quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

ESTER FRIDMAN | Dos preconceitos dos filósofos às três transmutações


Para Nietzsche, o que ocorreu com os estoicos é o que ocorre com a filosofia quando ela começa a acreditar em si mesma: não pode evitar criar o mundo a sua imagem. Com isso em mente, tentarei expor minha perspectiva interpretativa do pensamento nietzscheano. Não direi que o pensamento que se segue me pertence, ou seja, que é predicado de meu “eu” que pensa. Pois, se Nietzsche estiver certo (por que sempre a verdade?), o pensamento pode ser autônomo, não dependendo de nós. Acreditar que o pensamento vem quando queremos, e não quando ele, o pensamento quer, é uma das superstições dos lógicos – que o sujeito eu é a condição do predicado penso. O hábito gramatical diz que o pensar é uma atividade, e não existe atividade sem agente.
Nietzsche também opera com preconceitos e, a partir deles, submete à critica muitos, se não todos, os domínios de nossa civilização: ético, político, religioso e cientifico. Para ele, na história de nossos valores mais elevados, há muita trapaça e mesquinharia. Mas estas estão dissimuladas em firmes convicções. Somos nós que vamos colocando os valores, sendo que toda valorização é de fachada. Por trás delas há tolices, mas estas podem ser necessárias para a preservação de nossa espécie. No fundo, estamos lidando com a noção de Platão de mundo verdadeiro e mundo aparente. E, cada vez que se põe um nome, há um comando. Eu dou um nome, logo, comando. Para Platão, há um mundo verdadeiro, que não é esse mundo onde vivemos, que ele chama de mundo das essências. E este mundo onde vivemos seria uma cópia daquele, seria o mundo das aparências. O valor do mundo aparente está no mundo verdadeiro. Ora, se rotulamos o mundo como ele deve ser, desprezamos o mundo como ele é.
Alguns séculos depois de Platão, com o advento do cristianismo (o platonismo para o povo, segundo Nietzsche), a desvalorização da vida e a promessa de outra vida melhor, em outro mundo, foram se cristalizando cada vez mais na civilização ocidental. O resultado foi uma moral de rebanho, onde não há escolha, onde não há liberdade, onde só há uma vontade fraca - uma sociedade guiada pelo ressentimento. Aqui temos o homem transformado em camelo. Para Nietzsche, não foi Platão, mas Sócrates que teria criado um ressentimento na cultura. O problema não é Platão, mas o platonismo. Todos os “ismos” são perigosos – os seguidores tornam-se fanáticos.
Pertencemos a uma civilização na qual houve uma só interpretação considerada verdadeira. Quando não se tem escolha, não se tem iniciativa. O que se tem é apenas reação.
Foi dito que Nietzsche faz uma crítica a nossa civilização a partir de preconceitos. Mas, afinal, quais são esses preconceitos de que Nietzsche fala?
São preconceitos que os filósofos defendem e chamam de verdades, e que, muitas vezes, não passam de confissões pessoais de seus autores. Por isso, segundo Nietzsche, para saber quem é o filosofo, basta ver qual é sua moral. Há que ver como estão dispostos os impulsos de sua natureza. Todo impulso quer dominar, quer ser senhor dos demais, e tem a pretensão de ser a finalidade última da existência.
Nietzsche ataca a vontade de verdade como o primeiro preconceito dos filósofos. Nada foi mais venerado desde os tempos de Platão do que a verdade. Ele não está preocupado com a origem da vontade de verdade, mas com o seu valor. Saber qual é o valor é desmascarar. No aforismo 344 de “A Gaia Ciência”, Nietzsche analisa “em que medida nós também somos devotos ainda”, pois ainda acreditamos na verdade. A ciência deixa de fora os princípios religiosos, mas permanece na crença. Sem a crença na verdade, não há ciência. A verdade é o único valor. “Nada é mais necessário do que a verdade”. Isso é uma crença. O próprio conhecimento é um juízo de valor. A ciência nos dá segurança porque passa uma imagem de prudência – deixa de lado o engano, o erro e a falsidade, como se isso fosse possível. E também nos dá a possibilidade de previsão. Mas quem disse que não queremos ser enganados? E quem disse que não preferimos o imprevisto? Não sabemos nada do caráter da existência para afirmar o que é melhor. Muitas vezes as inverdades são úteis, por isso não se trata de um critério utilitário. Pertencemos a uma civilização fanática – é o fanatismo pela verdade. A “vontade de verdade não quer dizer ‘eu não quero me deixar enganar’, mas sim - não há nenhuma escolha – ‘eu não quero enganar, nem sequer a mim mesmo’ - e com isso estamos no terreno da moral”. O mundo verdadeiro de Platão supõe corrigir o mundo aparente, abandonar a caverna. Mas o mundo verdadeiro não é nossa realidade. Assim, é uma questão moral que supõe corrigir nosso mundo. Nietzsche mostra que a crença na ciência é uma crença metafísica. Tanto a crença de Platão, quanto a crença cristã, é a de que Deus é a verdade. Mas o nosso mundo é o mundo aparente. Querer a verdade é querer o que o nosso mundo não é. Querer um mundo melhor traz intrinsecamente uma questão moral – querer corrigir o mundo. A crença na verdade segurou a vida por séculos. Se a verdade não tem valor, se aquilo que era verdade se revela como mentira, nós caímos no niilismo. A moral é, sob essa perspectiva, uma estratégia para sobreviver.
