sábado, 11 de março de 2017

PEDRO MACIEL | Hilda Hilst: a vida e a poesia


Nascida em Jaú, em 1930, Hilda Hilst estreou em 1950, com o volume de poemas “Presságio”. Desde então publicou mais de 30 livros de poesia, narrativa e teatro. Hoje a escritora de “Tu não te moves de ti” garante que parou de escrever por ter esgotado em sua obra a necessidade “imperiosa” de se expressar que, segundo ela, levou à literatura. A poeta, que respondeu às perguntas por escrito, discorre sobre vários temas numa linguagem repleta de reticências – e por isso completamente próxima à sua obra. As respostas de Hilda Hilst são quase fábulas, falas tanto quanto comovidas com a existência. “Não sei se a minha vida daria boa poesia”, duvida ela, para quem a poesia, desde Shakespeare, jamais mudou nada no mundo. [P.M.]

PM | Hilda, você escreve para responder perguntas que às vezes não têm respostas?

HH | Na maior parte das vezes sim. No meu texto Qadós, por exemplo, isso se re­vela mais insistentemente. O personagem, desde criança, já perturbava os pais por ser acentuada­mente perguntante e recebia os apelidos de Qadós-pergunta-coisa, Qa­dós-disseca-tripa. Depois, já adulto, continuou se perguntando:

“(Qadós)... quando comecei a perguntar de manhãzinha:
 O que me dizes do administrador do Cosmos?
E o administrador sabe de que maneira deve ser administrado para che­gar com sabedoria e perplexidade ao seu último estágio?
E se ele, o administrado sabe disso, que importância tem o admi­nistra­dor?
Fui indo aos solavancos muitas horas e terminei com esta jóia: o meu ser pergunta é um estado imutável?”

Mas escrevo principalmente pela necessidade imperiosa de me expressar.

PM | Vale a pena escrever poesia? Não seria melhor transformar a vida em poesia do que fazer poesia com a vida?

HH | Não sei o que você quer dizer com “valer a pena”. Quer dizer fama, prestígio, di­nheiro? Palavras simples podem significar coisas complexas. Heidegger escre­veu um verdadeiro tratado sobre “O que é uma coisa?”. Poesia é a necessidade de se expressar. Não sei se a minha vida daria boa poesia. Sei que antes de tudo, importa poder se ex­pressar.
No Brasil, a voz do povo é o futebol, a música, a dança. Se ‘voz do povo é voz de Deus’ talvez Deus goste muito de dançar. Sei muito pouco sobre Deus. Talvez ele passe horas falando ao telefone e por isso tudo está como está. Mas, mesmo solitário, o poeta pode ter várias vozes. Os grandes poetas são sempre solitários e falam muito so­bre a ausência

PM | A poesia é capaz de transformar o mundo?

HH | Não acho que seja. Mesmo um grande poeta não pode transformar o mundo. Shakespeare era deslumbrante mas não transformou o mundo.

PM | Hoje em dia é possível surgir um poeta que tenha a voz do povo ou a poesia nes­tes tempos pós-modernos é apenas dos poetas so­litários?

HH | No Brasil, a voz do povo é o futebol, a música, a dança. Se “voz do povo é voz de Deus” talvez Deus goste muito de dançar. Sei muito pouco sobre Deus. Talvez ele passe horas falando ao telefone e por isso tudo está como está. Mas, mesmo solitário, o poeta pode ter várias vozes. Os grandes poetas são sempre solitários e falam muito so­bre a ausência.

PM | Octávio Paz diz que “a história da poesia moderna é a do contí­nuo dilaceramento do poeta, dividido entre a moderna concepção do mundo e a presença às vezes intolerável da inspiração.”

HH | A inspiração existe, embora João Cabral não acredite. Ela vem subitamente e pode dar até febre física. É magnífico receber algumas vezes a inspiração. É um dom divino com o qual somos agraciados.

PM | Ainda hoje nascem poetas simbolistas e saudosistas, sonetei­ros e bordadeiras. Se pelo menos fossem repentistas...

