos de todos, foi muito rica
essa forma de trabalho.
FM | Então o Granato não se reconhece na pintura de alguém? Não digo
necessariamente uma influência, porém uma afinidade. Isto me interessa mais.
IG | Com certeza tenho afinidades: Rembrant = Picasso = Lautrec = Cézanne
= Matisse = Bacon = Basilit = Granato.
FM | Exposições, fases, detalhes de traços, vultos, cores – por detrás do
estilo em si, seus truques, jogos de aparência, evoluções, qual obsessão
permanece ao longo desses anos todos de pintura?
IG | Organização-desenho-pintura-performance-liberdade e independência.
FM | Gêneros artísticos – a performance, por exemplo – se desgastam com o
tempo ou com o excesso de sua utilização, sua banalização?
IG | A performance, das tendências dos últimos quarenta anos, foi a que
mais se renovou e correu paralelo à pintura. Desgastante foi o conceito de
instalação e a apropriação de obras sem participação do artista, estes sim, são
conceitos que ficaram banais.
FM | Um dos riscos da ruptura com o mito é o de criar, com essa ruptura, a
figura de um novo mito. Granato rompe com o mito da arte pop, por exemplo, mas
com isto evoca um mito Granato. Sinuca de bico sempre?
IG | Sempre convivi com a ruptura. Não me atrai o estático. Ruptura é
processo de vida. Não o que fazem na arte, essa de romper e depois ficar
fazendo o que chamou de ruptura anos e anos.
FM | Performance, arte gestual, expressionismo, no fundo sempre me pareceu
que o Granato tem em mãos uma guitarra elétrica disfarçada de pincel, que és em
essência um roqueiro, sem que isto signifique uma frustração, mas antes um
deslocamento de retina (inclusive a do observador), como quem tem a alma em um
ambiente e o corpo em outro, não por estar perdido de si, mas antes, como
estratégia ou golpe ilusionista. Acerto?
IG | Sempre gostei de música. Na minha infância a minha irmã tocava piano
e meu irmão bateria. Sempre fui amigo da música, porém tudo o que se refere ao
material de produção para expressar arte, como pincel, tintas, lápis, canetas,
papel, tudo isso sempre foi a minha maior paixão.
FM | Aqui eu pensava muito em uma frase do Jacob Klintowitz, ao dizer que
“o caminho brasileiro em direção a uma cultura de massa tem na sua obra uma
linha de tempo que pode servir de paradigma”. Até poderia referir-me àquele teu
encontro com o Ron Wood, por exemplo, onde os pincéis mais pareciam duas
guitarras, emblemáticos da cultura pop.
IG | Sim, foi uma atividade supernova e grandiosa, o Ron Wood é
fantástico. Ele também fez Belas Artes.
FM | Diante da máxima aceita por muitos de que o artista é fruto de seu
tempo, cabe indagar: onde está o artista hoje?
IG | O conceito abriu uma grande janela na arte, o que foi muito saudável
nos últimos tempos. Depois resolveram trocar o glamour, a criatividade e a
sabedoria pela punheta, todos querem ser paquerados como se fossem uma mocinha
com 17 anos.
FM | Diante disto o que sobra atualmente como arte?
IG | A arte continua Bela: Sofisticada: Desafiadora. O meio é que ficou
lamentável.
FM | Já em 1979 observavas, acerca dos críticos de arte no Brasil, que “na
maioria quase total só sabem falar sobre bom e ruim, sem capacidade de análise,
mostrando uma imaturidade e uma sensação de pouca evolução”. Desde então decaiu
muito o ambiente jornalístico, alcançando uma alta voltagem de superficialidade
na leitura dos acontecimentos culturais do país. A crítica de artes seguiu a
mesma trilha ou acaso algo em especial te surpreende nos últimos tempos?
IG | A crítica sumiu, foi decapitada, a superficialidade ficou clara e
nasceu a Curadoria, que não exerce o seu papel, nasceu um tipo cínico-obediente
repleto de trapaças. O jornalismo da arte não caiu: despencou. Alguns críticos
que estudam e sabem observar não têm espaço. A surpresa e a falsidade
ideológica estão sempre presentes.
FM | Como está o gás existencial, querido? O que o Ivald Granato ainda
espera de si mesmo?
IG | Acredito nas mudanças. Como tudo mudou muitas vezes não tem como não
mudar novamente. Estou convicto que fazer arte livre ainda é espetacular.
FM | Esquecemos algo?
IG | Creio que falamos o essencial. Estou à disposição.
Página ilustrada com obras de Ivald Granato (Brasil, 1949-2016).
*****
Agulha Revista de
Cultura
Fase II | Número 19 |
Agosto de 2016
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente |
MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO
MARTINS
revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS
os artigos assinados não
refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se
responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
Nenhum comentário:
Postar um comentário