A
rara oportunidade que tive de conhecer o padre Bartolomeu Mourisco se deu em
face de um encontro com o quadrinista Adriel Contieri, quando detalhávamos o
roteiro de uma narrativa que se passava em um sanatório. O psiquiatra Genaro
Fiord, que então dirigia a instituição, havia convidado alguns experts em áreas
afins, em face de um dilema quando menos curioso que havia surgido no local.
Ali estavam Arcádio Tramposo e René del Río, respectivamente, satanista e
espírita, de reconhecido renome em seus países. Bartolomeu Mourisco era o nome
mais conhecido, um exorcista que havia sido excomungado pelo Vaticano em função
de um misterioso processo que envolvia a morte de um garoto. Fui convidado na
condição de roteirista, e nisto havia um acordo de não revelar nada a respeito
do encontro, dada as exigências contratuais com a editora que produzirá a
novela gráfica. Devo confessar a minha fortuna pelo encontro com todos, mas em
especial destaco a alegria da entrevista que realizei com o padre Bartolomeu. Desde
que afastado de suas atividades religiosas, dedicou-se ao estudo da
configuração do caráter a partir da interferência da arte. Durante o período em
que estivemos todos reunidos no sanatório, mesmo considerando as insistências
do Dr. Fiord, não se conseguiu fotografar Bartolomeu. No entanto, a enfermeira
Joana Guaita guardou consigo um crayon realizado por Kaliga Pott, uma jovem
desenhista que nos acompanhava graças a seu talento assombroso no que diz
respeito a um traço automático, por vezes quase uma prefiguração das cenas que
enfrentamos naqueles dias. O crayon foi tomado de suas mãos, ainda em gestação,
amassado e borrado pelo próprio Bartolomeu, que a repreendeu duramente. No
entanto, aqui o temos, como um registro mágico desse encontro impossível. [FM]
FM | Talvez um bom começo para nosso diálogo fosse essa tua
relação sempre ousada com a memória sonhada. Seria algo assim como recordar o inexistente?
BM | É uma boa imagem, não há dúvida. A memória é uma grande
trapaceira. Inventa mundos a bel prazer, distorce fatos, reformata sentimentos,
faz de tudo. Talvez seja ela, a memória, o protagonista máximo de toda a
narrativa que entendemos como tal. Veja o caso desta série para televisão
intitulada Westworld. É uma espécie
incomum de ficção sobre o passado. Mesmo que esteja ambientada em um futuro em
que o avanço da robótica efetiva nossos temores no erro humano, onde esse
avanço tecnológico atua é justamente no passado. Não há outra saída para a
criação que não seja a recriação. O mundo acaba sempre sendo o que jamais
deixou de ser: uma janela perene para o erro. Até aí tudo bem, mas o que o
seriado evidencia é a peleja entre a inocência e a perversidade. Por trás de
todo benefício se encontra um mapa de carnificinas.
FM | A história então seria fruto único do que a memória registra
como factual. Mas não foi sempre assim?
BM | A distinção – e de certo modo ainda persistimos em tal
equívoco – se encontra no fato de que sempre pensamos que nossos atos alimentam
a memória, quando na verdade ela manipula uma dieta própria.
FM | De que modo a arte lida com essa perspectiva?
BM | Não existe a arte e sim o artista. A arte é um sucedâneo
por vezes lacrimoso das inquietudes do artista. Basta substituir arte por
criação, pois justamente disto se trata. E partir do paradigma bíblico: quantos
confundem Deus com o homem? Quem é o criador, quem é a criatura? A memória se
aproveita dessa distração de valores.
BM | Este é o ponto curioso da fantasia em que chegamos: já não
importa. Tanto nos fascina a ficção que ela pode se disfarçar de uma alegada
memória de fatos ocorridos e não a questionamos em momento algum. Isto porque o
deleite define melhor o que é crível ou não do que a cronologia real. A
verdadeira realidade é aquela com a qual nos identificamos. Por isto conceitos
como verdade ou justiça foram de todo descartados.
FM | Evidente que tua visão é assombrosa e nos leva a crer que
já não temos o menor domínio sobre a realidade.
BM | Desculpas pela interrupção, porém quando foi que nós
tivemos algum dia domínio sobre a realidade?
FM | A história é a expressão desse domínio, não?
BM | A história é um conforto. Aquilo que traduz interesses que
conduzem a certa normalidade. Retorno ao tema bíblico. Os livros foram escritos
como uma fiação de interesses em estabelecer uma relação entre criador e
criatura. Não propriamente uma relação de subserviência, mas antes, porque são
bem mais astutos, de compreensão distinta de duas dimensões, a carnal e a
espiritual.
FM | Observo que utilizaste como exemplo o roteiro de uma série
produzida para televisão.
BM | A arte, é natural que assim se tenha dado, mudou inúmeras
vezes de face. Cai por terra a importância magistral que possa ter um livro
quando este não é lido. A prevaricação entre arte e propaganda, arte e
religião, arte e ciência, deu frutos, sobretudo ao longo do século XX, que já
nos são bem conhecidos. Há uma natural hierarquia de valores propagados pela
arte que são definidos de acordo com seu alcance. Os tais meios de comunicação
que, em grande parte, não estiveram jamais interessados em comunicar a
estética, mas antes em propagar suas filiações cartoriais. A arte foi de algum
modo se amoldando ao universo possível. Sob este aspecto da comunicação quase
sempre esquecemos – em grande parte por um purismo estúpido de certa parcela de
criadores – que boa fortuna estética foi gozada, por um público atento, através
das radionovelas, dos gibis, dos documentários.
