Na madruga de hoje, dia 3 de julho de
2016, morreu o pintor Ivald Granato que foi meu fraterno amigo durante os
últimos 49 anos. Talvez seja uma boa hora de dizer que a arte e o artista podem
ser sagrados.
Ivald
Granato foi um artista que se impregnou e sofregamente sorveu o néctar da
criação até o derradeiro momento. Há coisas que só podem ser expressas se bem
expressas, como nos disse Thomas Mann. Por dois motivos é justo citá-lo,
primeiro porque o título deste texto é derivado da comovente novela de Mann, A morte em Veneza. E, o segundo, é que
Granato fez cada obra e cada intervenção, a cada vez, com imenso domínio
expressivo e sempre como se fosse o clímax da sua vida.
Eu também
pensei num outro título para este texto, um que resumisse o percurso deste
artista tão inovador e nem sempre percebido na sua totalidade no seu amado
Brasil. Trata-se de epigrama do velho mestre vienense Karl Kraus:
Procura-se deserto apropriado para uma miragem.
Ivald
Granato foi um transformador, um artista alquimista de acordo com a lenda sobre
a alquimia como transmutação da matéria, um homem que altera a natureza das
coisas agindo sobre elas para encontrar a sua substância essencial e torná-las
diferentes e, na verdade, torná-las idênticas a si mesmo, mas com uma aparência
outra. Ele transmuta a matéria para torná-la igual a si mesmo. Sobre a capa da
alteração permanente, ele refaz a herança cultural e anímica para, finalmente,
após ferver infinitamente no seu athanor, a ter em si mesmo, a essência da
mesma verdade, mas sob a aparência da atualidade.
Transformar,
alterar, refazer para, ao final, ser igual a si mesmo. Transformar para refazer
e obter a forma essencial, original, igual a si mesmo e desta vez, à sua
própria natureza paradigmática.
No seu
percurso, o artista Ivald Granato teve decidida participação social, seja na
organização de eventos coletivos, performances, curadoria de exposições
temáticas, criação de obras gráficas. O seu processo criativo teve este
intercâmbio permanente com o exterior, com outras personalidades criativas, com
os assuntos culturais, com os eventos temporários, com os artistas e técnicos
de suporte e parceria criativa como os mestres impressores, fotógrafos, editores
de imagem. Granato se alimentou deste intercurso e, por sua vez, alimentou o
circuito. Poucos artistas brasileiros foram tão dotados para esta experiência
coletiva da arte para todos e como inclusão do que Ivald Granato.
O poeta
Guillaume Apollinaire, de tanta importância no entendimento e iluminação da arte
contemporânea, o defensor do cubismo, no seu belíssimo livro: Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée,
ilustrado por Raoul Dufy, tem um poema que define bem este ser de comunicação
permanente, que era também o seu próprio caso.
Je souhaite
dans ma Maison:
Une femme ayant
sa raison,
Um chat passant parmi les livres,
Des amis em toute
saison
Sans lesquels je ne
peux pas vivre.
Na minha
tradução livre:
O Gato
Eu quero na minha casa:
Uma mulher com a sua sabedoria,
Um gato passando entre os livros,
Os amigos em todos os momentos
Sem os quais eu não posso viver.
Os
amigos, em todos os momentos, sem os quais eu não posso viver: Ivald Granato.
Trata-se
de um artista símbolo da vanguarda brasileira, um dos criadores da performance
no país e atuante na criação de eventos simbólicos como a mostra paralela
“Mitos Vadios”, feita de performances, obras perecíveis, discursos,
instalações, declarações, cenas teatrais, em contraposição ao tema da Bienal
“Mitos e Magia”.
Aqui, em
minha opinião, o artista não se contrapunha ao tema ou à ideia da existência da
mitologia e sua importância na estruturação da arte e nem à convicção de que os
mitos possam pertencer à estrutura psíquica permanente do ser humano e ser
estruturante da sua psiquê. E nem mesmo ele se opunha à discussão da magia,
tomada neste contexto como uma recorrência à arte totêmica e também ao
xamanismo. Talvez Ivald Granato também não negasse a Bienal Internacional de
São Paulo. Eu acho que Granato, mais uma vez, queria simplesmente chamar a
atenção para o ato cotidiano da criação artística, para a existência de um
trabalho diário e no qual o talento é alicerçado no duro exercício.
Há,
igualmente, a empatia de Granato com os artistas, em geral, o seu inconformismo
tribal com aqueles que estão marginalizados de eventos, certames, espaços
públicos, museus e do circuito da arte. Muito de suas ações públicas têm como
substrato o seu impulso pela integração das partes.