Mas a mentira também pode ter como função preservar a vida. Tanto é que a falsidade de um juízo não chega a constituir para nós uma objeção contra ele. Isso vai contra toda a tradição filosófica que afirma que se um juízo é falso ele não tem valor. Mas, para Nietzsche, em vez de perguntar se um juízo é falso ou verdadeiro, devemos perguntar se favorece e conserva a vida, ou não. Assim, não importa que a ciência tenha sido fundada sobre inverdades. E não só a ciência. A própria sociedade é sustentada por mentiras. Mentiras necessárias. Mas como as pessoas acreditam na mentira, elas querem que seja verdade. Se admitimos a inverdade como princípio, estamos questionando os valores habituais, e isso é perigoso. Uma filosofia que faz isso está se colocando além do bem e do mal, está além da questão dos valores. É melhor que se acredite nas mentiras institucionalizadas. Quem ousa derrubar máscaras e admitir que tudo não passa de uma mentira é excluído da sociedade. Quem não quer ser excluído, basta seguir uma regra simples: chamar de verdade o que conserva o homem no rebanho e mentira o que o ameaça ou exclui do rebanho.
Outro preconceito importante apontado por Nietzsche é o que diz respeito aos opostos. Desde Platão, aprendemos a fazer oposições: bem/mal, falso/verdadeiro, certo/errado, e assim por diante. E, para a filosofia tradicional, todos os opostos estão separados, não têm a mesma origem e não podem nascer um do outro. Assim, os metafísicos criaram fontes diferentes para cada um dos opostos. Mas Nietzsche desvia-se da metafísica, e diz que os opostos têm a mesma origem. Não existe uma origem para o bem e outra para o mal. Ambos têm a mesma origem. Para Nietzsche, são forças que transitam de um polo a outro. Os opostos, tendo a mesma origem, estão enredados – são as mesmas forças que transitam em caminhos diferentes. “Estar consciente” não se opõe ao que é instintivo. O que os filósofos têm chamado de pensamento consciente é instintivo. Para Nietzsche, consciente e instintivo estão ligados, e é o instinto que guia a maior parte do pensamento consciente.
Colocar a metafísica como sendo a rainha das ciências, como fizeram os filósofos por tanto tempo, também é um preconceito com relação às demais ciências. Para Nietzsche, se alguma ciência pode ocupar esse lugar, essa ciência seria a psicologia, desde que essa se desprenda dos preconceitos morais a que esteve presa até hoje, e fale livremente que os impulsos bons derivam dos maus, ou que o ódio, a inveja e a ânsia de domínio condicionam a vida.
Mas nem tudo está perdido. Nietzsche é bastante otimista com relação ao porvir. Para ele, mesmo um erro pode resultar em algo bom. O maior exemplo é o erro de Platão – a ideia do bem em si e do puro espírito – que mesmo sendo o mais persistente e perigoso dos erros, devemos nossa cultura justamente a esse erro. O erro nos serviu de escada para chegarmos onde estamos hoje. A força ainda vem de lá. Quem sabe, os preconceitos dos filósofos também possam nos servir como escada? Isso, é claro, se não afrouxarmos a flecha! Podemos engendrar uma luta contra esses preconceitos, estirar bem o arco, e lançar a flecha no momento certo.