FM | As telenovelas?
BM | Estas foram de um completo desperdício. Chega a ser
criminosa a forma como roteiristas queimaram um veículo tão promissor,
subjugados por razões banais de contrato e ego.
FM | Porém estamos de volta à televisão…
BM | Sim, e de um modo muito curioso. A incompetência reiterativa do cinema, que se
esgotou como criação própria, e passou a viver da adaptação de títulos
literários do grande mercado. Mais do que isto, passou a depender de um
processo reiterativo de datas e gêneros, como o da indústria da propaganda.
Basta pensar na alternância de temas que se repetem à exaustão. E agora mais
recente o que se poderia chamar de um tiro de misericórdia: a completa dependência
do cinema dos roteiros de histórias em quadrinhos. É um mercado que colapsa.
Veja bem, a televisão alcançou os níveis mais altos de desgaste com os talk
shows. Não há nada mais medíocre na esfera do entretenimento do que a grade de
programas de qualquer televisão no mundo. No entanto, o desgaste do cinema –
não apenas do ponto de vista estético, mas também em sua cota comercial – deu
ânimo a uma nova aposta de criação: a série.
FM | Mas este gênero não é novo…
BM | Eis aqui mais uma preciosidade de equívocos na relação
entre criação e produção: o novo. Ora, o que diabos é novo desde que Salomão…
FM | O que indago é como um gênero já desgastado se recupera, a
ponto de alcançar altíssima audiência, e migrar não apenas os cheques de
produção como também o espectro de criadores: roteiristas, diretores, atores
etc.
BM | A relação entre o desgaste e a novidade, eis um ponto. O
modo fortuito como um aspecto se aproveita do outro. O estabelecimento de uma
sociedade que é induzida a não sair de casa. Não esqueçamos que os cinemas
foram transferidos para a área interna dos shoppings centers por razões de
conveniência mercadológica, porém com o apelo expressivo da segurança. As
facilidades tecnológicas de acesso, gratuitas ou a baixo custo, a um mundo de
entretenimento. A ilusão de que somos todos iguais. Eis aí algumas boas razões,
porém não as únicas. Algo que tenho observado é que uma vez mais a arte volta a
recuperar sua percepção de como atua a memória. Se pensarmos em séries para
televisão que são adaptações de clássicos da literatura, elas são ao mesmo
tempo uma perversão ou distensão do modelo referencial. A memória aqui não
precisa atuar como elemento desvirtuante da realidade, mas antes como um
cúmplice, criando um ambiente novo como por efeito propagador de sua concretude
irrefutável. Basta observar o comportamento de roteiros de séries como Hannibal, Bates Hotel, The exorcist…
FM | Uma nova realidade ficcional?
BM | Exatamente isto. A arte foi pouco a pouco sendo dominada
pela realidade. Metade do século XX está tomada por arte que é mero revival. A
cópia da cópia da cópia. Perdemos o sentido da sátira, que é fundamental para
reconstruir o senso crítico da criação. O que eu vejo agora é um tipo de
roteiro que é ao mesmo tempo a crença e a negação na história. A memória me diz
que houve tal fato, sim, eu aceito, porém eu queria agregar aqui algumas
considerações. Eu vejo os roteiristas me dizendo essa frase a todo instante. E
é exatamente o que temos que fazer. Veja bem, mesmo quando se utiliza um
recurso ficcional das histórias em quadrinhos, como é o caso da série Gotham, ela não reproduz os caprichos
narrativos da era Batman, mas antes inventaria um mundo anterior a seu
surgimento. Ou seja, já não importa que a realidade exista – sonhada ou
concretamente realizada –, mas sim que a observemos por outro prisma,
questionável ou não, porém pulsante, sedutor, que nos leve a entender e/ou
definir melhor o que somos. Assim deve atuar a arte.
FM | Por último eu gostaria de saber o que o levou a estudar o
tema, considerando que sua área é bem distinta. E a sua cegueira não deixa de
ser um componente singular na orquestração do discurso…
BM | (gargalhadas) Perdão pelo impulso, mas não posso deixar de considerar
quando menos engraçado o fato de que um cego não possa perceber, assim como que
minha experiência como exorcista seja tudo menos uma profissão. Fui cego por um
exorcismo complicado em que o pobre garoto possuído imprimia olhos por todas as
paredes do quarto. Cegar os meus olhos foi o preço que paguei para compreender
que eu estava dirigindo minhas ações a um lugar errado. O mundo nem sempre é o
que vemos. A rigor, ele é fruto de ilusão do que vemos. Não, meu caro, eu não
sou cego. E tudo o que tenho dito até aqui ainda é parte de um ritual de
exorcismo. Agora, cego? Quem sabe quantas luzes o mundo não esquecido de
acender! Confesso que diviso cores e formas, intenções e símbolos. Nada no
mundo jamais me passou despercebido.
*****
FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta,
ensaísta, editor, tradutor. Dirige a Agulha
Revista de Cultura e a ARC Edições. Contato: floriano.agulha@gmail.com. Página ilustrada com obras de Kenichi
Kaneko (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
*****
Agulha Revista de
Cultura
Fase II | Número 22 |
Dezembro de 2016
editor geral |
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente |
MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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FLORIANO MARTINS
revisão de textos
& difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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