terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

PEDRO MACIEL | Uma última conversa com Ferreira Gullar


PM | Como o poeta se sente num tempo em que a poesia perdeu sua importância cultural?

FG | Não sei se a poesia perdeu sua importância cultural. Acho que não perdeu.
Uma coisa é a cultura de massa, a badalação em torno de bobagens que preponderam na nossa sociedade. Outra coisa é a verdade, a verdadeira arte, a verdadeira poesia, os verdadeiros valores.
A poesia, mais do que nunca, é fundamental para as pessoas exatamente porque elas vivem uma vida alucinada em que todo valor é banalizado. Então, as pessoas recorrem à poesia. É claro que não é a maioria, mas nunca foi a maioria. Em época alguma do mundo a maioria procurou a poesia.

PM | O que é a poesia para você?

FG | Eu não sei o que é a poesia. Ninguém sabe. Ninguém define o que é a poesia. A poesia se concretiza nos poemas, no que está escrito. E existe poesia em tudo. Existe poesia na música, no teatro, no cinema. Mas o que se chama poesia no sentido literário é o que está no poema. Fora do poema, ela é uma promessa, uma expectativa.

PM | O poema é um objeto visual, sonoro e intelectual?

FG | O poema é um lugar onde a palavra vira poesia. Porque fora do poema, fora da obra de arte, a poesia não está em parte alguma.

PM | O ritmo é, como disse Octavio Paz, o núcleo do poema?

FG | Eu não acho isso. O núcleo do poema é o que ele diz, é o significado dele, é o que está sendo expresso –que é uma coisa que não pode ser dita a não ser daquela maneira, não é traduzível em linguagem lógica. O que o poema diz, só o poema diz.
O ritmo, a melodia e todos os outros elementos compõem a expressão do poema, mas o essencial não é o ritmo, é o significado.

PM | A arte poética é uma tentativa de salvação da existência?

FG | Depende do que a gente está chamando de salvar. Se é salvar a alma, aí não, porque a poesia não serve para isso. A poesia ajuda as pessoas a viverem, é para isso que ela serve. As pessoas necessitam ser felizes, ter uma vida com alguma alegria, com alguma maravilha, com alguma beleza. E a função do artista é propiciar isso. A poesia não salva ninguém porque isso aí é função de bombeiro.

PM | O artista tende a criar algo inútil?

FG | A arte é inútil no sentido das coisas práticas e pragmáticas. Mas ela não é inútil no sentido mais amplo da palavra, porque o que ajuda as pessoas a viver não é inútil.

PM | A arte se relaciona com o mundo real para além do campo simbólico?

FG | Fora do mundo real, o que existe? Tudo é o mundo real. Quer dizer, existe o mundo real concreto, palpável, e existe a fantasia, a imaginação. E isso tudo constitui a realidade do ser humano.
Mas o mundo que nós vivemos, o mundo das relações afetivas, das relações concretas, do dia a dia, é o mundo real. Sem ele, nada tem sentido. A própria fantasia existe pra tornar esse mundo real melhor e mais desfrutável. E a arte tem a ver com o mundo real –pelo menos a minha tem.

PM | O artista é naturalmente um humanista?

FG | De certo modo é porque a arte é uma afirmação da humanidade das pessoas. Porque a qualidade humana do ser humano é inventar. Nós nascemos bichos e nos transformamos em seres humanos. Então a arte, como a filosofia e as outras coisas, são o homem se inventando como ser humano.

PM | O artista sempre pretende passar uma mensagem?

FG | Existem poesias de muitas diferentes naturezas. Existem poetas que querem passar uma mensagem para as pessoas, ou filosófica ou política mesmo. E existem outros poetas para quem a poesia é a busca de uma linguagem, até de uma revelação. Uma busca do que nem ele sabe o que é. É a busca de um significado oculto. Um poeta como Mallarmé busca expressar uma coisa que está oculta, que nem ele sabe o que é, e o seu poema é a tentativa de criar uma linguagem simbólica em que se reflete a intuição que ele tem de uma coisa não definível logicamente.
Mas Drummond, por exemplo, numa certa altura da vida, passa uma mensagem de humanismo e de rebeldia em relação à sociedade da época. Já um poeta como Bandeira não é assim. Ele fala muito mais dos afetos e de coisas mais simples, de sua condição de ser humano e do desamparo da vida. Tem de tudo.

PM | Você não acha que já está na hora de pararem as releituras sobre o grupo modernista? O modernismo completa cem anos em breve, e outras gerações surgiram, como a de João Cabral, a sua, a de Leminski e a dos dias atuais.

FG | Sem dúvida. Eles foram maravilhosos, foram pessoas incríveis. Mário, Oswald e os outros eram criativos, mas é preciso dar voz a outras gerações.

PM | O Oswald de Andrade se intitulava sem profissão e sem esperança.

FG | Sem profissão, sim. Agora esperança ele tinha. Ele vivia falando da utopia, né? Da sociedade do ócio. Que o ócio vence o negócio. Então, o ideal é chegar na sociedade do ócio. Ele acreditava nessa.

PM | Como Oswald e Mário de Andrade ajudaram a desvendar o Brasil?

