quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

FLORIANO MARTINS | Um encontro impossível com Bartolomeu Mourisco


A rara oportunidade que tive de conhecer o padre Bartolomeu Mourisco se deu em face de um encontro com o quadrinista Adriel Contieri, quando detalhávamos o roteiro de uma narrativa que se passava em um sanatório. O psiquiatra Genaro Fiord, que então dirigia a instituição, havia convidado alguns experts em áreas afins, em face de um dilema quando menos curioso que havia surgido no local. Ali estavam Arcádio Tramposo e René del Río, respectivamente, satanista e espírita, de reconhecido renome em seus países. Bartolomeu Mourisco era o nome mais conhecido, um exorcista que havia sido excomungado pelo Vaticano em função de um misterioso processo que envolvia a morte de um garoto. Fui convidado na condição de roteirista, e nisto havia um acordo de não revelar nada a respeito do encontro, dada as exigências contratuais com a editora que produzirá a novela gráfica. Devo confessar a minha fortuna pelo encontro com todos, mas em especial destaco a alegria da entrevista que realizei com o padre Bartolomeu. Desde que afastado de suas atividades religiosas, dedicou-se ao estudo da configuração do caráter a partir da interferência da arte. Durante o período em que estivemos todos reunidos no sanatório, mesmo considerando as insistências do Dr. Fiord, não se conseguiu fotografar Bartolomeu. No entanto, a enfermeira Joana Guaita guardou consigo um crayon realizado por Kaliga Pott, uma jovem desenhista que nos acompanhava graças a seu talento assombroso no que diz respeito a um traço automático, por vezes quase uma prefiguração das cenas que enfrentamos naqueles dias. O crayon foi tomado de suas mãos, ainda em gestação, amassado e borrado pelo próprio Bartolomeu, que a repreendeu duramente. No entanto, aqui o temos, como um registro mágico desse encontro impossível. [FM]

FM | Talvez um bom começo para nosso diálogo fosse essa tua relação sempre ousada com a memória sonhada. Seria algo assim como recordar o inexistente?

BM | É uma boa imagem, não há dúvida. A memória é uma grande trapaceira. Inventa mundos a bel prazer, distorce fatos, reformata sentimentos, faz de tudo. Talvez seja ela, a memória, o protagonista máximo de toda a narrativa que entendemos como tal. Veja o caso desta série para televisão intitulada Westworld. É uma espécie incomum de ficção sobre o passado. Mesmo que esteja ambientada em um futuro em que o avanço da robótica efetiva nossos temores no erro humano, onde esse avanço tecnológico atua é justamente no passado. Não há outra saída para a criação que não seja a recriação. O mundo acaba sempre sendo o que jamais deixou de ser: uma janela perene para o erro. Até aí tudo bem, mas o que o seriado evidencia é a peleja entre a inocência e a perversidade. Por trás de todo benefício se encontra um mapa de carnificinas.

FM | A história então seria fruto único do que a memória registra como factual. Mas não foi sempre assim?

BM | A distinção – e de certo modo ainda persistimos em tal equívoco – se encontra no fato de que sempre pensamos que nossos atos alimentam a memória, quando na verdade ela manipula uma dieta própria.

FM | De que modo a arte lida com essa perspectiva?

BM | Não existe a arte e sim o artista. A arte é um sucedâneo por vezes lacrimoso das inquietudes do artista. Basta substituir arte por criação, pois justamente disto se trata. E partir do paradigma bíblico: quantos confundem Deus com o homem? Quem é o criador, quem é a criatura? A memória se aproveita dessa distração de valores.

FM | Mas quem então se põe no lugar de quem?

BM | Este é o ponto curioso da fantasia em que chegamos: já não importa. Tanto nos fascina a ficção que ela pode se disfarçar de uma alegada memória de fatos ocorridos e não a questionamos em momento algum. Isto porque o deleite define melhor o que é crível ou não do que a cronologia real. A verdadeira realidade é aquela com a qual nos identificamos. Por isto conceitos como verdade ou justiça foram de todo descartados.

FM | Evidente que tua visão é assombrosa e nos leva a crer que já não temos o menor domínio sobre a realidade.

BM | Desculpas pela interrupção, porém quando foi que nós tivemos algum dia domínio sobre a realidade?

FM | A história é a expressão desse domínio, não?

BM | A história é um conforto. Aquilo que traduz interesses que conduzem a certa normalidade. Retorno ao tema bíblico. Os livros foram escritos como uma fiação de interesses em estabelecer uma relação entre criador e criatura. Não propriamente uma relação de subserviência, mas antes, porque são bem mais astutos, de compreensão distinta de duas dimensões, a carnal e a espiritual.

FM | Observo que utilizaste como exemplo o roteiro de uma série produzida para televisão.

BM | A arte, é natural que assim se tenha dado, mudou inúmeras vezes de face. Cai por terra a importância magistral que possa ter um livro quando este não é lido. A prevaricação entre arte e propaganda, arte e religião, arte e ciência, deu frutos, sobretudo ao longo do século XX, que já nos são bem conhecidos. Há uma natural hierarquia de valores propagados pela arte que são definidos de acordo com seu alcance. Os tais meios de comunicação que, em grande parte, não estiveram jamais interessados em comunicar a estética, mas antes em propagar suas filiações cartoriais. A arte foi de algum modo se amoldando ao universo possível. Sob este aspecto da comunicação quase sempre esquecemos – em grande parte por um purismo estúpido de certa parcela de criadores – que boa fortuna estética foi gozada, por um público atento, através das radionovelas, dos gibis, dos documentários.

