Joseph Cornell é o grande mago da colagem tridimensional.
Cartógrafo do imaginário, ele transpôs constelações fantásticas para o lombo impensável
do cotidiano. Louçarias, aramados, gradis, recortes esmiuçados de cenas as mais
vulgares, todas essas formas imprevisíveis foram intimadas a fazer parte do enredo
de suas caixas. Seu olhar guardava em si uma perene valise do mistério. Como conciliar
todas aquelas sombras em torno de um novo oratório de sensações? O desafio era proposto pelo artista. A ele não cabia solução e sim ampliar o
raio de ação da inquietude. Em uma de suas mais notáveis viagens por uma insólita
dimensão do poético dedicou uma belíssima caixa a Emily Dickinson. Ao acolher um
verso dela, Cornell o leva a viajar para um lugar tão distante de sua origem que
o redimensiona por completo, dando-lhe nova vida talvez apenas intimamente pressentida.
Cornell era um minucioso colecionador de imagens. Autodidata, desde cedo
manifestou curiosidade em relação à astronomia e à cartografia, bem como à história
do papel na Ásia e à publicação de inúmeras revistas populares. A partir daí criou
singulares truques de montagem que viriam a influenciar enormemente as artes no
século XX. A conquista da tridimensionalidade era um modo de tornar reais os atributos
da imaginação, do sonho, da memória, criando uma infinidade de vislumbres narrativos.
Sua inquietude criativa o levou a experimentar uma vastidão de técnicas de colagem
e justaposição, projeção e animação, rompendo com toda forma de linearidade na concepção
artística, ao ponto de tornar-se um marco algo intransponível frente a tantos artistas
que o sucederam. Livrar-se da sombra implacável de Joseph Cornell era um desafio
evidente no mundo das artes, tanto quanto o fora, no ambiente poético, o caso de
Fernando Pessoa.
Em minhas conversas com a artista Leila Ferraz sobre
Joseph Cornell ela me faz a seguinte observação:
Querido: Cornell nunca se declarou
surrealista. Surpreendeu nossos amigos que ultrapassaram os limites do convencional.
Isso sim. Influenciou todo aquele que buscou um novo olhar para criar um mundo íntimo.
De memórias poéticas e mágicas. Delicadas. Surpreendentes e incrivelmente lúdicas.
Minha roupagem de funcionamento simbólico poderia ter sido construída numa pequena
caixa de música. Eu pude escolher e dar-lhe minhas formas e dimensões. Se eu fosse
a Alice Liddell – a pequena Alice de Lewis Carroll – ou uma das outras ninfetas
que ele retratou, teria como meu mundo secreto cada obra de Cornell. Seu intimismo
poético e revelador. Eu abriria suas caixas e escutaria seus segredos. Estaria dentro
desse espaço conformado, pronta para abrir mais um misterioso segredo. Ninguém soube
se esconder nas fímbrias de suas caixas e objetos.
Leila está certa em muitos
aspectos. Comecemos pelo Surrealismo. É fato que Joseph Cornell jamais formalizou
uma adesão ao movimento. Assim como a outras correntes da vanguarda. É curioso atentar
para o fato de que ele considerava relevante a influência do romance-colagem de
Max Ernst em sua obra, porém excetuando por umas colagens iniciais ele manteve boa
distância estética de Ernst, configurando uma voz própria que se poderia chamar
de tutelar, tamanha a sua influência nos horizontes das artes no século XX. Marcel
Duchamp disse de Alexander Calder que sua arte era “a sublimação de uma árvore no
vento”. De Cornell se poderia dizer que sua arte era a aventura fabular de um catálogo
visionário.
Atenção crítica sensível
ao universo criativo de Joseph Cornell deixa claro que não poderia haver de sua
parte qualquer adesão, estética e/ou existencial, a situação alguma, em especial
considerando que dedicara sua vida a uma obsessão lúdica, mais do que apenas a uma
viagem onírica. Foi uma espécie de bruxo tocado pela totalidade. Cornell manteve
boa relação com Jack Tworkov, um dos fundadores da Escola de Nova York, artista
ligado ao ambiente da pintura gestual, a exemplo de Jackson Pollock, Willem De Kooning
e Franz Kline. Deste movimento participara o compositor John Cage, cuja declaração
de vida bem se aplicaria também a Cornell: “Renúncia à competição. Iluminação do
mundo. Não uma vitória, só algo natural.”
Em 1991 Mark Stokes editou
um documentário intitulado Joseph Cornell:
worlds in a box, onde vemos o artista transpondo para o interior de suas caixas
de sombras a própria alma da cidade de Nova York, mesclada a outros mundos imaginários.
