A filosofia nasce de uma
ruptura com a poesia, mas essa ruptura nunca foi total. Só irá pretender ser
total em Kant (Alemanha, 1724-1804). Com este filósofo, a filosofia se torna
algo especializada e separada da literatura. Hoje, especialmente com o
pensamento de Jacques Derrida (Argélia, 1930-França, 2004), há novamente uma
junção de filosofia e literatura. Bento Prado (Brasil, 1937-2007) dizia que a
literatura está sempre presente na filosofia. Esta nasce em cumplicidade com a
literatura. Para Paul Valéry (França, 1871-1945) a filosofia é um gênero
literário.
Para quem gosta de Literatura e Filosofia, faço
aqui uma relação entre esta e o livro As Relações Perigosas, abordando o
tema do fingimento e disfarce: o que é verdade e o que é falso quando se trata
de seres humanos?
Sob uma perspectiva de águia, olhando de cima
sem ficar preso a um só aspecto, podemos analisar uma obra literária, escrita
na mesma época da publicação da resposta à pergunta: Que é Esclarecimento?, de
Immanuel Kant. Esta obra é As Relações Perigosas, de Choderlos de
Laclos. A época é século XVIII, século das luzes, época em que a razão
triunfava no mundo ocidental.
Enquanto Kant se orgulha do poder e capacidade
que a razão tem sobre tudo o que não é metafísico, parece que Laclos quer
mostrar que não é bem assim. Kant limita a razão, mas confia nela. Laclos
simplesmente a critica.
O militar Laclos escreveu sobre outro tipo de
guerra: a guerra dos interesses e das vaidades. De gênero epistolar, As Relações
Perigosas revela o que se passa nos bastidores da corte. Laclos abre sua
obra com uma frase de Rousseau, de seu romance A Nova Heloísa: “Vi os
costumes de meu tempo, e publiquei estas cartas”. Naquela época, as epístolas
eram documentos oficiais, cujo selo era o brasão da família, moldado em cera,
que lacrava o envelope. Tradicionalmente, o gênero epistolar reproduz a
verdade. Mas, as cartas de Laclos revelam os artifícios da dissimulação através
da manobra das palavras. São instrumentos de sedução, que traem a verdade, e
manipulam os acontecimentos. No século das luzes, Laclos mostra que as cartas
não são apenas instrumentos de transmissão de conhecimento. Enquanto Kant e seu
amigo e médico, Marcus Herz, trocavam cartas sobre suas preocupações a respeito
do entendimento humano, dentro da corte muitas cartas eram trocadas – a razão a
serviço de seu uso prático. Ali não se fazia uma metarazão, na busca de
entender a própria razão, mas sim usar da razão para obter prazer. O prazer se
expressa pelo corpo, e a razão pela palavra. Mas se o corpo é a grande razão,
como dizia Nietzsche, o prazer também está nas palavras. Em As Relações
Perigosas a palavra é objeto de rigoroso controle dos protagonistas
Visconde Valmont e Marquesa Merteuil. Esses dois personagens libertinos dão um
show de virtuosidade ao demonstrarem excelente autocontrole, domínio sobre si
mesmo e prudência. O libertino tem que estar sempre muito lúcido. A Marquesa de
Merteuil dirige toda a sua energia para que seu ex-amante, que lhe abandonou,
seja corno. É um exemplo de vontade forte, persistência, prudência e
autocontrole. Vemos na obra de Laclos que a virtuosidade está também na ruptura
da relação. O libertino se orgulha do rompimento, pois, como sempre conquista
damas importantes, que estão protegidas pela sua classe social, seu prazer é
burlar os grandes burladores. Sua façanha não termina até que o jogo tenha sido
dramaticamente revelado. Sua regra básica é a indiscrição; esta é sua
moralidade.
Vemos aqui as palavras surtindo efeitos muito
diferentes daqueles esperados, talvez porque previamente estabelecido que assim
seja. Diz a Marquesa que se chamaria de pérfida, e confessa que essa palavra
sempre lhe deu prazer – “Depois de cruel, é a mais doce ao ouvido de uma
mulher” (carta V. Obs: Esta e as demais citações de As Relações Perigosas
foram retiradas da tradução de Carlos Drummond de Andrade, publicada pela
Ediouro, Biblioteca Folha – Clássicos da Literatura Universal, em 1998).
Interessante também notar a relação entre a
menina Cécile e sua “preceptora”, a Marquesa Merteuil. Escrevendo a uma amiga,
relata: “Verei Mme de Merteuil esta noite, e se tiver coragem lhe contarei
tudo. Fazendo somente o que ela me aconselhar, nada terei a censurar-me” – eis
a questão do conselho e a responsabilidade que cabe ao conselheiro. Cabe
lembrar que a Marquesa não teve uma “preceptora”. Em uma das cartas enviadas ao
Visconde, ela lhe conta como se fez a si mesma. Ainda solteira, ao iniciar sua
vida na sociedade, simultaneamente iniciou-se no aprendizado da dissimulação.
