segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Agulha Revista de Cultura # 93 | Editorial


● DIÁRIO DE BORDO DE UMA NAU CATARINETA EM CHAMAS

0 | Um caderno de notas também é boa pauta para um editorial, sobretudo em um país tão assombrosamente aturdido e desconjuntado como o nosso. Algo que me espanta de modo vertiginoso é o talento imenso que fomos descobrindo no Brasil para adiar a realidade ou mesmo para implodi-la em confessionários de alheamento. E a sede renovada com que velhos temas retornam à primeira página de nosso cotidiano, já tão cínicos que nem se preocupam em retocar a maquiagem. Talvez por isto o país não tenha até hoje aprendido a fazer cinema. Já somos demasiado uma ficção perene.

1 | Mercado de livros não sustenta escritores e sim mercadores de livros. Enquanto não se abordar cruamente o tema restará a confusão. 20 anos atrás a nomeação de um escritor ao Nobel de Literatura significava sua fortuna imediata. Hoje nem tanto. Em parte porque há um desacordo entre as preferências do mercadão e da academia sueca. Paulo Coelho, por exemplo, que não é Nobel – nem nunca será – sozinho vende mais livros do que os 10 últimos premiados juntos. Não é a queda de vendagem de livros que preocupa a literatura e sim a sua queda de qualidade. O mercado possui seus interesses próprios, que naturalmente são surdos a quaisquer planos de ousadia estética ou consistência estilística, a menos que se convertam a um modelo rentável. Paulo Coelho não é um inimigo da literatura, mas antes um termômetro eficaz para identificar a distinção essencial entre mercado e literatura. Resta saber agora quem faliu primeiro: a literatura ou o mercado.

2 | Há instâncias em que a ficção desorienta a realidade. Temos verdadeira obsessão por provar um encadeamento lógico da criação artística, ao mesmo tempo em que muitos fatos históricos são aceitos demasiado facilmente e sem a menor exigência de comprovação. De algum modo o ambiente religioso pertence mais à ficção do que à realidade. No entanto, é plenamente aceito como real. Sem ter que justificar-se, como o fazem o cinema e o romance, firmando que foram ao menos baseados em fatos reais. Talvez o problema maior esteja no conceito de realidade, que se volatizou de tal forma que hoje quando pronunciamos a palavra já não sabemos ao certo do que estamos falando. O que deve importar em um objeto de arte, sua veracidade ou seu significado? Acaso um aspecto elimina o outro? A religião é fruto de uma ficção intencional. A ciência vem do pomar do mais puro acaso, em sua obsessão por aprender a lidar com o desconhecido. A religião não tem sede de conhecimento e sim de domínio. A arte é a soma de todas as hipóteses. Aquilo que entendemos como Civilização, e que juntamente consigo arrasta o conceito de Barbárie, seu duplo, é uma matriz defunta que vem se arrastando com insuportável fedor. A espécie humana, assim como a conhecemos, já acabou. Ainda não sabemos o que virá, porém estamos em uma fase plena de catacumbas que bailam.

3 | Um lagarto coberto de poeira descreve uma perspectiva de fuga. Nenhum de nós deveria estar ali. Uma sombra perdeu a chamada. O acaso geralmente reluta em crer em si. Deveríamos ter visto que o túmulo não se movia, que o lagarto insistia em seu relato. O desterro da imagem fixa em uma devassidão de significados. Tudo o homem quer para si e deixa de dizer o nome de seu vício. Uma verdade escavada jamais altera a temperatura do terreno. Quem ajusta os próximos passos das origens mais tempestuosas? Um grupo, uma voz dissidente, um enigma, talvez o verbo sem fé, com quanta relutância aprendemos a desvendar a realidade? Talvez o lagarto tenha a melhor compreensão do que se passou: um mar desolado: uma sombra desgarrada: um ovo sem asas. Um lagarto morto dá conta de vidas que até hoje não superamos. Jamais soube como viver sem a imunidade de tantas senhas. As formas são compatível recuo com as sombras insidiosas. A luz queima. Nenhum mundo é alheio ao que não se quer de si.

