Muitas vezes, ao me aproximar de um livro, me lembro
do filme Um dia, um gato. Filme
antigo, mas quem o assistiu vai compreender: o felino se apoderava de óculos e
o mundo mudava através de suas lentes azuis; assim, quando abrimos e lemos um
livro, novos horizontes se abrem, nos permitindo ter visões diferentes sobre
qualquer assunto, porque livros nos levam à outra frase, também antiga, mas
sempre válida: “Depois de olhar para o outro lado do muro, ninguém continua
igual”.
Talvez por esse desejo de ir mais longe, ver novos horizontes, sempre
estive perto dos livros.
Livros escolares, Faculdade de Letras da USP, Mestrado lá fora e sempre
livros; por gosto pela literatura, escolhi os livros de ficção, romances,
contos, crônicas e também, e por que não?, a poesia nossa de cada dia!
No final da década de 1970, a volta para o Brasil me apresentou uma
Universidade então esvaziada. Mas o caminho estava traçado e enveredei por
outras vertentes desse caminho – traduções, críticas e resenhas em jornais e
revistas, por um longo período de muitos anos, quando revistas como a Veja dedicavam páginas inteiras para as
resenhas de livros, havia editorias de livros em revistas como a Isto É, revistas especializadas como a Leia Livros, mantida pela Editora
Brasiliense, enquanto a Folha Ilustrada
brilhava com seu Caderno de Cultura… Livros,
livros, resenhas e mais livros e o JT –
Jornal da Tarde era o jornal mais bonito do Brasil e, além de tudo, um
jornal bem feito, dizíamos nós que o fazíamos e os leitores aprovavam.
Tempo em que O Globo e o Jornal do Brasil davam espaço para furos
de reportagem e notícias culturais e de livros e no JT abríamos páginas centrais para falar dos livros de Simone de
Beauvoir e Sartre e discutíamos o mais recente livro publicado de Roland Barthes.
Mas o país tem pressa, crises, pouca memória, tempo é dinheiro e os
espaços para essas atividades vão diminuindo na imprensa. Em 1998, chegou a hora
de voltar para a Academia na coordenação de um grupo que, ainda hoje, me parece
muito bacana – discutíamos, levando grandes nomes da Letras, os autores que
seriam pedidos no vestibular. Assim, passaram pelo auditório da Universidade de
Mogi das Cruzes, capitaneada pelo Professor Dr. Leão Lobo, recém-saído da
Reitoria da USP, nomes como Benjamim Abdalla Jr., Antonio Medina, Ivan
Teixeira, Fábio Lucas, Silvio Fiorani, Ignácio de Loyola Brandão, Olga Savary e
Dora Ferreira da Silva, a magnífica tradutora de Rilke, para discutir nossa
literatura com alunos de cursinho.
Ainda uma vez, hora de repensar. Trabalho em algumas editoras e coordeno
a criação do selo Amarílis na Editora Manole. Tempos bons, de muitos desafios,
mas uma crise, a de 2008 torna difícil a continuação nesse projeto e mais uma
vez, impulsionada pela Literatura, crio a LRC, minha agência literária.
Trabalho apaixonante, grandes desafios, conhecer autores, ler livros, falar com
editores, inserir os livros nas diversas editoras; grandes nomes passam por
aqui, autores com sua excelência, livros de rara beleza e qualidade e, também,
autores inéditos ou quase, que a agência consegue inserir em editoras, formando
novos nomes, alguns hoje consagrados no mercado editorial brasileiro.
Mas, como diziam os antigos, a vida dá voltas, os desafios estão aí para
serem aceitos e, num país de literatura tão rica como o Brasil, que já nos deu
escritores como João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Adonias Filho, José Lins
do Rego, Érico Veríssimo e tantos outros, onde estão Josué Guimarães, que
escreveu o fabuloso Camilo Mortagua,
ou Tabajara Ruas, que nos deixou seu romance O Amor de Pedro por João, ou Hermilo Borba Filho, com seu delicioso
O General está Pintando, ou, ainda, como
não lembrar que Paulo Emílio Salles Gomes por vezes abandonou as telas do
cinema e, diante das letras, nos presenteou com As três Mulheres de 3 P? Por vezes, não há dúvida, recuperamos
algum grande escritor como Manuel Antonio de Almeida e seu Memórias de um Sargento de Milícias e, por vezes, surge a lucidez
de Joselia Aguiar, a homenagear Lima Barreto na próxima Flip. Mas onde está
Marques Rebelo, com sua brilhante trilogia A
Guerra está em Nós, verdadeiro retrato da sociedade carioca das primeiras
décadas do século passado? Onde estão tantos outros grandes nomes da nossa literatura?
O esquecimento parece cobri-los.
