● DIÁRIO DE BORDO DE UMA NAU CATARINETA EM CHAMAS
0 | Um caderno de notas
também é boa pauta para um editorial, sobretudo em um país tão
assombrosamente aturdido e desconjuntado como o nosso. Algo que me espanta de
modo vertiginoso é o talento imenso que fomos descobrindo no Brasil para adiar
a realidade ou mesmo para implodi-la em confessionários de alheamento. E a sede
renovada com que velhos temas retornam à primeira página de nosso cotidiano, já
tão cínicos que nem se preocupam em retocar a maquiagem. Talvez por isto o país
não tenha até hoje aprendido a fazer cinema. Já somos demasiado uma ficção
perene.
1 | Mercado de livros não
sustenta escritores e sim mercadores de livros. Enquanto
não se abordar cruamente o tema restará a confusão. 20 anos atrás a nomeação de
um escritor ao Nobel de Literatura significava sua fortuna imediata. Hoje nem
tanto. Em parte porque há um desacordo entre as preferências do mercadão e da
academia sueca. Paulo Coelho, por exemplo, que não é Nobel – nem nunca será –
sozinho vende mais livros do que os 10 últimos premiados juntos. Não é a queda
de vendagem de livros que preocupa a literatura e sim a sua queda de qualidade.
O mercado possui seus interesses próprios, que naturalmente são surdos a
quaisquer planos de ousadia estética ou consistência estilística, a menos que se
convertam a um modelo rentável. Paulo Coelho não é um inimigo da literatura,
mas antes um termômetro eficaz para identificar a distinção essencial entre
mercado e literatura. Resta saber agora quem faliu primeiro: a literatura ou o
mercado.
2 | Há instâncias em que a
ficção desorienta a realidade. Temos verdadeira obsessão por provar um
encadeamento lógico da criação artística, ao mesmo tempo em que muitos fatos históricos são aceitos demasiado facilmente e
sem a menor exigência de comprovação. De algum modo o ambiente religioso
pertence mais à ficção do que à realidade. No entanto, é plenamente aceito como
real. Sem ter que justificar-se, como o fazem o cinema e o romance, firmando
que foram ao menos baseados em fatos reais. Talvez o problema maior esteja no
conceito de realidade, que se volatizou de tal forma que hoje quando
pronunciamos a palavra já não sabemos ao certo do que estamos falando. O que
deve importar em um objeto de arte, sua veracidade ou seu significado? Acaso um
aspecto elimina o outro? A religião é fruto de uma ficção intencional. A
ciência vem do pomar do mais puro acaso, em sua obsessão por aprender a lidar
com o desconhecido. A religião não tem sede de conhecimento e sim de domínio. A
arte é a soma de todas as hipóteses. Aquilo que entendemos como Civilização, e
que juntamente consigo arrasta o conceito de Barbárie, seu duplo, é uma matriz
defunta que vem se arrastando com insuportável fedor. A espécie humana, assim
como a conhecemos, já acabou. Ainda não sabemos o que virá, porém estamos em
uma fase plena de catacumbas que bailam.
3 | Um lagarto coberto de
poeira descreve uma perspectiva de fuga. Nenhum de nós deveria estar ali. Uma
sombra perdeu a chamada. O acaso geralmente reluta em crer em si. Deveríamos ter
visto que o túmulo não se movia, que o lagarto
insistia em seu relato. O desterro da imagem fixa em uma devassidão de
significados. Tudo o homem quer para si e deixa de dizer o nome de seu vício.
Uma verdade escavada jamais altera a temperatura do terreno. Quem ajusta os
próximos passos das origens mais tempestuosas? Um grupo, uma voz dissidente, um
enigma, talvez o verbo sem fé, com quanta relutância aprendemos a desvendar a
realidade? Talvez o lagarto tenha a melhor compreensão do que se passou: um mar
desolado: uma sombra desgarrada: um ovo sem asas. Um lagarto morto dá conta de
vidas que até hoje não superamos. Jamais soube como viver sem a imunidade de
tantas senhas. As formas são compatível recuo com as sombras insidiosas. A luz
queima. Nenhum mundo é alheio ao que não se quer de si.