4 | A voz do “FORA [este ou aquele]” é uma curiosa soma de quem jamais o quis eleito e quem o elegeu e se arrependeu, Não discuto sua inadequação às regras democráticas, mas sim o fato evasivo de que expurgam alguém sem propor um substituto. Posso destituir um presidente por dia, desde que eu tenha algo a propor para lhe substituir. E não me refiro apenas a um nome, mas antes, bem antes, a uma soma de fatores administrativos que justifiquem a mudança. Muitos se orgulham de haverem destituído a Dilma. Outros tantos se preparam para destituir o Temer. Ninguém, no entanto, sugere, o que deve ser feito com essa cadeira vaga que, a rigor, no mínimo norteia os destinos de nosso país, ou melhor, para aqueles que não sabem o que é um país, os destinos do cotidiano de cada um de nós. Torcer contra um presidente não é o mesmo que torcer contra um time. Não importa o quanto as regras democráticas se confundam com a tabela de um campeonato. 

5 | Sempre achei tola a discussão em torno da letra de canção popular integrar ou não o gavetão genérico da literatura. Seria o mesmo que entender que a dramaturgia é uma categoria à parte. Letristas de canção são tão escritores quanto os dramaturgos e roteiristas de cinema e televisão. Igualmente escritores são os roteiristas das popularíssimas histórias em quadrinhos. Sempre esquecemos que há autores que trafegam por vários ambientes da escrita. O que deveria ser considerado é se as obras se inscrevem em um rol que as qualifique como boa literatura. Leonard Cohen, por exemplo, atua com maestria e densidade tanto na letra de canção quanto no poema. Federico García Lorca manteve igual excelência no teatro e no poema. Roteiros cinematográficos de Ingmar Bergman são verdadeiras obras de arte. Particularmente acho que um Paul Simon é muito mais denso em sua configuração poética. Sem os excessos discursivos de um Bob Dylan, cuja voz (mas este é outro aspecto) é intragável. Agora, insustentável mesmo, pelo menos nos últimos dez anos, é a lista de eleitos e candidatos ao Nobel de Literatura. Questionáveis deveriam ser as justificativas que a academia sueca encontra para premiá-los. Tudo isto me parece uma melhor discussão. A outra não, a que está em pauta, do velho preconceito em relação ao letrista de canções, esta não me interessa.

6 | O beijo de uma esponja é como a percepção de que o passado almeja a deformação do futuro. Vejo como meu nome rasteja buscando o teu, como trocam letras em um mercado incomum, até que se pareçam ao menos aos olhos de um espelho. Comprei bilhete para uma estação que desconheço, onde suponho estarias à minha espera. Não estavas, e tive que dali saltar a outro acaso sem pistas. Por instantes me acalmei a pensar em teus músculos, como eu me sentia em teus braços, quem sabe não arrisco meus últimos vinténs até a aldeia perdida de nossos sonhos. Estarás ali? Como é possível alguém desfiar a vida assim sem cabo ou fortuna? Como faz aquele que não tem para onde voltar? O mundo jamais consentiu com suas mais afortunadas dissidências. Talvez um dia eu ainda esteja por aqui, e as tuas razões sejam aborrecidamente as mesmas.

7 | O Brasil é aparentemente um país anti-sistêmico. Há inúmeros ensaios sobre o que se chama de carnavalização de nossa cultura. No entanto, essa leitura é fruto de uma estratégia de poder, dentro do espírito mais primário do conceito de “pão & circo”. Quando John Lennon foi assassinado a mídia projetou uma overdose mítica, já de todo desnecessária, por sua importância inquestionável. O brasileiro Almir Chediak foi estupidamente assassinado por um sequestrador incompetente. A mídia no Brasil jamais conseguiu entender a grandeza de sua importância para a música brasileira. Sua série de songbooks tem uma dupla importância que se pode dizer épica: a histórica recuperação de patrimônio, o ensinamento do amor pelo que é nosso, no caso dos compositores, ao lado da lição que dá aos cantores, de que fiquem atentos ao veio riquíssimo de nosso cancioneiro, inclusive variando repertório e concepções de arranjo. Sempre buscamos equivalências em casa para o que há de mais patético no mundo e nunca nos orgulhamos do que temos de mais relevante.