Impressões caras, leitores poucos, memória fraca ou nenhuma de um país
sem memória e, em 2013, surge a Editora Cintra, uma casa de publicação apenas
digital. Na Editora Cintra publicamos Geraldo Ferraz, que teve seu romance Doramundo, o amor pleno de incidências
sociais entre Dora e Mundo, filmado por João Batista de Andrade, Patrícia
Galvão, o ícone Pagu, da qual publicamos Parque
Industrial, o primeiro romance proletário do Brasil que, depois dessa
edição digital alçou mais uma vez voo, provando que a boa literatura não pode
morrer e alcançou edições impressas na França, Croácia, México e, futuramente,
Argentina, aumentando o percurso iniciado nos anos 1960 quando essa obra
alcançou os EUA na brilhante tradução de K. David Jackson e Elizabeth Jackson.
Resgatamos também o teatro de Jorge Andrade, que nos conta parte da
história paulista nas dez obras que nos deixou, colocando nas letras e nos
palcos os personagens da época do café em São Paulo, mostrando-os de forma fria
e objetiva, em textos em que a emoção deriva das próprias tramas e ações.
Publicamos ainda Esdras do Nascimento, único escritor brasileiro cuja
obra, Variante Gotemburgo, foi aceita
como sua tese de doutorado, ou Menalton Braff, premiado com um dos maiores
prêmios da literatura mundial, o Portugal Telecom e contumaz finalista desse e
de outros prêmios importantes como o Jabuti e o Sala São Paulo, ou a também
muito premiada Roseana Murray, que nos ensina que a vida pode ser contada em
poesia e tantos outros de igual e superior qualidade.
Essa é a maior possibilidade que nos proporciona a impressão digital,
com o tremendo inconveniente de angariar ainda menos leitores do que os livros
impressos, que já pagam por ter poucos leitores, o que faz da editora digital
um projeto para um longínquo futuro.
E em 2015 a Editora Cintra dá seu grande giro. Se nós salvamos do
esquecimento autores já consagrados, por que não tirar desse mesmo esquecimento
autores de grande qualidade que permanecem inéditos por falta de visibilidade?
É o círculo vicioso mais uma vez presente: o autor não é publicado porque é
inédito e é inédito porque não é publicado. E, nessa possibilidade de inovar
com a publicação digital, publicamos autores como Affonso de Barros que, em seu
livro A Batalha, narra a conquista de
sua Bahia de forma romanceada e rica, num texto em que revoluções, costumes e
figuras do século XVIII estão presentes numa trama heróica e ao mesmo tempo
poética nesse autor que faz da palavra escrita uma forma ampla de comunicação,
ou Matheus Arcaro que, em contos densos, narra a história de uma humanidade que
se procura em Violetas Velhas e Outras
Flores.
Na inovação caminha a editora, mas como compreender o presente se não
entendemos o passado? Então a Editora Cintra aposta mais uma vez buscando em
nossos ancestrais indígenas das diversas etnias, os escritores e ilustradores
que até a pouco ignorávamos e ainda estamos aprendendo a apreciar, quando
narram suas lendas e histórias em palavras encantatórias como nas rodas que
fazem aos finais de tarde nas aldeias para as crianças ouvirem essas histórias
contadas pelos mais velhos.
Escritos antigos, contados por escritores mais recentes e ainda pouco
conhecidos, embora alguns deles, como Yaguarê Yamã, que recebeu o prêmio White
Ravens da Biblioteca de Munique, e Olívio Jekupê, já publicado na Itália, juntamente
com outros grandes escritores premiados com o catálogo de Bolonha, sejam
escritores de alentadas obras como Escritos
Indígenas – uma antologia que a própria Editora Cintra publicou e
disponibiliza, abrigada no sítio web da Amazon.com.br.
Mas nem só de queixas vive a literatura brasileira, nem suas editoras, já
que pertencendo a esse continente americano, diretamente ligada a uma América Latina
riquíssima de grandes nomes, fantásticos escritores, ainda nos reserva boas
surpresas como a de ver nossa literatura indígena reconhecida em países como a
Costa Rica que em número anterior de sua revista Matérika, através de
entendimentos com o escritor Alfonso Peña, publicou esses Escritos Indígenas, uma antologia de vários escritores e
ilustradores indígenas, e nos presenteia com a possibilidade de publicar desse
mesmo Alfonso Peña o titulo Lábios
Pintados de Azul que nos leva às profundezas da podridão humana, nos
sombrios corredores do sub-mundo.
Pobre de marketing, caro num país de poucos leitores, ainda acredito que
se possa romper o circulo – não se publica porque não há leitores e não há
leitores porque não se publica –, neste país de pouca memória e política
instável, ao invés de continuar repetindo o jargão dos Tristes Trópicos de Claude Lévy-Strauss.
LEDA CINTRA CASTELLAN (Brasil, 1959). Agente
literária e editora.Contato: leda.editoracintra@gmail.com. Página ilustrada com
obras de Kenichi Kaneko (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 22 | Dezembro de 2016
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO
SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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os artigos assinados não refletem necessariamente o
pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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