Este documentário, enriquecido pelo depoimento de nomes como Susan Sontag, James
Rosenquist, Stan Brakhage e Rudy Burckhardt – estes dois últimos seus colaboradores
em alguns filmes –, propicia uma viagem inestimável pelo ambiente íntimo de criação
e convivência de Cornell, sua casa, arquivos, prateleiras, amigos, o modo como organizava
a complexidade de seu universo criativo. Apesar da singularíssima dedicação ao impulso
obsessivo de criar mundos, Cornell tinha uma espécie de concisão gestual, ao caminhar,
mexer em seus guardados, absorver a existência a seu redor. A inquietude, da mesma
ordem de uma vazante ou de uma tempestade, habitava unicamente seu olhar, sentido
em que a beleza ganhava sua ordem mais convulsiva.
Joseph Cornell foi um precursor
de praticamente todas as expressões artísticas mais relevantes no século XX, em
seu ambiente plástico. Esta frase não está demais, se pensarmos no papel que desempenharam,
na música e na literatura, nomes como Frank Zappa e Fernando Pessoa. Façamos aqui
um recorte em sua apropriação de truques da fotografia, do teatro e do cinema. Cornell
era tanto um criador de imagens como um manipulador de efeitos. Caixas, colagens,
filmes experimentais. Sua intimidade com a mesa de edição era tamanha que o movimento
lhe era algo natural, a animação cenográfica, o recorte preciso, a ponto de por
em funcionamento as chaves secretas do roteiro e da trilha sonora. Recordem: não
o fizeram igual Zappa a partir da música experimental e Pessoa de uma poesia não
menos experimental? E acaso não foram os três casos complexos de abrangência de
sua volúpia criativa de modo a não haver como enquadrá-los em uma estética restrita?
Voltemos ao Surrealismo.
Ou melhor, a propósito de Surrealismo, voltemos à assertiva de Leila Ferraz ao mencionar
o “intimismo poético e revelador” da obra de Cornell. Aos
olhos de André Breton, no que pese o período que passou nos Estados Unidos, seu
conhecimento da existência de Cornell – recordemos que ambos estavam ligados a Charles
Henri Ford e à revista surrealista View
–, a revolução do objeto na criação artística estava diretamente ligada ao desvio
que se impunha de funções, ou seja, sua requalificação conceitual. Como o acaso
deveria ser determinante neste desvio, Breton aceitava o ready made de Duchamp, porém não a manipulação do acaso de Cornell,
que ele certamente tinha na condição de um construtivismo. Mas o próprio Salvador
Dalí recordou que os objetos de Duchamp eram eleitos ou compostos. Mais uma curiosidade
a respeito? A defesa de Breton em relação ao poema-objeto, ao qual ele se referia
a uma característica de “especulação sobre seu poder de exaltação recíproca”. Ora,
o que faltou a Cornell para integrar aquele rol mágico de artistas não-surrealistas
a quem o Surrealismo costumava aderir incondicionalmente?
Volto uma vez mais à Leila
Ferraz, quando menciona um de seus objetos de funcionamento simbólico, recordando
o carinho que sempre teve pelo mistério que soube muito bem ocultar e revelar em
suas caixas Joseph Cornell. Diz ela (recordemos) que “ninguém soube se esconder nas fímbrias de suas caixas e objetos”. Ora,
Dalí evocava uma condição para a atuação de tais objetos, de que se baseassem em
“fantasmas e representações suscetíveis de ser provocados pela realização de atos
inconscientes”. Diz ele ainda que tais objetos “não dão nenhuma oportunidade às
preocupações formais”. Talvez venha daí a não percepção de Breton em relação ao
trabalho de Cornell, e se insisto neste tema é porque vejo uma relação íntima entre
os laços vitais que levaram à criação tanto Breton quanto Cornell.
Bom, Salvador Dalí disse certa vez, em seus exageros peculiares, que
a obra de Cornell é a única verdadeiramente surrealista encontrada na América. O
que talvez não tenha havido termo de acomodação diz respeito aos sobressaltos ou
dissensões em relação a outros modos de ser surrealista que foram percebidos fora
da Europa. No caso específico de Joseph Cornell, como deixar de fora de um ambiente
surrealista suas caixas de memória, seu teatro poético, a obsessiva construção de
seus dossiês, e até mesmo sua reclusão e rejeição ao mercado? Para aqueles que são
viciados em registros, quando a realidade precisa provar sua existência, anotem:
Joseph Cornell esteve presente nas duas mais importantes exposições surrealistas
dos anos 1930 nos Estados Unidos, da galeria Julien Levy e a famosa Fantastic Art, Dada and Surrealism, respectivamente
em 1932 e 1936. Buscando certo equilíbrio de equívocos, menciono que Cornell suspeitava
da aproximação do Surrealismo de uma magia negra. Ao comentar a este respeito com Zuca Sardan, ele então me lembrou que “o próprio Cornell é um artista totêmico-mágico, suas obras têm uma grande força de vodu”, destacando que esta rejeição “seria assim um curioso auto velamento de sua própria pessoa, essencialmente mágica”.