Na obra, há uma divisão do homem entre sujeito e
objeto, onde sujeito seria o Visconde Valmont e a Marquesa Merteuil, e objeto,
a menina Cécile Volanges, o garoto Danceny e a Madame de Tourvel. Quando a
Marquesa Merteuil se refere a Cécile, ela diz: “’Isto’ tem apenas quinze anos”
(carta II). São os tiranos e as vítimas. Quando o Visconde se refere à Madame
Tourvel , ele diz: “Conheceis a Presidenta de Tourvel, sua devoção, seu amor
conjugal, seus princípios austeros. Eis aí o que eu ataco; eis o inimigo digno
de mim; eis a meta a que pretendo chegar” (carta IV). Em outra ocasião, diz
ele: “Longe de mim a ideia de destruir os preconceitos que a assaltam. Eles
aumentarão minha felicidade e minha glória. Que ela acredite na virtude, mas
para sacrificá-la a meus pés”. (carta VI). O Visconde e a Marquesa envolvem e
manipulam as pessoas através das cartas. Mas, o comportamento de ambos perante
a sociedade, faz com que o parecer tenha forma crível através de uma ocultação
do verdadeiro. O que é fingido assemelha-se com o verossímil, e o que é real
toma aparência de fingido. Quase todos os sentimentos são fingidos ou
dissimulados. O leitor atento tem acesso a essa relação entre o real e o
aparente, pois sabe quando os personagens estão dissimulando. Já os personagens
não têm esse privilégio, a não ser aqueles que têm acesso às cartas alheias,
como o Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil, que leem correspondências
destinadas a outrem. Mas, os disfarces e fingimentos também ocorrem entre os
dois. Nessas circunstâncias é preciso astúcia redobrada.
Laclos tinha consciência de que a sociedade de
sua época não valorizava a inteligência. Referindo-se a Danceny, Marquesa
Merteuil diz: “Ele é tão tolo, que ainda não obteve nem sequer um beijo.
Entretanto, esse rapaz faz versos tão bonitos! Meu Deus, como as pessoas de
espírito são idiotas!” (carta 38).
No século das luzes, enquanto o mundo da ciência
se vê tão confiante no homem e sua razão, e a religião continua querendo impor
um modelo de virtude e boa conduta, os bastidores da corte mostram que a
realidade é o avesso do que se crê. O que trás tranquilidade à alma de uma
mulher da realeza não é a beatitude, mas sim a vingança. Em As Relações
Perigosas, vemos que a vingança é mais importante que o amor. O papel da
vingança é fundamental. Através dela se obtém a tranquilização. É o avesso da
condição humana.
O libertino escolhe livremente o objeto de sua
paixão. Sempre é sujeito, jamais objeto. Por isso é livre. A libertinagem é o
contrário do amor paixão. A paixão escraviza. Enquanto o libertino atua, o
apaixonado sofre, padece. O libertino não é um dom Juan – este se interessa por
qualquer pessoa do sexo oposto.
A carta não funciona se não há a promessa do
segredo. Como diz Foucault: “onde há segredo, há poder”. Para haver relações
perigosas, o segredo é essencial. O perigo das relações é explorado às últimas
consequências, quando, no final, a conspiração dos libertinos é desmascarada.
Valmont acaba morto em duelo pelo amante de uma de suas vítimas. Mas, enfrentar
esse perigo faz do libertino um homem de honra, e da libertinagem um jogo de
grande estilo. E a mais clássica das provas é a correspondência da vítima. A
ideia de destruir, encontrar, guardar as cartas, faz parte da trama. As cartas
de Laclos não foram destruídas.
Laclos examina as relações humanas à nível
micro. São relações de engano, astúcia, vingança. Na mesma época, Kant vê o
pior da relação humana a nível macro, nas relações entre os povos. Enquanto
Laclos trabalha individualmente, Kant tenta universalizar.
Podemos ainda pensar nas relações entre o autor
e o leitor. Enquanto as cartas de Laclos não são acabadas, são fragmentos, Kant
é todo fechado e definido. Temos o desgaste, o silêncio, que corta a relação
autor leitor. No caso das cartas, as relações humanas são tão corrosivas, que
por isso se esgotam.
A saída da Marquesa, como de qualquer mulher de
sua época, é ser independente através do ressentimento. A vingança é o
principal elemento presente no ressentimento. A moral da marquesa é a moral da
vingança. O instrumento que ela usa é o Visconde. Ele obedece deliberadamente.
É a vontade de poder nietzscheana ressentida. Ela se volta sobre si mesma. Se
auto-elimina. A Marquesa se sente acima dos homens e dos seres comuns, mas se
relaciona com eles. Não escolhe inimigos à altura, como faz Nietzsche.
Rebaixa-se a um inimigo comum.
A imprevisibilidade da razão em Laclos é posta
nas mãos de Madame de Volanges, que escreve à Madame de Rosemonde: “Adeus,
minha digna e querida amiga; sinto neste momento que a razão, já tão
insuficiente para prevenir nossas desgraças, o é ainda mais para nos consolar
delas” (carta CLXXV). A filosofia, que consolou Boécio, não consolou Madame
Volanges.
ESTER
FRIDMAN
(Brasil, 1963). Filósofa e escritora, pesquisadora da linguagem simbólica, seu
tema de mestrado foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra de Nietzsche.
Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos
Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali. Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com obras de Joseph Cornell (Estados Unidos), artista
convidado desta edição de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 25 | Março de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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