FG | Eles ajudaram a criar o Brasil moderno e a moderna poesia brasileira. Ajudaram a criar uma visão nova do Brasil. Aí as pessoas ficam querendo que os caras tivessem sozinhos feito tudo, e aí tem erros –nós temos também. Você tem que olhar as coisas com um pouco mais de compreensão e não ficar pedindo tomate à pimenteira, porque pimenteira não dá tomate.

PM | Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Euclydes da Cunha reinventaram o Brasil?

FG | São pessoas extraordinárias. São nossos pais, nossos avós, e ajudaram a criar as coisas. Somos herdeiros deles. Se o mundo é uma invenção e o país é uma invenção, como nós –que é a minha teoria–, esses caras fizeram uma doação extraordinária a todos nós.
Eles ajudaram a construir um outro Brasil, a imaginar e a inventar um outro país. E nós, como herdeiros deles, só somos o que somos porque eles pensaram e escreveram esses livros. Como cada um de nós também, dentro dos nossos limites, estamos tentando ajudar a inventar o Brasil daqui pra diante.
Agora, se não concorda com tudo, tudo bem, não é para concordar com tudo. É para reinventar.

PM | Há certas leituras de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, que nos faz pensar: que livro eles leram? Dizem que o ponto de vista de Freyre é sempre o da casa grande.

FG | Há essa crítica. Há algumas coisas, evidentemente, naquela visão do Gilberto Freyre, que você pode criticar. Mas, ao mesmo tempo, há uma compreensão e uma visão nova do Brasil através daquela interpretação dele. Ele ajuda você a entender o Brasil. Você vai discordar de algumas coisas, tudo bem. Eu já li as mais diversas críticas. Mas não há dúvida nenhuma de que, ao ler Casa-Grande & Senzala, você começa a descobrir um Brasil que desconhecia.




 Não tiramos os olhos do futuro. O futuro nos aliena?
Eu não sei. Nós estamos condenados ao futuro, não tem saída. Eu acho que o futuro, de algum modo, é também a esperança. Porque o futuro é a possibilidade da transformação, da mudança, da vida melhor. Quer dizer, se você não tem futuro e é o estrito presente, se o presente está bom, está ótimo. Mas e se o presente estiver ruim? Como é que é? Tem que ter o futuro.

PM | Uns e outros vivem do passado ou do futuro, enquanto o presente vai passando.

FG | Bom, nós vamos entrar numa discussão filosófica se existe passado ou futuro. O que existe é o presente. O passado já era e o futuro ainda não é. Então, o que existe é o presente.
Agora, evidentemente que a expectativa do futuro pode ser o caminho da esperança, a possibilidade da esperança. E o passado é o que houve, mas é o que constitui você porque é a sua história. Sem passado não existe nada porque o presente é constituído do passado. O passado é a sua história.

PM | O que uma pessoa com a sua idade mais guarda da vida, lembranças ou esquecimentos?

FG | Guarda tudo. É evidente que quando você tem o seu passado, você tem culpas, lembranças legais e tem coisas que te gratificam. Mas o mais importante de viver muito é que você aprende a ser melhor como ser humano.

PM | É difícil tornar-se humano?

FG | Sim, claro. Tanto que você vê aí, um garoto de 17 anos cortar o pescoço do outro. Não é humano. Isso aí é o ser animal, brutal, que nós somos também, mas que não queremos ser. Então, inventamos um ser humano utópico, que tem ética, tem solidariedade, e que nós tentamos ser. Mesmo que a gente não consiga, nós aspiramos a ser esse ser humano melhor.

PM | Falemos um pouco do amor.

FG | O amor é uma das melhores coisas da vida. No meu modo de ver, o sentido da vida é o outro. E a pessoa amada é o outro mais pleno ainda. Quer dizer, é o outro com o qual você tem uma identificação profunda e que é o companheiro ou a companheira, com quem você constrói um dia a dia, ou o futuro. Então, o amor é uma coisa altamente significativa. Porque o amor também transfigura o relacionamento das pessoas. E tem outra coisa também, o entendimento e a compreensão que estão envolvidos no amor. Quer dizer, o amor não te julga. Pelo menos como eu entendo, o amor é um refrigério, é um recanto onde você é aceito sem o julgamento implacável que normalmente as pessoas fazem umas das outras.

PM | O amor é uma parte de você, e a morte é o todo de uma vida?

FG | A morte é só o fim. A morte é o fim, não é o todo. A morte é muito mais o nada do que o todo. É o fim. A morte é o nada. É o nada. Você é uma coisa temporária, particular, mas a sua origem é o todo. Você vem do todo e, momentaneamente, existe como uma individualidade. Depois, você se dissolve nesse todo e desaparece.

PM | A realidade é sombria. Ver luz no amanhecer não parece um milagre?

FG | Eu não tenho essa visão, não. A realidade do mundo para mim não é sombria. Essa visão é que é um pouco sombria demais para o meu gosto. Eu estou vendo luz aqui, o verão, a praia azul, o mar. Eu não tenho essa visão pessimista da vida.



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PEDRO MACIEL (Brasil). Narrador e ensaísta, autor de A Noite de um Iluminado (Iluminuras). Entrevista publicada no suplemento Ilustríssima, do jornal Folha de S. Paulo de 11/12/2016, cuja reprodução nos foi autorizada pelo próprio autor. Página ilustrada con obras de Óscar Sanmartín (Espanha), artista invitado de esta edición de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 24 | Fevereiro de 2017
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