8 | Reproduzo aqui duas reflexões do poeta Zuca Sardan:

I / ARTE E MAGIA

A Arte começou há 40.000 anos, com as pinturas rupestres nas cavernas. Porque as pinturas no mais longínquo e profundo fim da caverna, e não na entrada, onde havia ainda alguma luz para serem vistas? Porque fizeram as pinturas em local das mais profundas trevas? Justamente, para NÃO serem vistas. Trata-se de obra de natureza mágica. A Arte começa com a MAGIA, e não com a exibição. E a Magia está ligada ao Oculto. Ainda no fundo das cavernas, além das pinturas figurativas, em que se revelam passes de transferência de energia, pela aposição das mãos do caçador sobre a caça em vias de morrer, há um ritual de transmissão de energia vital, pela aposição ritual das mãos do caçador sobre a vítima. A Vida é uma Força Cósmica. As centenas de mãos espalmadas, marcadas em seu contorno, são igualmente de natureza mágica. Além da parte figurativa, há ainda uma série de traços em fila, formando uma  sequência rítmica. Trata-se de uma captação gráfica do som. Os artistas queriam DESENHAR O SOM. Foi o início da Descoberta do ALFABETO FONÉTICO. Assim, a Genialidade da Espécie Humana se revela nos mais longínquos tempos, com a Criação Mágica das  Artes. Na Arte Moderna, foram os Surrealistas que realçaram a natureza mágica da Arte.

II / FALSO-AUTÊNTICO DALÍ

Minha Metade da Vida já se foi há 50 anos... Vi hoje uma Expô Surrealista na Kunst Halle. Entre os artistas, meu mestre e amigo Dalí, que nos dois últimos anos de sua vida, justamente aos oitenta e tais, seu estado de saúde, e de lucidez, declinou vertiginosamente, e ele assinava suas gravuras que lhe trazia o ajudante Pepe que copiava antigas do Mestre, com pequenas variações, trocava a cor vermelha do fundo por verde, uma guitarra virava bengala, botava umas formigas nos relógios-moles, e salpicava muletas aqui e acolá. A descoberta do ardil causou grande escândalo, acusaram o Mestre de plágio (ele já tão gagá, não sabia mais o que fazia, a mão tremia, e o Pepe passou a apor-lhe por procuração a assinatura). A meio de polêmicas o processo seguiu até o dia em que o Dalí faleceu. Adiaram talvez por três dias a notícia do falecimento, pra que o Pepe ainda aprontasse umas duzentas novas gravuras. Agora, dado o sentido surrealista de Dalí, não só na arte, mas na recriação da vida dentro da própria vida, eu me pergunto se as gravuras do Pepe, não serão autênticas manifestações da Arte na Vida de Dalí, e assim, eram obras do Mestre. Eis a verdadeira questão.

9 | Gran Finale. Era para ter uma última página, com aquele final empolgante que verte lágrimas no público, que traça uma linha mágica entre os que escrevem e os que leem. Mas nada. Tanto repetimos as cenas bombásticas, da forma mais inconsequente, que agora já nada faz sentido. Nada começa. Nada termina. Mal passamos a página e a realidade apenas se repete. Então, fazendo coro ao Zuca Sardan, recordemos Dalí, ainda em 1930: “Tudo leva a crer que a realidade, em um futuro próximo, será considerada unicamente como um simples estado de depressão e de inatividade do pensamento e, por consequência, como uma sucessão de momentos de ausência do estado de vigília”. Profético?

Os Editores




ÍNDICE


FEDERICO RIVERO SCARANI | un aspecto fantástico en el cuento “Episodio”, de Horacio Quiroga

DANIEL ARELLA | La memoria táctil del poeta venezolano Alfredo Silva Estrada

EDSON MANZAN | O estilo de James Strachey em The interpretation of dreams

ESTER FRIDMAN | Uma interpretação do aforismo “da visão e enigma”, de Assim falou Zaratustra, sob um aspecto corporal

GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | “Señor barroco”: algunas precisiones sobre lo barroco americano y el romanticismo en José Lezama Lima

JOSÉ ÁNGEL LEYVA | Rubén Arenas, El discreto encanto de la ironía

LEONTINO FILHO | Sérgio Campos e as dobraduras da fala

MAX HARRIS | Commentary on Australian poetry

MIGUEL MÁRQUEZ | Luis Alberto Crespo: el paraíso de la aridez

VALDIR ROCHA | Helena Armond, salvação pela palavra


ARTISTAS CONVIDADOS | ALFONSO PEÑA | Amirah Gazel, Arte Amigo y los “diablillos” de la magia cotidiana


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Página ilustrada con obras de los niños mágicos del Arte Amigo (Costa Rica), artistas invitados de esta edición de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 23 | Janeiro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
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