A sua vida se espelhava na imagem do que ele próprio havia definido em relação à criação: uma metafísica do efêmero. Joseph Cornell nasceu em 1903 em Nova York. Filho de classe média, três irmãos, as duas meninas cresceram e casaram e cedo se foram de casa. O pai morreu antes disto, Cornell tinha apenas 14 anos. O irmão mais novo, Robert, nasceu com paralisia cerebral. O desarranjo doméstico foi naturalmente agravado, porém esse relicário de privações não foi justamente o fator decisivo para a decisão de Cornell por uma formação autodidata. Esforços familiares o levaram a cursar uma escola que acabou abandonando. Chamou, no entanto, para si uma responsabilidade velada, a de cuidar de seu irmão mais novo.
A sua vida se espelhava na imagem do que ele próprio havia definido em relação à criação: uma metafísica do efêmero. Joseph Cornell nasceu em 1903 em Nova York. Filho de classe média, três irmãos, as duas meninas cresceram e casaram e cedo se foram de casa. O pai morreu antes disto, Cornell tinha apenas 14 anos. O irmão mais novo, Robert, nasceu com paralisia cerebral. O desarranjo doméstico foi naturalmente agravado, porém esse relicário de privações não foi justamente o fator decisivo para a decisão de Cornell por uma formação autodidata. Esforços familiares o levaram a cursar uma escola que acabou abandonando. Chamou, no entanto, para si uma responsabilidade velada, a de cuidar de seu irmão mais novo.
A infância de Cornell é uma metáfora de sua estética. Uma dessas chaves
mágicas a encontramos nas sessões de escape de Houdini de suas caixas trancadas.
Duas outras diziam respeito a suas visitas a Times Square e Coney Island, além do
convívio com as noites de vaudeville em Manhattan. Não importava em que encargos
domésticos estivesse envolvido, sua paixão era o caminhar pelas ruas, a entrada
em portas que eram portais que eram a chave de mundos novos que ia anotando de memória
como casas às quais deveria retornar para definir sua percepção estética do ambiente.
Cornell sempre foi um devorador de mundos. Um engolidor de mistérios. Uma ave renascida
a cada ameaça de sua extinção.
Joseph Cornell foi um entranhável habitante da própria obra. É possível
tanto encontrá-lo em distintas perspectivas e enquadramentos de inúmeras caixas
quanto encontrar-se com elas na mecânica essencial de sua existência. Quase impossível
– o que o torna ainda mais inestimável – separar vida e obra em se tratando deste
artista. Seu estúdio se confundia com uma de suas caixas, e em suas fotos o próprio
Cornell sempre parece estar no cenário de uma fantasia já de todo encaixada nas
vértebras da realidade. Criador e criatura, multifacetados dentro e fora do mundo
que revelou.
Joseph Cornell soube como poucos, somar fortuna e desastres de sua existência
em nome da afirmação de que a arte não alcançará jamais outra dimensão humana além
de si mesma. Este foi o desafio maior a que se impôs Cornell. A arte não é o que
somos. Não é nossa adesão a uma instância estética. Não é o desvario em torno de
um mundo que não reconhecemos como nosso. A arte – se cabe ainda usar o termo –
é o modo como enfrentamos a vida. Simples assim: o modo como enfrentamos a vida.
Uma vez mais? O modo como enfrentamos a vida.
A vida de Joseph Cornell esteve sempre marcada por uma admirável capacidade
de situar a beleza nos escaninhos mais imprevisíveis. Mas não estava ao dispor do
acaso tão completamente como se possa imaginar. Como ele próprio deixou registrado
em seus diários, há um momento em que a luz do sol atravessa o meio dia. A viagem
possuía uma concepção ulterior em Cornell. Sua vida inteira a viveu em poucos bairros
em Nova York. Os passeios frequentes por Manhattan definiam, sobretudo, a fixação
pela caça de objetos. Em meio a recortes de vislumbre e raras experiências táteis,
soube absorver um ideário histórico e geográfico de causar espanto em alguns casos.
Certa vez conversou largamente com Duchamp sobre Paris, vindo a declarar ao final
do encontro que jamais havia estado na capital francesa. Cornell dizia que há objetos
ou mesmo aspectos de nossa vida que são encontrados em lugares distintos, e que,
uma vez encontrados, podem definir o que conhecemos como obra de arte. Aplicou técnicas
de colagem a filmes que eram essencialmente pioneiras.
A vida é, ao final, um objeto que nos escapa. A obra de Joseph Cornell
é um reflexo estimulante que nos leva a pensar em muitos modos de fuga da existência.
A arte seria uma caixa de recursos a fugir da vida? E se fosse exatamente o contrário?
Uma afirmação de que nossa existência ulterior se encontra repleta de fragmentos
que não conseguimos identificar e colar, como um quebra-cabeça que mescle névoas
de toda ordem de sentidos. Cornell compreendeu isto como poucos. A ponto de tornar
a própria vida suspeita de não encontrar jamais uma razão de ser.
FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta,
ensaísta, tradutor e editor, dirige a Agulha Revista de Cultura e ARC Edições. Página ilustrada com obras de Joseph Cornell (Estados Unidos), artista convidado
desta edição de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 25 | Março de 2017
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