Acredito
que Granato não perderia a sua ideia, a própria piada do título, “Mitos
Vadios”, por nada deste mundo. E, como uma constante que observei neste artista,
ele simplesmente gostou de fazer uma oposição em forma de acréscimo, um
comentário bem humorado ao título e brincar com as palavras. Granato é um
artista que aparentou desprezo pela palavra e pelo discurso verbal e, foi
comum, expressar-se de maneira onomatopeica, como se fosse personagem de
história em quadrinhos. O que eu já apelidei de “idioma granatês”. E, no
entanto, ele amou o jogo de palavras. Talvez, na verdade, o que incomodava o
artista, fosse a palavra utilizada artificialmente, sem o seu peso etimológico,
com snobismo, como uma máscara, esconderijo da superficialidade e da cultura de
aparências.
Também
podemos aceitar que Oscar Wilde tem razão quando nos diz “Aos olhos de quem leu
a História, a desobediência é a virtude original do homem. A desobediência
permitiu o progresso – a desobediência e a rebelião.”.
Granato
foi pintor, gravador, performático, escultor. Como alguns outros artistas no
mundo inteiro, Ivald Granato organizou mostras de arte, promoveu atividades
coletivas, intercâmbios internacionais, e, à sua maneira, gerou energia e
reflexão no meio cultural. Artista de natureza expressionista, a sua obra é
dotada de grande dinamismo e de um marcado desenho de alta intensidade.
A
aparência costuma ser a máscara que oculta o real. E, paradoxalmente, no oculto
pode estar a revelação. O que se oculta indicia a realidade.
Ivald Granato é o aparentemente anárquico
mestre da história da arte.
E pode
ser dito dele, numa paráfrase do que Virginia Woolf escreveu sobre Katherine
Mansfield, que Ivald Granato é um pintor. Um pintor nato. Tudo o que sente,
ouve ou vê não é fragmentado nem descartado; pertence ao conjunto de sua
escritura, de sua arte.
Todo
artista nato, para continuarmos com a expressão da Virginia Woolf, tem
convicção absoluta de sua linguagem, pois ela é a expressão máxima, e, talvez,
a expressão total, do seu ser. É uma verdade absoluta que nada pode mudar,
independente de ser aceita e acolhida, ou não, pelo universo social.
Vocação é
destino. Mesmo que vocação signifique “chamamento”, e nada possa ser mais
contundente que a sua raiz latina, hoje nos meios de comunicação a preferência
é por “talento”, mais fraco, menos preciso e sem o compromisso pessoal que a
vocação exige. Ivald Granato foi um artista nato, acreditou de maneira absoluta
na sua linguagem que expressou a totalidade do seu ser e teve certeza de que a
linguagem forma o ser.
O
extraordinário escritor G. B. Shaw utilizou este enigma, o da linguagem como
formadora do ser, para escrever a sua peça mais famosa, Pigmalião. Nela está dito com absoluta clareza (evidentemente na
clara tradução do Millôr Fernandes): “O domínio da linguagem faz mudar a vida…”
Shaw também era um artista nato.
Penso que
cabe uma observação: na verdade, a principal parte deste relato é feita de minhas
observações sobre a atitude pessoal do artista e do seu desempenho. É a marca
do meu convívio.
E para
continuar no mesmo ritmo epigramático, é melhor voltar a citar Oscar Wilde. A
escolha deste irlandês genial deve-se, além do brilho das suas frases, ao fato
de que era um escritor profundo que fingia ser frívolo. O uso das máscaras como disfarces,
ocultamentos e revelações é substrato permanente neste relato. Não só o artista
e a sua aparência, como o mundo social e as suas máscaras como verdades
aparentes que levam ao equivoco. A persistente ilusão racionalista de que a
arte é feita de conceitos intelectuais, mesmo que seja desmentido pela prática
artística e por centenas de depoimentos de artistas de todos os gêneros, é uma
máscara amortecedora e discriminatória. Vejo a ação do Granato como um gesto de
solidariedade. Cabe ao homem da nossa época lutar por sermos mais humanos.
Oscar
Wilde escreveu que o “…mistério do amor é maior do que o mistério da morte”.
Algumas
vezes Granato me mostrou a sua releitura da obra de Francis Bacon. Pinturas de
rara qualidade, dotadas de ironia, poesia subjacente e um doce delírio no dialogo
imaginário com o mestre. Certo dia, combinamos que eu faria um texto para uma
grande exposição do “Baconato”. E nunca mais falamos no assunto. Mas eu o tinha
vivo em meu espírito. Eu imaginei mais do que o tratado entre nós: um livro de
pequeno formato, mas de muitas páginas, papel couché fosco 170 grs, uma família
de tipos histórica, talvez Bodoni, existente desde o século XVIII, com um
projeto gráfico derivado dos desenhos e esboços de Da Vinci. Seria uma
homenagem e um diálogo com três mestres, Da Vinci, Francis Bacon e Ivald
Granato.
