FG | Não sei se a poesia perdeu sua importância cultural.
Acho que não perdeu.
Uma coisa é a cultura de massa, a badalação em torno de bobagens que preponderam
na nossa sociedade. Outra coisa é a verdade, a verdadeira arte, a verdadeira poesia,
os verdadeiros valores.
A poesia, mais do que nunca, é fundamental para as pessoas exatamente porque
elas vivem uma vida alucinada em que todo valor é banalizado. Então, as pessoas
recorrem à poesia. É claro que não é a maioria, mas nunca foi a maioria. Em época
alguma do mundo a maioria procurou a poesia.
PM | O que é a poesia para você?
FG | Eu não sei o que é a poesia. Ninguém sabe. Ninguém define
o que é a poesia. A poesia se concretiza nos poemas, no que está escrito. E existe
poesia em tudo. Existe poesia na música, no teatro, no cinema. Mas o que se chama
poesia no sentido literário é o que está no poema. Fora do poema, ela é uma promessa,
uma expectativa.
PM | O poema é um objeto visual,
sonoro e intelectual?
FG | O poema é um lugar onde a palavra vira poesia. Porque
fora do poema, fora da obra de arte, a poesia não está em parte alguma.
PM | O ritmo é, como disse Octavio
Paz, o núcleo do poema?
FG | Eu não acho isso. O núcleo do poema é o que ele diz,
é o significado dele, é o que está sendo expresso –que é uma coisa que não pode
ser dita a não ser daquela maneira, não é traduzível em linguagem lógica. O que
o poema diz, só o poema diz.
O ritmo, a melodia e todos os outros elementos compõem a expressão do poema,
mas o essencial não é o ritmo, é o significado.
PM | A arte poética é uma tentativa
de salvação da existência?
FG | Depende do que a gente está chamando de salvar. Se é
salvar a alma, aí não, porque a poesia não serve para isso. A poesia ajuda as pessoas
a viverem, é para isso que ela serve. As pessoas necessitam ser felizes, ter uma
vida com alguma alegria, com alguma maravilha, com alguma beleza. E a função do
artista é propiciar isso. A poesia não salva ninguém porque isso aí é função de
bombeiro.
PM | O artista tende a criar algo
inútil?
FG | A arte é inútil no sentido das coisas práticas e pragmáticas.
Mas ela não é inútil no sentido mais amplo da palavra, porque o que ajuda as pessoas
a viver não é inútil.
PM | A arte se relaciona com o
mundo real para além do campo simbólico?
FG | Fora do mundo real, o que existe? Tudo é o mundo real.
Quer dizer, existe o mundo real concreto, palpável, e existe a fantasia, a imaginação.
E isso tudo constitui a realidade do ser humano.
Mas o mundo que nós vivemos, o mundo das relações afetivas, das relações
concretas, do dia a dia, é o mundo real. Sem ele, nada tem sentido. A própria fantasia
existe pra tornar esse mundo real melhor e mais desfrutável. E a arte tem a ver
com o mundo real –pelo menos a minha tem.
PM | O artista é naturalmente um
humanista?
FG | De certo modo é porque a arte é uma afirmação da humanidade
das pessoas. Porque a qualidade humana do ser humano é inventar. Nós nascemos bichos
e nos transformamos em seres humanos. Então a arte, como a filosofia e as outras
coisas, são o homem se inventando como ser humano.
PM | O artista sempre pretende
passar uma mensagem?
FG | Existem poesias de muitas diferentes naturezas. Existem
poetas que querem passar uma mensagem para as pessoas, ou filosófica ou política
mesmo. E existem outros poetas para quem a poesia é a busca de uma linguagem, até
de uma revelação. Uma busca do que nem ele sabe o que é. É a busca de um significado
oculto. Um poeta como Mallarmé busca expressar uma coisa que está oculta, que nem
ele sabe o que é, e o seu poema é a tentativa de criar uma linguagem simbólica em
que se reflete a intuição que ele tem de uma coisa não definível logicamente.
Mas Drummond, por exemplo, numa certa altura da vida, passa uma mensagem
de humanismo e de rebeldia em relação à sociedade da época. Já um poeta como Bandeira
não é assim. Ele fala muito mais dos afetos e de coisas mais simples, de sua condição
de ser humano e do desamparo da vida. Tem de tudo.
PM | Você não acha que já está
na hora de pararem as releituras sobre o grupo modernista? O modernismo completa
cem anos em breve, e outras gerações surgiram, como a de João Cabral, a sua, a de
Leminski e a dos dias atuais.
FG | Sem dúvida. Eles foram maravilhosos, foram pessoas incríveis.
Mário, Oswald e os outros eram criativos, mas é preciso dar voz a outras gerações.
PM | O Oswald de Andrade se intitulava
sem profissão e sem esperança.
FG | Sem profissão, sim. Agora esperança ele tinha. Ele vivia
falando da utopia, né? Da sociedade do ócio. Que o ócio vence o negócio. Então,
o ideal é chegar na sociedade do ócio. Ele acreditava nessa.
PM | Como Oswald e Mário de Andrade
ajudaram a desvendar o Brasil?
FG | Eles ajudaram a criar o Brasil moderno e a moderna poesia
brasileira. Ajudaram a criar uma visão nova do Brasil. Aí as pessoas ficam querendo
que os caras tivessem sozinhos feito tudo, e aí tem erros –nós temos também. Você
tem que olhar as coisas com um pouco mais de compreensão e não ficar pedindo tomate
à pimenteira, porque pimenteira não dá tomate.
