Para Nietzsche, o que
ocorreu com os estoicos é o que ocorre com a filosofia quando ela começa a
acreditar em si mesma: não pode evitar criar o mundo a sua imagem. Com isso em
mente, tentarei expor minha perspectiva interpretativa do pensamento
nietzscheano. Não direi que o pensamento que se segue me pertence, ou seja, que
é predicado de meu “eu” que pensa. Pois, se Nietzsche estiver certo (por que
sempre a verdade?), o pensamento pode ser autônomo, não dependendo de nós.
Acreditar que o pensamento vem quando queremos, e não quando ele, o pensamento
quer, é uma das superstições dos lógicos – que o sujeito eu é a condição do
predicado penso. O hábito gramatical diz que o pensar é uma atividade, e não
existe atividade sem agente.
Nietzsche também opera com preconceitos e, a
partir deles, submete à critica muitos, se não todos, os domínios de nossa
civilização: ético, político, religioso e cientifico. Para ele, na história de
nossos valores mais elevados, há muita trapaça e mesquinharia. Mas estas estão
dissimuladas em firmes convicções. Somos nós que vamos colocando os valores,
sendo que toda valorização é de fachada. Por trás delas há tolices, mas estas
podem ser necessárias para a preservação de nossa espécie. No fundo, estamos
lidando com a noção de Platão de mundo verdadeiro e mundo aparente. E, cada vez
que se põe um nome, há um comando. Eu dou um nome, logo, comando. Para Platão,
há um mundo verdadeiro, que não é esse mundo onde vivemos, que ele chama de
mundo das essências. E este mundo onde vivemos seria uma cópia daquele, seria o
mundo das aparências. O valor do mundo aparente está no mundo verdadeiro. Ora,
se rotulamos o mundo como ele deve ser, desprezamos o mundo como ele é.
Alguns séculos depois de Platão, com o advento
do cristianismo (o platonismo para o povo, segundo Nietzsche), a desvalorização
da vida e a promessa de outra vida melhor, em outro mundo, foram se
cristalizando cada vez mais na civilização ocidental. O resultado foi uma moral
de rebanho, onde não há escolha, onde não há liberdade, onde só há uma vontade
fraca - uma sociedade guiada pelo ressentimento. Aqui temos o homem
transformado em camelo. Para Nietzsche, não foi Platão, mas Sócrates que teria
criado um ressentimento na cultura. O problema não é Platão, mas o platonismo.
Todos os “ismos” são perigosos – os seguidores tornam-se fanáticos.
Pertencemos a uma civilização na qual houve uma
só interpretação considerada verdadeira. Quando não se tem escolha, não se tem
iniciativa. O que se tem é apenas reação.
Foi dito que Nietzsche faz uma crítica a nossa
civilização a partir de preconceitos. Mas, afinal, quais são esses preconceitos
de que Nietzsche fala?
São preconceitos que os filósofos defendem e
chamam de verdades, e que, muitas vezes, não passam de confissões pessoais de
seus autores. Por isso, segundo Nietzsche, para saber quem é o filosofo, basta
ver qual é sua moral. Há que ver como estão dispostos os impulsos de sua
natureza. Todo impulso quer dominar, quer ser senhor dos demais, e tem a
pretensão de ser a finalidade última da existência.
Nietzsche ataca a vontade de verdade como o
primeiro preconceito dos filósofos. Nada foi mais venerado desde os tempos de
Platão do que a verdade. Ele não está preocupado com a origem da vontade de
verdade, mas com o seu valor. Saber qual é o valor é desmascarar. No aforismo
344 de “A Gaia Ciência”, Nietzsche analisa “em que medida nós também somos
devotos ainda”, pois ainda acreditamos na verdade. A ciência deixa de fora os
princípios religiosos, mas permanece na crença. Sem a crença na verdade, não há
ciência. A verdade é o único valor. “Nada é mais necessário do que a verdade”.