Eu já
fazia pequenas anotações (partes soltas na imensidão do papel) sobre o “Baconato”
a espera de uma data comemorativa qualquer para mostrar ao Granato e me
beneficiar do seu permanente entusiasmo para prosseguir. É o que se segue,
anotações em busca do entusiasmo que já não está mais entre nós.
Refazer
para, ao final, ser igual a si mesmo. Transformar para refazer e obter a forma
essencial, original, igual a si mesmo e desta vez, à sua própria natureza
paradigmática.
A obra de
Ivald Granato o qualifica para esta experimentação de criação conjunta de
linguagem. As suas características de estar filiada a história da arte e, ao
mesmo tempo, ser capaz da espontaneidade, estão próximas da vivência do fazer
coletivo e da sobrevivência da individualidade quando em grupo.
O
devorador de imagens. A manifestação da arte como sistema de permanente reciclagem
das energias. Antropofagia mágica. Comer a linguagem para ter em si as virtudes
do objeto e do conceito do outro. O devorador das imagens do mundo.
A
alteridade e o canibalismo granatino.
O que
Ivald Granato sempre faz não é incluir todo mundo no seu trabalho e todo o
mundo no mundo da arte e a arte em todo o mundo?
Ivald
Granato é um devorador das imagens do mundo. E o que registra esta câmera
idealizada?
Ivald
Granato domina as técnicas formais do desenho e da gravura. Naturalmente a sua
rapidez e intensidade é mais próxima da litografia do que da gravura em metal
que, em regra, exige outro tipo de meditação. A gravura em metal é feita, no
mais das vezes, por artistas santos, “tibetanos”, filósofos, iluminados. O
gesto explosivo de Ivald Granato registra a natureza, flores; figuras humanas,
a sua constante em tantos anos; cabeças humanas; a história da arte, por
apropriação e intervenções em obras de artistas como Francis Bacon, Pablo
Picasso, Andy Warhol, Leonardo da Vinci, Jasper Johns, Henri Matisse.
É
bastante claro que o núcleo central da obra de Granato é refazer e experimentar
todas as experiências criativas da arte nos séculos vinte e vinte e um.
Pode ser
dito que este é um princípio geral da arte e que ela é, do ponto de vista
histórico e do ponto de vista da linguagem, uma permanente releitura. As
rupturas são feitas impregnadas de história pregressa. E é sempre estimulante
quando percebemos que as rupturas foram criadas passo a passo e são processos e
não exatamente rompimentos.
Talvez
onde Granato nos diz de maneira mais franca de seu processo criativo seja na
série, que, aliás, parece infinita, nunca acaba, intitulada de Baconato.
Francis Bacon mais Ivald Granato.
O aspecto
saboroso literariamente é que Bacon, pelo seu lado, também é um devorador de
imagens. A começar pelo seu nome, é claro, que é o mesmo nome do filósofo,
cientista, e misterioso esotérico Francis Bacon, seu parente distante. Homem de
saber enciclopédico, experimentalista, Francis Bacon (1561-1626) é considerado
como um dos criadores da ciência moderna. Francis Bacon era um homem tão
extraordinário que quando ainda não estava certa a identidade de William
Shakespeare, uma forte corrente intelectual acreditou que William Shakespeare
era Francis Bacon sob pseudônimo. Para o gênio literário que, segundo Harold
Bloom, criou o homem moderno, só Bacon seria suficiente.
E Francis Bacon (1909-1992), o mais
impactante artista da segunda metade do século vinte, que nos revelou, mais uma
vez, o peso da matéria humana, sempre se fundamentou na história cultural. Ele,
sozinho em seu ateliê, lia em voz alta os poetas, especialmente o grego
Ésquilo. Os poetas são “formidáveis” disparadores da arte (estimuladores, ponto
de partida para enfrentar a tela branca), nos disse Bacon. A sua pintura era
mais “clinica”, do que “Macbeth”, de Shakespeare, afirmou.
Pois bem,
além de tudo isto, já por si só um assunto que requereria longo e delicado e
delicioso relato, este irlandês de gênio, refez a pintura a partir da pintura
de Diego Velázquez, especialmente o “Papa Inocêncio X”.
É de
Francis Bacon, em livro-entrevista de Franck Maubert, as seguintes afirmações,
colhidas quase ao acaso:
…Mas, Velázquez…
Velázquez ainda assim
é diferente. A grande arte acrescenta à vida.
Sou obcecado por
Velázquez.
Velázquez é o ponto
de partida. E, depois, em seguida, deixo-me guiar pelo acaso. Velázquez me
serviu e resserviu…
Francis
Bacon como um devorador de imagens e um vulcão criativo de imagens. Lava
ardente. Bacon como transformador. Alquimista.
“Baconato”
é um disparador de texto. Acho que dá para escrever um “Jaconato”.
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Fase II | Número 19 | Agosto de 2016
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