4 | A voz do “FORA [este ou aquele]” é uma
curiosa soma de quem jamais o quis eleito e quem o elegeu e se arrependeu, Não
discuto sua inadequação às regras democráticas, mas sim o fato evasivo de que
expurgam alguém sem propor um substituto. Posso destituir um presidente por
dia, desde que eu tenha algo a propor para lhe substituir. E não me refiro
apenas a um nome, mas antes, bem antes, a uma soma de fatores administrativos
que justifiquem a mudança. Muitos se orgulham de haverem destituído a Dilma. Outros tantos se preparam para
destituir o Temer. Ninguém, no entanto, sugere, o que deve ser feito com essa
cadeira vaga que, a rigor, no mínimo norteia os destinos de nosso país, ou
melhor, para aqueles que não sabem o que é um país, os destinos do cotidiano de
cada um de nós. Torcer contra um presidente não é o mesmo que torcer contra um
time. Não importa o quanto as regras democráticas se confundam com a tabela de
um campeonato.
5 | Sempre achei tola a
discussão em torno da letra de canção popular integrar ou não o gavetão
genérico da literatura. Seria o mesmo que entender que a dramaturgia é uma
categoria à parte. Letristas de canção são tão escritores quanto os dramaturgos
e roteiristas de cinema e televisão. Igualmente escritores são os roteiristas
das popularíssimas histórias em quadrinhos. Sempre esquecemos que há autores que
trafegam por vários ambientes da escrita. O que deveria ser considerado é se as
obras se inscrevem em um rol que as qualifique como boa literatura. Leonard
Cohen, por exemplo, atua com maestria e densidade tanto na letra de canção
quanto no poema. Federico García Lorca manteve igual excelência no teatro e no
poema. Roteiros cinematográficos de Ingmar Bergman são verdadeiras obras de
arte. Particularmente acho que um Paul Simon é muito mais denso em sua
configuração poética. Sem os excessos discursivos de um Bob Dylan, cuja voz
(mas este é outro aspecto) é intragável. Agora, insustentável mesmo, pelo menos
nos últimos dez anos, é a lista de eleitos e candidatos ao Nobel de Literatura.
Questionáveis deveriam ser as justificativas que a academia sueca encontra para
premiá-los. Tudo isto me parece uma melhor discussão. A outra não, a que está
em pauta, do velho preconceito em relação ao letrista de canções, esta não me
interessa.
6 | O beijo de uma esponja é
como a percepção de que o passado almeja a deformação do futuro. Vejo como meu
nome rasteja buscando o teu, como trocam letras em
um mercado incomum, até que se pareçam ao menos aos olhos de um espelho.
Comprei bilhete para uma estação que desconheço, onde suponho estarias à minha
espera. Não estavas, e tive que dali saltar a outro acaso sem pistas. Por
instantes me acalmei a pensar em teus músculos, como eu me sentia em teus
braços, quem sabe não arrisco meus últimos vinténs até a aldeia perdida de
nossos sonhos. Estarás ali? Como é possível alguém desfiar a vida assim sem
cabo ou fortuna? Como faz aquele que não tem para onde voltar? O mundo jamais
consentiu com suas mais afortunadas dissidências. Talvez um dia eu ainda esteja
por aqui, e as tuas razões sejam aborrecidamente as mesmas.
7 | O Brasil é aparentemente
um país anti-sistêmico. Há inúmeros ensaios sobre o que se chama de
carnavalização de nossa cultura. No entanto, essa leitura é fruto de uma
estratégia de poder, dentro do espírito mais primário do conceito de “pão &
circo”. Quando John Lennon foi assassinado a mídia projetou uma overdose
mítica, já de todo desnecessária, por sua importância inquestionável. O
brasileiro Almir Chediak foi estupidamente assassinado por um sequestrador
incompetente. A mídia no Brasil jamais conseguiu entender a grandeza de sua
importância para a música brasileira. Sua série de songbooks tem uma
dupla importância que se pode dizer épica: a histórica recuperação de
patrimônio, o ensinamento do amor pelo que é nosso, no caso dos compositores,
ao lado da lição que dá aos cantores, de que fiquem atentos ao veio riquíssimo
de nosso cancioneiro, inclusive variando repertório e concepções de arranjo.
Sempre buscamos equivalências em casa para o que há de mais patético no mundo e
nunca nos orgulhamos do que temos de mais relevante.
8 | Reproduzo aqui duas
reflexões do poeta Zuca Sardan:
I / ARTE E MAGIA
A Arte começou há 40.000
anos, com as pinturas rupestres nas cavernas.
Porque as pinturas no mais longínquo e profundo fim da caverna, e não na
entrada, onde havia ainda alguma luz para serem vistas? Porque fizeram as
pinturas em local das mais profundas trevas? Justamente, para NÃO serem vistas.
