● GLAUBER
ROCHA, FANTASIA E NÁUSEA DA CONTEMPORANEIDADE
Glauber falava em fazer
filmes sobre a “fantasia da contemporaneidade”. Só que isto em uma época em que
a contemporaneidade não havia sido de todo drogada pela massificação dos meios
e da mensagem.
Glauber queria
“descomplexar” a mentalidade da cultura brasileira, sempre tomada de assaltos
por europeísmos e estadunidismos. Disse que o protestantismo ajudou seu cinema,
referindo-se à “falta de pudor diante das imagens” de seus filmes. Enfermada de
catolicismo, a cultura brasileira nunca entendeu o Surrealismo. Numa possível
definição estilística, jamais arriscou grandes voos. Fomos sempre
torniqueteados por uma culpabilidade política e outra religiosa.
Glauber reclamava da
necessidade de se fazer uma revista de cultura. Não se pode deixar de fazer
crítica a tudo o que se produz. Temos que parar com o corporativismo cultural e
recuperar a indignação. Somente a raiva restaura. Nos anos 1990, tivemos a
revista Piracema (da FUNARTE), uma
tribuna crítica, com uma ambientação histórica e um jato de luz sobre a cena
contemporânea. Logo foi devastada pela canalhice tradicional.
Então voltamos ao ponto
de partida: uma cultura que não se discute, discurso liquefeito em louvações e
esquecimentos táticos. Institucionalizou-se a velha prática do Concretismo: a
fraude. Aliás, em 1972, Glauber já se referia à confraria dos concretos como
“concretinos”, chamando-os de “funcionários da tecnologia”. Uns funcionários
algo incompetentes, uma vez que, nas relações entre poesia, modernidade e
tecnologia, não interferiram em nada do que se havia esboçado no manifesto da
tribo. Segundo arremate lúcido de Glauber, o Concretismo só trouxe contribuição
para a publicidade.
Glauber em todo momento
sugeria a seus pares aquilo que deveriam filmar. Não se tratava de petulância e
sim de uma espécie de poética automática, giratória, que esteve a vida inteira
disparando. Cartas, conversas, filmes etc. Distribuía ideias a todos. Sugeriu a
Arnaldo Jabor filmar uma “psicanálise radical da família de classe média”. O
filme Tudo bem (1978) é um ensaio
disto. Pena que fosse pouco ouvido. Decerto assim o cinema brasileiro poderia
contar com alguns filmes, além de alguns seus.
Glauber expunha-se
despudoradamente ao diálogo. Insultava, delirava, profetizava, sempre
impulsionado pela essencialidade que lhe atribuía. Sabia que em discussão
aberta não há usurpação de direitos.
Nos anos 1980, afirmava
que “o nacionalismo é a raiz do futuro brasileiro”. Sua visão de nacionalismo
era outra, em nada ligada a uma postura integralista. Bem antes já expusera sua
repulsa à adoção irrestrita da ideologia de ‘68, dizendo que vivíamos uma falsa
crise, reflexo da incorporação integral de aspectos políticos de outros países.
Tivesse sido ouvido decerto haveria alguma resistência ao musak predominante em nossa cultura.
Disse que temos uma
leitura despedaçada de tudo. Sofremos a síndrome do à la page, do up to date.
Somos culturalmente autistas. Sequer aprendemos algo com nossos erros. Tanto é
verdade que ainda se considera Oswald de Andrade um paradigma da modernidade
brasileira. Vivemos em um estado demagógico populista. Nada de risco ou
complexas definições estéticas. Para que as peças se encaixem no jogo e tudo
pareça normal, substituímos o diálogo pelo debate programado, a edição de
textos, o tratamento de imagens. Tudo é televisão.
Glauber escreveu sobre
Fellini e parecia falando de si: “o mais livre e o menos comprometido com as
regras do jogo”. Talvez se possa dizer dele que tenha sido o único artista do
cinema brasileiro. As ousadias estéticas levadas à tela em A idade da terra (1980) bem o provam. Não é um filme, e sim um
manifesto.
Assim como Fellini,
Glauber também foi um cineasta “sem culpa de loucura e beleza”, que soube
conviver com os labirintos intestinais do sonho e da realidade. Apontou as
falhas de seus pares, reconheceu as atitudes além de sua capa ideológica,
denunciou o quanto que “os brasileiros detestam o Brasil”, sobretudo amando
indiscriminadamente o que fazia e defendia.
A discussão em torno de
Glauber não poderá jamais se restringir ao cinema. Mesmo em se tratando da
leitura de uma desconstrução da linguagem, em seu caso, graças a uma
visceralidade irredutível de seu caráter. Se ali traçou um plano de destruição
da narrativa, encarnou a desconstrução do discurso como uma organicidade
estética. Absurdo referir-se a ele como um caótico.
Glauber se sentia um
barroco épico. Segundo o crítico Ely Azeredo, havia nele tanto um “obsessivo
delírio poético” quanto um “poderoso cerne realista”. A grande dificuldade de
aceitá-lo no Brasil é que se faz aqui uma arte de gabinete, marcada a fogo por
padrões e normas de conveniência. Glauber nunca teve nada a ver com Godard, Nouvelle Vague ou mesmo o Cinema Novo. Nunca foi apocalíptico nem
integrado. Estivesse vivo continuaria dizendo aos cineastas: deixem de fazer cena, façam filmes!
Glauber dessascralizou
todas as posturas de uma modernidade congênita, denunciando uma enganosa
patologia do moderno. Ironizou o velho guru Timothy Leary, a fraude de uma
vanguarda francesa, a perene dependência estética da cultura brasileira.
Seremos eternamente público ou definiremos alguma ação? Nisto reside a
perspectiva central que nos abre a obra e a vida de Glauber Rocha.
Floriano Martins
● ÍNDICE
ALFONSO
PEÑA | Carmen Santos y su estela
vanguardista: pintura, objetos y obra gráfica
ESTER
FRIDMAN | Dos preconceitos dos filósofos às três transmutações
FERNANDO
DENIS | Dante Gabriel Rossetti o la gótica soledad de
las palabras
FLORIANO
MARTINS | Um encontro impossível com Bartolomeu Mourisco
LEDA CINTRA CASTELLAN | Brasil
dos livros esquecidos
OMAR
CASTILLO | Ascuas, la poética de Jaime Sáenz
OMAR
CASTILLO | El universo anverso de León de Greiff
OMAR CASTILLO | La presencia de
Alejandra Pizarnik
RAFAEL RATTIA | Eugenio
Montejo: la leve terredad del poema
ZUCA SARDAN & FLORIANO MARTINS | Labyrintho Naska – Um ensaio-automático
ARTISTA CONVIDADO |
KENICHI KANEKO | Agonias e bonanças, anotações autobiográficas
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Página ilustrada con obras de Kenichi Kaneko (Brasil), artista invitado
de esta edición de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 22 | Dezembro de 2016
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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Flor, Agulha está muito bacana demais!!! Parabéns!!! Vamos em frente!!
ResponderExcluirFloriano! Excelente exemplar! Parabéns!
ResponderExcluirThanks for sharing, nice post!
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