FM | As telenovelas?

BM | Estas foram de um completo desperdício. Chega a ser criminosa a forma como roteiristas queimaram um veículo tão promissor, subjugados por razões banais de contrato e ego.

FM | Porém estamos de volta à televisão…

BM | Sim, e de um modo muito curioso.  A incompetência reiterativa do cinema, que se esgotou como criação própria, e passou a viver da adaptação de títulos literários do grande mercado. Mais do que isto, passou a depender de um processo reiterativo de datas e gêneros, como o da indústria da propaganda. Basta pensar na alternância de temas que se repetem à exaustão. E agora mais recente o que se poderia chamar de um tiro de misericórdia: a completa dependência do cinema dos roteiros de histórias em quadrinhos. É um mercado que colapsa. Veja bem, a televisão alcançou os níveis mais altos de desgaste com os talk shows. Não há nada mais medíocre na esfera do entretenimento do que a grade de programas de qualquer televisão no mundo. No entanto, o desgaste do cinema – não apenas do ponto de vista estético, mas também em sua cota comercial – deu ânimo a uma nova aposta de criação: a série.

FM | Mas este gênero não é novo…

BM | Eis aqui mais uma preciosidade de equívocos na relação entre criação e produção: o novo. Ora, o que diabos é novo desde que Salomão…

FM | O que indago é como um gênero já desgastado se recupera, a ponto de alcançar altíssima audiência, e migrar não apenas os cheques de produção como também o espectro de criadores: roteiristas, diretores, atores etc.

BM | A relação entre o desgaste e a novidade, eis um ponto. O modo fortuito como um aspecto se aproveita do outro. O estabelecimento de uma sociedade que é induzida a não sair de casa. Não esqueçamos que os cinemas foram transferidos para a área interna dos shoppings centers por razões de conveniência mercadológica, porém com o apelo expressivo da segurança. As facilidades tecnológicas de acesso, gratuitas ou a baixo custo, a um mundo de entretenimento. A ilusão de que somos todos iguais. Eis aí algumas boas razões, porém não as únicas. Algo que tenho observado é que uma vez mais a arte volta a recuperar sua percepção de como atua a memória. Se pensarmos em séries para televisão que são adaptações de clássicos da literatura, elas são ao mesmo tempo uma perversão ou distensão do modelo referencial. A memória aqui não precisa atuar como elemento desvirtuante da realidade, mas antes como um cúmplice, criando um ambiente novo como por efeito propagador de sua concretude irrefutável. Basta observar o comportamento de roteiros de séries como Hannibal, Bates Hotel, The exorcist









FM | Uma nova realidade ficcional?

BM | Exatamente isto. A arte foi pouco a pouco sendo dominada pela realidade. Metade do século XX está tomada por arte que é mero revival. A cópia da cópia da cópia. Perdemos o sentido da sátira, que é fundamental para reconstruir o senso crítico da criação. O que eu vejo agora é um tipo de roteiro que é ao mesmo tempo a crença e a negação na história. A memória me diz que houve tal fato, sim, eu aceito, porém eu queria agregar aqui algumas considerações. Eu vejo os roteiristas me dizendo essa frase a todo instante. E é exatamente o que temos que fazer. Veja bem, mesmo quando se utiliza um recurso ficcional das histórias em quadrinhos, como é o caso da série Gotham, ela não reproduz os caprichos narrativos da era Batman, mas antes inventaria um mundo anterior a seu surgimento. Ou seja, já não importa que a realidade exista – sonhada ou concretamente realizada –, mas sim que a observemos por outro prisma, questionável ou não, porém pulsante, sedutor, que nos leve a entender e/ou definir melhor o que somos. Assim deve atuar a arte.

FM | Por último eu gostaria de saber o que o levou a estudar o tema, considerando que sua área é bem distinta. E a sua cegueira não deixa de ser um componente singular na orquestração do discurso…

BM | (gargalhadas) Perdão pelo impulso, mas não posso deixar de considerar quando menos engraçado o fato de que um cego não possa perceber, assim como que minha experiência como exorcista seja tudo menos uma profissão. Fui cego por um exorcismo complicado em que o pobre garoto possuído imprimia olhos por todas as paredes do quarto. Cegar os meus olhos foi o preço que paguei para compreender que eu estava dirigindo minhas ações a um lugar errado. O mundo nem sempre é o que vemos. A rigor, ele é fruto de ilusão do que vemos. Não, meu caro, eu não sou cego. E tudo o que tenho dito até aqui ainda é parte de um ritual de exorcismo. Agora, cego? Quem sabe quantas luzes o mundo não esquecido de acender! Confesso que diviso cores e formas, intenções e símbolos. Nada no mundo jamais me passou despercebido.



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FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor, tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e a ARC Edições. Contato: floriano.agulha@gmail.com. Página ilustrada com obras de Kenichi Kaneko (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.


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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 22 | Dezembro de 2016
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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