O legado de Nietzsche são os instrumentos que ele nos entrega para serem aplicados. Em “Como o ‘verdadeiro mundo’ acabou por se tornar fábula”, no “Crepúsculo dos Ídolos”, ele conta a “História de um Erro” em seis momentos, sendo que no último, ao constatar que nós expulsamos o verdadeiro mundo e, com o verdadeiro mundo expulsamos também o aparente, ele termina da seguinte forma:

Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais longo erro; ponto alto da humanidade; INCIPIT ZARATHUSTRA.








 Zaratustra foi um profeta da moral na tradição oriental – lidava com duas forças: a do bem e a do mal. Os dois mundos de Platão, de certa forma, também representavam essas duas forças – o mundo verdadeiro era bom, e o mundo aparente era falso, portanto mal. Nietzsche nos faz ver que ficamos sem nada, mas há uma esperança: Incipit Zarathustra. A palavra latina incipit quer dizer começo, e estaria ligada às teorias da transubstanciação, a mudança de uma substância em outra, e ao movimento angélico. Nietzsche diz que o apóstolo Paulo é um não-anjo, e Zaratustra é um anjo que traz boas novas. Assim, no sexto momento não temos mais Platão. Agora temos Zaratustra, que, como um anjo, nos trás um presente. Seria um recomeço? O além-do-homem? De qualquer forma, o fim possibilita um novo começo. Uma substância se transforma em outra.
Em “Das Três Transmutações”, no livro “Assim Falou Zaratustra”, Nietzsche fala sobre como o espírito torna-se camelo, como o camelo torna-se leão, e como o leão torna-se criança. Cabe lembrar que, em Nietzsche, não existe a dicotomia entre espírito e corpo. A partir da minha leitura, o camelo representaria a humanidade cristã-eclesiástica. O espírito teria se tornado camelo com a moral cristã, a moral do dever. O camelo não tem escolha, ele deve carregar o peso da culpa. É o espírito de carga, que se ajoelha para ser carregado, e vive no deserto, lugar onde não há fartura, nem de água, nem de comida, lugar onde tudo é mais difícil. Para o camelo, ser virtuoso é cumprir seus deveres, é ser obediente e resignado, é carregar a vida nas costas e se orgulhar do sofrimento. Por dois mil anos há um predomínio do camelo no deserto, e este vive sem reclamar, com sua vontade fraca de ressentido. Ajoelha-se diante do dragão e diz: “sim, meu senhor, eu lhe devo obediência”. O senhor a quem o camelo obedece é o último dragão, que é o “tu-deves”. O dragão seria, de alguma maneira, a lei universal, uma vez que, em um de seus simbolismos ele aparece como o verbo criador. E cada escama do dragão pode ser uma pessoa que obedece. Cabe lembrar que na antiguidade, alguns animais eram símbolos do culto de divindades, na qual o dragão era o símbolo do mal.
Mas Nietzsche nos diz que, assim como um dia o espírito se tornou camelo, existe a possibilidade de se transmutar em leão. O camelo que se transmuta em leão é aquele que percebe a sua condição de escravo. Claro, só procura a liberdade quem está preso. Quem é livre não procura a liberdade. A busca pela liberdade ocorre nessa transição do camelo para o leão. Dizer um “sagrado não ao grande dragão” é se assumir como leão. O leão não deve obediência ao dragão porque é um espírito livre. O lema do espírito livre, do leão, não é “eu devo”, mas sim, “eu quero”. Mas, me parece que há graus de espírito livre. O espírito livre por excelência é aquele que não acredita em nada, é a inversão do crente. O dragão diz ter criado todos os valores. Ele diz: “Todo o valor já foi criado, e todo valor criado – sou eu. Em verdade, não deve haver mais nenhum ‘eu quero’!”. Mas o leão quer lutar contra o grande dragão. Nietzsche diz: “’Tu deves’ está em seu caminho, cintilante de ouro, um animal de escamas, e em cada escama resplandece em dourado: ‘Tu deves’”. O próprio dragão diz ser todo o valor criado, e ele aparece cintilante de ouro. Ora, o ouro foi um dos símbolos de Jesus, como o era também de Apolo. Não é por acaso que artistas cristãos deram a Jesus cabelos louros dourados, como os de Apolo. Cabe aqui lembrar, ainda, que, na mitologia grega, era um dragão que tomava conta do velocino de ouro. Jasão precisou vencer o dragão para levar o velocino de ouro ao rei. Temos também São Jorge em combate com o dragão, que muitos artistas ilustraram como a luta entre o bem e o mal. Além de cintilante de ouro, o dragão é descrito como um animal de escamas. A escama é o símbolo da montanha ou do suporte do mundo, que deriva do símbolo da tartaruga. Na arte românica, as tartarugas aparecem sob os pés do Cristo na ascensão, simbolizando o limite da terra e o contato com o céu. Num outro sentido, que faz sobressair a coincidência dos opostos, as escamas designam, ao contrário, o obstáculo que impede ver o céu. É preciso que as escamas caiam dos olhos para que o homem compreenda. Mas o leão, com seu querer próprio, cria liberdade para que se possa criar novos valores. O leão não é criador de novos valores, mas abre caminho para a nova criação. É preciso a força do leão para vencer o dragão.
