Não creio que deva passar despercebido o fato de que a mais recente
e extensa antologia dedicada ao erotismo na poesia brasileira, a Antologia da poesia erótica brasileira (São
Paulo, Ateliê Editorial, 2015), tenha sido organizada por uma mulher. Eliane Robert
Moraes é nome de extrema relevância para qualquer um que queira se dedicar ao estudo
de autores franceses que, tais como Marquês de Sade e Georges Bataille, foram responsáveis
por estabelecer um vocabulário erótico, uma sintaxe erótica e, mais além, uma ontologia
a partir do erotismo. Desde 2008, para a alegria da comunidade lusófona, a pesquisadora
tem se dedicado à investigação do tema na produção poético-literária brasileira,
da qual resulta esta antologia, que tardiamente vem suprir uma lacuna no cânone
brasileiro – e bem a propósito da advertência de Mário de Andrade, retomada pela
pesquisadora em longo ensaio introdutório:
as
literaturas rapsódicas e religiosas são frequentemente pornográficas e sensuais.
Não careço de citar exemplos. Uma pornografia desorganizada é também da quotidianidade
nacional (…) os alemães científicos, os franceses de sociedade, os gregos filosóficos,
os indianos especialistas, os turcos poéticos etc., existiram e existem nós sabemos.
A pornografia entre eles possui caráter étnico. Já falam que se três brasileiros
estão juntos, estão falando porcaria… De fato.”
A Antologia
da poesia erótica brasileira, portanto, cumpre com o “intento de construir uma
‘pornografia organizada’ do país”.
Tal lacuna, importa dizer, foi suprida em
Portugal por uma das mais incansáveis personalidades das letras portuguesas, Natália
Correia, que em 1965 publica a primeira edição da Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica, num ato verdadeiramente
engajado contra a censura salazarista que então coibia qualquer manifestação cultural
considerada como atentado à moralidade (ato de corajoso engajamento que se estende
à Editora Afrodite, sob responsabilidade do heroico Fernando Ribeiro de Mello, que
sofreu duras represálias pela publicação da primeira edição portuguesa, em 1966,
de A filosofia na Alcova, do Marquês de
Sade). Não creio ser coincidência que também em Portugal essa lacuna tenha sido
suprida por uma mulher: Natália Correia, referida por Eliane Robert Moraes como
alguém de capitular importância que lhe teria servido de modelo nessa empreitada.
A poeta, dramaturga e antologiadora portuguesa, em estudo de abertura da antologia,
dedica uma quantidade considerável de páginas no empenho de oferecer ao leitor um
panorama do condicionamento moral que se perpetuou sob o severo cuidado da Igreja
católica ao longo da formação nacional portuguesa (com variações que não caberiam
explicitar neste espaço). Nessas páginas de imenso valor histórico para a compreensão
dos aspectos morais e comportamentais da cultura portuguesa, nota-se a grande atenção
que Natália Correia confere ao papel da mulher nas figurações eróticas. Seria óbvio
dizer que o resultado dessa apreciação histórica nos mostra que a mulher foi, na
maior parte dos casos, excluída como sujeito do desejo/discurso, restando-lhe apenas
a posição de objeto do desejo masculino? Resultado disso é que entre os 104 poetas
antologizados por Natália, 97 são homens, apenas 4 são mulheres e 3 são anônimos
(quiçá entre eles alguma mulher…). O resultado da pesquisa levada a cabo por Eliane
é bastante parecido: num total de 133 poetas selecionados, 113 são homens, apenas
12 são mulheres e 8 são anônimos.
Exemplos da poesia erótica escrita por mulheres
se encontram nos versos sensuais de Gilka Machado (1893-1980), como esses de “Particularidades
2”:
e flexuosa me torna e me torna felina.
Amo do pessegueiro a pubescente poma,
porque afagos de velo oferece e propina.
O intrínseco sabor lhe ignoro, se ela assoma,
no rubor da sazão, sonho-a doce, divina!
gozo-a pela maciez cariciante, de coma,
e o meu senso em mantê-la incólume se obstina...
Ou, entre outros, na lírica arrebatadora que Hilda Hilst (1930-2004) apresenta do livro Do desejo:
Porque
há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura,
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.