PM | Gilberto Freyre, Sérgio Buarque
de Holanda e Euclydes da Cunha reinventaram o Brasil?
FG | São pessoas extraordinárias. São nossos pais, nossos
avós, e ajudaram a criar as coisas. Somos herdeiros deles. Se o mundo é uma invenção
e o país é uma invenção, como nós –que é a minha teoria–, esses caras fizeram uma
doação extraordinária a todos nós.
Eles ajudaram a construir um outro Brasil, a imaginar e a inventar um outro
país. E nós, como herdeiros deles, só somos o que somos porque eles pensaram e escreveram
esses livros. Como cada um de nós também, dentro dos nossos limites, estamos tentando
ajudar a inventar o Brasil daqui pra diante.
Agora, se não concorda com tudo, tudo bem, não é para concordar com tudo.
É para reinventar.
PM | Há certas leituras de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre,
que nos faz pensar: que livro eles leram? Dizem que o ponto de vista de Freyre é
sempre o da casa grande.
FG | Há essa crítica. Há algumas coisas, evidentemente, naquela
visão do Gilberto Freyre, que você pode criticar. Mas, ao mesmo tempo, há uma compreensão
e uma visão nova do Brasil através daquela interpretação dele. Ele ajuda você a
entender o Brasil. Você vai discordar de algumas coisas, tudo bem. Eu já li as mais
diversas críticas. Mas não há dúvida nenhuma de que, ao ler Casa-Grande & Senzala, você começa a
descobrir um Brasil que desconhecia.
Eu não sei. Nós estamos condenados ao futuro, não tem saída. Eu acho que
o futuro, de algum modo, é também a esperança. Porque o futuro é a possibilidade
da transformação, da mudança, da vida melhor. Quer dizer, se você não tem futuro
e é o estrito presente, se o presente está bom, está ótimo. Mas e se o presente
estiver ruim? Como é que é? Tem que ter o futuro.
PM | Uns e outros vivem do passado
ou do futuro, enquanto o presente vai passando.
FG | Bom, nós vamos entrar numa discussão filosófica se existe
passado ou futuro. O que existe é o presente. O passado já era e o futuro ainda
não é. Então, o que existe é o presente.
Agora, evidentemente que a expectativa do futuro pode ser o caminho da esperança,
a possibilidade da esperança. E o passado é o que houve, mas é o que constitui você
porque é a sua história. Sem passado não existe nada porque o presente é constituído
do passado. O passado é a sua história.
PM | O que uma pessoa com a sua
idade mais guarda da vida, lembranças ou esquecimentos?
FG | Guarda tudo. É evidente que quando você tem o seu passado,
você tem culpas, lembranças legais e tem coisas que te gratificam. Mas o mais importante
de viver muito é que você aprende a ser melhor como ser humano.
PM | É difícil tornar-se humano?
FG | Sim, claro. Tanto que você vê aí, um garoto de 17 anos
cortar o pescoço do outro. Não é humano. Isso aí é o ser animal, brutal, que nós
somos também, mas que não queremos ser. Então, inventamos um ser humano utópico,
que tem ética, tem solidariedade, e que nós tentamos ser. Mesmo que a gente não
consiga, nós aspiramos a ser esse ser humano melhor.
PM | Falemos um pouco do amor.
FG | O amor é uma das melhores coisas da vida. No meu modo
de ver, o sentido da vida é o outro. E a pessoa amada é o outro mais pleno ainda.
Quer dizer, é o outro com o qual você tem uma identificação profunda e que é o companheiro
ou a companheira, com quem você constrói um dia a dia, ou o futuro. Então, o amor
é uma coisa altamente significativa. Porque o amor também transfigura o relacionamento
das pessoas. E tem outra coisa também, o entendimento e a compreensão que estão
envolvidos no amor. Quer dizer, o amor não te julga. Pelo menos como eu entendo,
o amor é um refrigério, é um recanto onde você é aceito sem o julgamento implacável
que normalmente as pessoas fazem umas das outras.
PM | O amor é uma parte de você,
e a morte é o todo de uma vida?
FG | A morte é só o fim. A morte é o fim, não é o todo. A
morte é muito mais o nada do que o todo. É o fim. A morte é o nada. É o nada. Você
é uma coisa temporária, particular, mas a sua origem é o todo. Você vem do todo
e, momentaneamente, existe como uma individualidade. Depois, você se dissolve nesse
todo e desaparece.
PM | A realidade é sombria. Ver
luz no amanhecer não parece um milagre?
FG | Eu não tenho essa visão, não. A realidade do mundo para
mim não é sombria. Essa visão é que é um pouco sombria demais para o meu gosto.
Eu estou vendo luz aqui, o verão, a praia azul, o mar. Eu não tenho essa visão pessimista
da vida.
PEDRO MACIEL (Brasil).
Narrador e ensaísta, autor de A Noite de um
Iluminado (Iluminuras). Entrevista publicada no suplemento Ilustríssima, do
jornal Folha de S. Paulo de 11/12/2016, cuja reprodução nos foi autorizada pelo próprio autor. Página ilustrada con obras
de Óscar Sanmartín (Espanha), artista invitado de esta edición de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 24 | Fevereiro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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