Dois mil anos com tal predomínio do camelo não foram em vão. O homem aprendeu muito no deserto. Mas agora precisa ter coragem de querer o que já sabe. Agora precisa se tornar leão. Nietzsche diz no fragmento de outono de 1887: “Só se tem tardiamente a coragem daquilo que se sabe”. Na condição de camelo, o homem não tinha um querer próprio. Qualquer discurso que manifestasse uma experiência individual própria, diferente do rebanho, era muito mal visto. Só havia uma verdade – a verdade do rebanho. O homem na condição de leão é diferente. Assim como o homem é uma ponte para o além-do-homem, o leão é uma ponte para a criança. Não seria a criança o próprio além-do-homem? O leão tem a coragem que faltava ao camelo para impor sua individualidade, para impor sua vontade, que não é necessariamente igual a de todos. No camelo há uma vontade fraca. O leão enfrenta o dragão e provoca o crepúsculo dos ídolos. Derruba os valores antigos, possibilitando a criação de novos. É claro que o camelo ressentido irá odiar o leão por isso.
A partir da minha leitura, para Nietzsche, a criação só é possível onde reina a diferença, onde não há rebanho. Pode-se notar que há graus de flexibilidade nas diferentes fases do espírito. O camelo é todo rígido, devido ao peso dos valores; o leão é bastante flexível, ágil; e a criança é pura flexibilidade.
Podemos nos perguntar: - como se dão as referidas transmutações? Só podemos encontrar tal resposta na própria filosofia nietzschiana. Para Nietzsche, o mundo, e tudo o que existe, é um conjunto de forças em permanente relação de combate. Não existe força no singular, ela se apresenta sempre como multiplicidade. O mundo é uma pluralidade de forças que agem e resistem, umas em relação às outras. O corpo humano, com suas células, tecidos e órgãos, consiste em uma pluralidade em constante combate. A cada momento surgem vencedores e vencidos, e hierarquias vão se formando. Mas essas hierarquias nunca são definitivas. A vida, assim, é um constante vir-a-ser. O que ocorre dentro do corpo, também ocorre entre os indivíduos, que são corpos da sociedade. Sempre há forças que comandam e forças que obedecem, forças ativas e forças reativas. O corpo humano, para Nietzsche, é a grande razão. Quando a grande razão se configura de uma determinada maneira, quando uma determinada hierarquia prevalece, abre-se a possibilidade para a transmutação. Essa configuração não é igual para todos. Se o fosse, estaríamos falando de um padrão, de um modelo, o que seria um absurdo, tratando-se de filosofia nietzschiana. As vontades do leão vêm de configurações de forças que possibilitam o querer. Não é o “eu” do leão que “quer”, mas sim uma pluralidade de forças. Uma vez ocorrida a transmutação do camelo em leão, o fato de o leão impor sua vontade própria, inverte a direção da força. A força que no camelo era reativa, voltava-se contra si mesmo, no leão é ativa, volta-se para fora. Não há mais o espírito gregário, com sua vontade de igualdade, próprio do rebanho, próprio aos escravos. Há que lembrar que, para Nietzsche, o instinto gregário, que prevalece na sociedade de rebanho, não é primordial nem universal. O camelo é um animal doméstico e servil. Seus instintos vitais estão domesticados. O leão é um animal selvagem e astuto – ele observa em silêncio e sabe esperar a hora certa para o ataque. Nessa inversão da força pode-se ver o início de um niilismo ativo, a partir do qual se é possível criar novos valores. É o caminho para o mais forte, para o mais saudável, para o criativo. Para o além-do-homem?



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ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963). Filósofa e escritora, pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra de Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali. Contato: ester8fri@gmail.com.


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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 22 | Dezembro de 2016
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