Trata-se de obra de natureza mágica. A Arte começa com a MAGIA, e não com a
exibição. E a Magia está ligada ao Oculto. Ainda no fundo das cavernas, além
das pinturas figurativas, em que se revelam passes de transferência de energia,
pela aposição das mãos do caçador sobre a caça em vias de morrer, há um ritual
de transmissão de energia vital, pela aposição ritual das mãos do caçador sobre
a vítima. A Vida é uma Força Cósmica. As centenas de mãos espalmadas, marcadas
em seu contorno, são igualmente de natureza mágica. Além da parte figurativa,
há ainda uma série de traços em fila, formando uma sequência
rítmica. Trata-se de uma captação gráfica do som. Os artistas queriam DESENHAR
O SOM. Foi o início da Descoberta do ALFABETO FONÉTICO. Assim, a Genialidade da
Espécie Humana se revela nos mais longínquos tempos, com a Criação Mágica
das Artes. Na Arte Moderna, foram os
Surrealistas que realçaram a natureza mágica da Arte.
Minha Metade da Vida já
se foi há 50 anos... Vi hoje uma Expô Surrealista na Kunst Halle. Entre os
artistas, meu mestre e amigo Dalí, que nos dois últimos anos de sua vida,
justamente aos oitenta e tais, seu estado de saúde, e de lucidez, declinou vertiginosamente, e ele assinava suas
gravuras que lhe trazia o ajudante Pepe que copiava antigas do Mestre, com
pequenas variações, trocava a cor vermelha do fundo por verde, uma guitarra
virava bengala, botava umas formigas nos relógios-moles, e salpicava muletas
aqui e acolá. A descoberta do ardil causou grande escândalo, acusaram o Mestre
de plágio (ele já tão gagá, não sabia mais o que fazia, a mão tremia, e o Pepe
passou a apor-lhe por procuração a assinatura). A meio de polêmicas o processo
seguiu até o dia em que o Dalí faleceu. Adiaram talvez por três dias a notícia
do falecimento, pra que o Pepe ainda aprontasse umas duzentas novas gravuras.
Agora, dado o sentido surrealista de Dalí, não só na arte, mas na recriação da
vida dentro da própria vida, eu me pergunto se as gravuras do Pepe, não serão
autênticas manifestações da Arte na Vida de Dalí, e assim, eram obras do
Mestre. Eis a verdadeira questão.
9 | Gran Finale. Era para ter uma última página, com aquele
final empolgante que verte lágrimas no público, que traça uma linha mágica
entre os que escrevem e os que leem. Mas nada. Tanto repetimos as cenas
bombásticas, da forma mais inconsequente, que agora já nada faz sentido. Nada
começa. Nada termina. Mal passamos a página e a realidade apenas se repete. Então,
fazendo coro ao Zuca Sardan, recordemos Dalí, ainda em 1930: “Tudo leva a crer
que a realidade, em um futuro próximo, será considerada unicamente como um
simples estado de depressão e de inatividade do pensamento e, por consequência,
como uma sucessão de momentos de ausência do estado de vigília”. Profético?
Os Editores
● ÍNDICE
FEDERICO
RIVERO SCARANI | un aspecto fantástico en el cuento “Episodio”, de Horacio
Quiroga
DANIEL
ARELLA | La memoria táctil del poeta venezolano Alfredo Silva Estrada
EDSON MANZAN | O estilo de James Strachey em The
interpretation of dreams
ESTER
FRIDMAN | Uma interpretação do aforismo “da visão e enigma”, de Assim falou Zaratustra, sob um aspecto
corporal
GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | “Señor
barroco”: algunas precisiones sobre lo barroco americano y el romanticismo en
José Lezama Lima
JOSÉ
ÁNGEL LEYVA | Rubén Arenas, El discreto encanto de la ironía
LEONTINO FILHO | Sérgio
Campos e as dobraduras da fala
MAX
HARRIS | Commentary on Australian poetry
MIGUEL
MÁRQUEZ | Luis Alberto Crespo: el paraíso de la aridez
VALDIR ROCHA | Helena Armond, salvação pela palavra
ARTISTAS
CONVIDADOS | ALFONSO PEÑA | Amirah Gazel, Arte Amigo y los “diablillos” de la
magia cotidiana
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/02/alfonso-pena-amirah-gazel-arte-amigo-y.html
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Página ilustrada con obras de los niños mágicos
del Arte Amigo (Costa Rica), artistas invitados de esta edición de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 23 | Janeiro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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