Ainda assim, creio que a justificativa moral
apresentada por Natália Correia também se aplica ao caso brasileiro, já que a dificuldade
encontrada por Eliane Robert Moraes em dispor de um conjunto significativo das manifestações
poéticas de cunho erótico, pode ser pensada também em relação ao papel da mulher
no cânone literário brasileiro:
O reconhecimento
do estatuto dessa produção, porém, enfrentou obstáculos significativos. Dois deles
podem ser aqui apontados, lembrando que merecem exame mais profundo. O primeiro
excede o âmbito nacional e diz respeito à expressão moderna do erotismo literário
que, até pouco tempo, foi objeto de reiteradas proibições nas
sociedades ocidentais, sendo não raro produzido e difundido na clandestinidade. Por certo, essa característica não teria sido diferente no Brasil, cuja história traz fortes marcas da moral cristã e do jugo patriarcal que, aliados a outras formas de repressão, também precipitaram mecanismos eficazes de censura às manifestações licenciosas. O segundo obstáculo é justamente aquele sugerido pelo escritor modernista, ele mesmo vítima de severas condenações morais por ocasião do lançamento de Macunaíma: por se manter “desorganizados”, talvez em resposta aos dispositivos repressivos, nossos textos obscenos foram sendo empurrados para as margens dos círculos letrados, o que adiou a constituição de um conjunto, tal como foi possível em outras culturas (MORAES, 2015: 22).
sociedades ocidentais, sendo não raro produzido e difundido na clandestinidade. Por certo, essa característica não teria sido diferente no Brasil, cuja história traz fortes marcas da moral cristã e do jugo patriarcal que, aliados a outras formas de repressão, também precipitaram mecanismos eficazes de censura às manifestações licenciosas. O segundo obstáculo é justamente aquele sugerido pelo escritor modernista, ele mesmo vítima de severas condenações morais por ocasião do lançamento de Macunaíma: por se manter “desorganizados”, talvez em resposta aos dispositivos repressivos, nossos textos obscenos foram sendo empurrados para as margens dos círculos letrados, o que adiou a constituição de um conjunto, tal como foi possível em outras culturas (MORAES, 2015: 22).
Ademais, importa dizer que as relações entre
poesia/literatura e erotismo são um modo mais amplo de situar-se no mundo, pois
que não seriam, apenas, conforme a pesquisadora, um modo de tematizar o sexo por
meio da criação literária:
trata-se
de uma escrita que se singulariza por fazer de eros seu operador fundamental, elegendo-o
como mediador exclusivo de seus jogos entre forma e fundo. Por isso mesmo, antes
de ser um modo de pensar o sexo, o erotismo literário é um modo de pensar a partir
do sexo (MORAES, 2015: 27).
A edição, belamente acompanhada por desenhos
do artista plástico brasileiro Arthur Luiz Piza, é consequência dessa guinada de
perspectiva do pensar que carrega consigo o olhar e o falar: eu diria mesmo que
o olho e a voz promovem uma subversão na construção da anatomia racionalista e passam
situar-se entre as “pernas-pensantes”.
Por fim, digo que foi mediante a leitura
de “Da lira abdominal” – título do ensaio introdutório que retoma o verso do poema
“Nu”, de Manuel Bandeira (poeta que, conforme somos informados, infelizmente não
figura na antologia por não ter sido possível negociar os direitos autorais de seus
poemas com os herdeiros, mas que entretanto recebeu homenagem da pesquisadora ao
figurar como epígrafe do livro) – que me ocorreu esta “Letra pélvica”. Com ela sintetizo
a presente resenha, pois que me parece dar conta não apenas do trabalho que aqui
se apresenta em forma de antologia, mas das derivas em retrospecto do trabalho de
uma investigadora que tem se empenhado na ousadia de tratar o conhecimento sob o
prisma do baixo ventre. Conforme diriam as bacantes em êxtase orgástico: Evoé!
ANA CRISTINA JOAQUIM (Brasil, 1984). Poeta e ensaísta, com estudos sobre Sade, Cruzeiro seixas, Herberto Helder e Mário Cesariny de Vasconcelos. Autora de Polifemo (2014) e Gama cromática (2015), o primeiro deles em parceria com Antonio Vicente Seraphim Pietroforte. Página ilustrada com obras de Joseph Cornell (Estados Unidos), artista convidado desta edição de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 25 | Março de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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