Isso é uma crença. O próprio conhecimento é um juízo de valor. A ciência nos dá
segurança porque passa uma imagem de prudência – deixa de lado o engano, o erro
e a falsidade, como se isso fosse possível. E também nos dá a possibilidade de
previsão. Mas quem disse que não queremos ser enganados? E quem disse que não
preferimos o imprevisto? Não sabemos nada do caráter da existência para afirmar
o que é melhor. Muitas vezes as inverdades são úteis, por isso não se trata de
um critério utilitário. Pertencemos a uma civilização fanática – é o fanatismo
pela verdade. A “vontade de verdade não quer dizer ‘eu não quero me deixar
enganar’, mas sim - não há nenhuma escolha – ‘eu não quero enganar, nem sequer
a mim mesmo’ - e com isso estamos no terreno da moral”. O mundo verdadeiro de
Platão supõe corrigir o mundo aparente, abandonar a caverna. Mas o mundo
verdadeiro não é nossa realidade. Assim, é uma questão moral que supõe corrigir
nosso mundo. Nietzsche mostra que a crença na ciência é uma crença metafísica.
Tanto a crença de Platão, quanto a crença cristã, é a de que Deus é a verdade.
Mas o nosso mundo é o mundo aparente. Querer a verdade é querer o que o nosso
mundo não é. Querer um mundo melhor traz intrinsecamente uma questão moral –
querer corrigir o mundo. A crença na verdade segurou a vida por séculos. Se a
verdade não tem valor, se aquilo que era verdade se revela como mentira, nós caímos
no niilismo. A moral é, sob essa perspectiva, uma estratégia para sobreviver.
Mas a mentira também pode ter como função
preservar a vida. Tanto é que a falsidade de um juízo não chega a constituir
para nós uma objeção contra ele. Isso vai contra toda a tradição filosófica que
afirma que se um juízo é falso ele não tem valor. Mas, para Nietzsche, em vez
de perguntar se um juízo é falso ou verdadeiro, devemos perguntar se favorece e
conserva a vida, ou não. Assim, não importa que a ciência tenha sido fundada
sobre inverdades. E não só a ciência. A própria sociedade é sustentada por
mentiras. Mentiras necessárias. Mas como as pessoas acreditam na mentira, elas
querem que seja verdade. Se admitimos a inverdade como princípio, estamos
questionando os valores habituais, e isso é perigoso. Uma filosofia que faz
isso está se colocando além do bem e do mal, está além da questão dos valores.
É melhor que se acredite nas mentiras institucionalizadas. Quem ousa derrubar
máscaras e admitir que tudo não passa de uma mentira é excluído da sociedade.
Quem não quer ser excluído, basta seguir uma regra simples: chamar de verdade o
que conserva o homem no rebanho e mentira o que o ameaça ou exclui do rebanho.
Outro preconceito importante apontado por
Nietzsche é o que diz respeito aos opostos. Desde Platão, aprendemos a fazer
oposições: bem/mal, falso/verdadeiro, certo/errado, e assim por diante. E, para
a filosofia tradicional, todos os opostos estão separados, não têm a mesma
origem e não podem nascer um do outro. Assim, os metafísicos criaram fontes
diferentes para cada um dos opostos. Mas Nietzsche desvia-se da metafísica, e
diz que os opostos têm a mesma origem. Não existe uma origem para o bem e outra
para o mal. Ambos têm a mesma origem. Para Nietzsche, são forças que transitam
de um polo a outro. Os opostos, tendo a mesma origem, estão enredados – são as
mesmas forças que transitam em caminhos diferentes. “Estar consciente” não se
opõe ao que é instintivo. O que os filósofos têm chamado de pensamento
consciente é instintivo. Para Nietzsche, consciente e instintivo estão ligados,
e é o instinto que guia a maior parte do pensamento consciente.
Colocar a metafísica como sendo a rainha das
ciências, como fizeram os filósofos por tanto tempo, também é um preconceito
com relação às demais ciências. Para Nietzsche, se alguma ciência pode ocupar
esse lugar, essa ciência seria a psicologia, desde que essa se desprenda dos preconceitos
morais a que esteve presa até hoje, e fale livremente que os impulsos bons
derivam dos maus, ou que o ódio, a inveja e a ânsia de domínio condicionam a
vida.
Mas nem tudo está perdido. Nietzsche é bastante
otimista com relação ao porvir. Para ele, mesmo um erro pode resultar em algo
bom. O maior exemplo é o erro de Platão – a ideia do bem em si e do puro
espírito – que mesmo sendo o mais persistente e perigoso dos erros, devemos
nossa cultura justamente a esse erro. O erro nos serviu de escada para
chegarmos onde estamos hoje. A força ainda vem de lá. Quem sabe, os
preconceitos dos filósofos também possam nos servir como escada? Isso, é claro,
se não afrouxarmos a flecha! Podemos engendrar uma luta contra esses
preconceitos, estirar bem o arco, e lançar a flecha no momento certo.
O legado de Nietzsche são os instrumentos que
ele nos entrega para serem aplicados. Em “Como o ‘verdadeiro mundo’ acabou por
se tornar fábula”, no “Crepúsculo dos Ídolos”, ele conta a “História de um
Erro” em seis momentos, sendo que no último, ao constatar que nós expulsamos o
verdadeiro mundo e, com o verdadeiro mundo expulsamos também o aparente, ele
termina da seguinte forma:
Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais longo
erro; ponto alto da humanidade; INCIPIT ZARATHUSTRA.
Em “Das Três Transmutações”, no livro “Assim
Falou Zaratustra”, Nietzsche fala sobre como o espírito torna-se camelo, como o
camelo torna-se leão, e como o leão torna-se criança. Cabe lembrar que, em
Nietzsche, não existe a dicotomia entre espírito e corpo. A partir da minha
leitura, o camelo representaria a humanidade cristã-eclesiástica. O espírito
teria se tornado camelo com a moral cristã, a moral do dever. O camelo não tem
escolha, ele deve carregar o peso da culpa. É o espírito de carga, que se
ajoelha para ser carregado, e vive no deserto, lugar onde não há fartura, nem
de água, nem de comida, lugar onde tudo é mais difícil. Para o camelo, ser
virtuoso é cumprir seus deveres, é ser obediente e resignado, é carregar a vida
nas costas e se orgulhar do sofrimento. Por dois mil anos há um predomínio do
camelo no deserto, e este vive sem reclamar, com sua vontade fraca de
ressentido. Ajoelha-se diante do dragão e diz: “sim, meu senhor, eu lhe devo
obediência”. O senhor a quem o camelo obedece é o último dragão, que é o
“tu-deves”. O dragão seria, de alguma maneira, a lei universal, uma vez que, em
um de seus simbolismos ele aparece como o verbo criador. E cada escama do
dragão pode ser uma pessoa que obedece. Cabe lembrar que na antiguidade, alguns
animais eram símbolos do culto de divindades, na qual o dragão era o símbolo do
mal.
Mas Nietzsche nos diz que, assim como um dia o
espírito se tornou camelo, existe a possibilidade de se transmutar em leão. O
camelo que se transmuta em leão é aquele que percebe a sua condição de escravo.
Claro, só procura a liberdade quem está preso. Quem é livre não procura a
liberdade. A busca pela liberdade ocorre nessa transição do camelo para o leão.
Dizer um “sagrado não ao grande dragão” é se assumir como leão. O leão não deve
obediência ao dragão porque é um espírito livre. O lema do espírito livre, do
leão, não é “eu devo”, mas sim, “eu quero”. Mas, me parece que há graus de
espírito livre. O espírito livre por excelência é aquele que não acredita em
nada, é a inversão do crente. O dragão diz ter criado todos os valores. Ele
diz: “Todo o valor já foi criado, e todo valor criado – sou eu. Em verdade, não
deve haver mais nenhum ‘eu quero’!”. Mas o leão quer lutar contra o grande
dragão. Nietzsche diz: “’Tu deves’ está em seu caminho, cintilante de ouro, um
animal de escamas, e em cada escama resplandece em dourado: ‘Tu deves’”. O
próprio dragão diz ser todo o valor criado, e ele aparece cintilante de ouro.
Ora, o ouro foi um dos símbolos de Jesus, como o era também de Apolo. Não é por
acaso que artistas cristãos deram a Jesus cabelos louros dourados, como os de
Apolo. Cabe aqui lembrar, ainda, que, na mitologia grega, era um dragão que tomava
conta do velocino de ouro. Jasão precisou vencer o dragão para levar o velocino
de ouro ao rei. Temos também São Jorge em combate com o dragão, que muitos
artistas ilustraram como a luta entre o bem e o mal. Além de cintilante de
ouro, o dragão é descrito como um animal de escamas. A escama é o símbolo da
montanha ou do suporte do mundo, que deriva do símbolo da tartaruga. Na arte
românica, as tartarugas aparecem sob os pés do Cristo na ascensão, simbolizando
o limite da terra e o contato com o céu. Num outro sentido, que faz sobressair
a coincidência dos opostos, as escamas designam, ao contrário, o obstáculo que
impede ver o céu. É preciso que as escamas caiam dos olhos para que o homem
compreenda. Mas o leão, com seu querer próprio, cria liberdade para que se
possa criar novos valores. O leão não é criador de novos valores, mas abre
caminho para a nova criação. É preciso a força do leão para vencer o dragão.
Dois mil anos com tal predomínio do camelo não
foram em vão. O homem aprendeu muito no deserto. Mas agora precisa ter coragem
de querer o que já sabe. Agora precisa se tornar leão. Nietzsche diz no
fragmento de outono de 1887: “Só se tem tardiamente a coragem daquilo que se
sabe”. Na condição de camelo, o homem não tinha um querer próprio. Qualquer
discurso que manifestasse uma experiência individual própria, diferente do
rebanho, era muito mal visto. Só havia uma verdade – a verdade do rebanho. O
homem na condição de leão é diferente. Assim como o homem é uma ponte para o
além-do-homem, o leão é uma ponte para a criança. Não seria a criança o próprio
além-do-homem? O leão tem a coragem que faltava ao camelo para impor sua
individualidade, para impor sua vontade, que não é necessariamente igual a de
todos. No camelo há uma vontade fraca. O leão enfrenta o dragão e provoca o
crepúsculo dos ídolos. Derruba os valores antigos, possibilitando a criação de
novos. É claro que o camelo ressentido irá odiar o leão por isso.
A partir da minha leitura, para Nietzsche, a
criação só é possível onde reina a diferença, onde não há rebanho. Pode-se
notar que há graus de flexibilidade nas diferentes fases do espírito. O camelo
é todo rígido, devido ao peso dos valores; o leão é bastante flexível, ágil; e
a criança é pura flexibilidade.
Podemos nos perguntar: - como se dão as
referidas transmutações? Só podemos encontrar tal resposta na própria filosofia
nietzschiana. Para Nietzsche, o mundo, e tudo o que existe, é um conjunto de
forças em permanente relação de combate. Não existe força no singular, ela se
apresenta sempre como multiplicidade. O mundo é uma pluralidade de forças que
agem e resistem, umas em relação às outras. O corpo humano, com suas células,
tecidos e órgãos, consiste em uma pluralidade em constante combate. A cada
momento surgem vencedores e vencidos, e hierarquias vão se formando. Mas essas
hierarquias nunca são definitivas. A vida, assim, é um constante vir-a-ser. O
que ocorre dentro do corpo, também ocorre entre os indivíduos, que são corpos
da sociedade. Sempre há forças que comandam e forças que obedecem, forças
ativas e forças reativas. O corpo humano, para Nietzsche, é a grande razão.
Quando a grande razão se configura de uma determinada maneira, quando uma
determinada hierarquia prevalece, abre-se a possibilidade para a transmutação.
Essa configuração não é igual para todos. Se o fosse, estaríamos falando de um
padrão, de um modelo, o que seria um absurdo, tratando-se de filosofia
nietzschiana. As vontades do leão vêm de configurações de forças que
possibilitam o querer. Não é o “eu” do leão que “quer”, mas sim uma pluralidade
de forças. Uma vez ocorrida a transmutação do camelo em leão, o fato de o leão
impor sua vontade própria, inverte a direção da força. A força que no camelo
era reativa, voltava-se contra si mesmo, no leão é ativa, volta-se para fora.
Não há mais o espírito gregário, com sua vontade de igualdade, próprio do
rebanho, próprio aos escravos. Há que lembrar que, para Nietzsche, o instinto
gregário, que prevalece na sociedade de rebanho, não é primordial nem
universal. O camelo é um animal doméstico e servil. Seus instintos vitais estão
domesticados. O leão é um animal selvagem e astuto – ele observa em silêncio e
sabe esperar a hora certa para o ataque. Nessa inversão da força pode-se ver o
início de um niilismo ativo, a partir do qual se é possível criar novos
valores. É o caminho para o mais forte, para o mais saudável, para o criativo.
Para o além-do-homem?
*****
ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963).
Filósofa e escritora, pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado
foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra
de Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga
Sutra de Patanjali. Contato: ester8fri@gmail.com.
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