HH | Se você se refere a “bordadeiras” como aquelas mulheres que durante a revolu­ção francesa assistiam aos julgamentos bordando meias e eram deno­minadas de tricoteuses, isso é terrível, pode ser medonho. Acho que sem­pre é bom quando nasce um bom po­eta, seja repentista ou não. Mas é ne­cessário tentar inovar.

PM | Poeta é aquele que sobrevoa o abismo?

HH | Sim. Sobrevoei muitos mas, nunca tive coragem de me lançar sobre eles. Sem­pre tive uma boa dose de autopreservação.

PM | Há algum sentido, se é que há algum sentido, nas palavras e fra­ses do poema?

HH | Aquele que se expressa, sempre tenta fazer algum sentido. Não um sen­tido convencional, muito menos na poesia. Ele não fala sobre o nada e para nada.

PM | O ritmo é o núcleo da poesia?

HH | Não só. É um conjunto. O ritmo, a forma, o fundo.

PM | Valéry comparou a poesia com a dança e a prosa com a mar­cha...

HH | Minha prosa não é uma marcha, é sempre uma prosa poética. Não acredito nessa di­ferença.

PM | A palavra poética é a revelação da própria imagem? Um po­ema só tem sentido a partir de suas imagens?

HH | Um poema não tem sentido apenas a partir de imagens, mesmo as ima­gens tendo grande importância. Nos meus versos Como se te perdesse assim te quero. / Como se não te visse (favas douradas / Sob um amarelo) assim te apreendo brusco / Inamoví­vel, e te respiro inteiro / Um arco-íris de ar em águas profundas.” existem lindas ima­gens mas, não apenas isso.

PM | Falemos da crítica. Os críticos mandarins ignoram a sua po­esia ou a tra­tam como se você fosse uma poeta apenas erótica. Alguns a classificam como um poeta por­nográ­fico...

HH | Os críticos mandarins que leram minha poesia não a ignoram e sabem que não posso ser classificada de poeta erótica. Anatol Rosenfeld, Jorge de Sena, Antônio Hou­aiss falaram muito bem sobre meu trabalho. Dos meus 22 livros de poemas, apenas um, “As Bufólicas” pode ser considerado pornográfico mas, eu sei que ele tem principal­mente humor. E dos meus 11 de prosa, apenas 3 podem ser conside­rados pornográficos, mesmo não o sendo exclusivamente. Wilson Martins usou er­roneamente a palavra “bordelesca” ao se referir ao meu livro “Do Desejo” mas ele não o deve ter lido. Po­rém, estou em boa companhia. Du Boccage também sofreu esse tipo de confusão, mesmo tendo, na quase totalidade, uma obra lírica, infelizmente desconhecida pela grande maioria. D. H. Lawrence comentou muito bem o que é pornografia, em 1925 no livro “Pornografia e Obscenidade”. Não sei por que ainda fazem tanta confusão hoje em dia. Nos jornais, adoram colocar tí­tu­los chamativos. A “Folha de São Paulo”, na rese­nha do meu livro “Estar Sendo-Ter Sido”, usou o título “Uma Jeremi­ada Pornográfica”, deixando claro que não entenderam do que se tratava. No jornal francês “Liberation”, Eric Loret fez um comen­tário brilhante sobre “A Obscena Senhora D”, comparando-me a Ba­taille. Alguém, na redação, colocou o título “La co­chonne Hilsterique”. Acho que nem na França me entenderam.

PM | Nietzsche diz que “é por nossas virtudes que somos bem puni­dos”.

HH | Não concordo inteiramente. Acho que quase ninguém lê Nietzsche, que foi uma pessoa deslumbrante. Um dia ele se comoveu tanto vendo um ca­valo sendo açoi­tado que começou a chorar, abraçou e agradou a cabeça do cavalo, caiu no chão e acabou sendo levado para o hospício.

PM | A leitura crítica deveria ser uma interpretação da beleza como um objeto de saber...

HH | Você conhece a beleza? A idéia da beleza é muito difícil. Você pode ter a ilusão da beleza que você já viu um dia mas, não sabe onde. Alguns místicos contempla­ram a beleza em Deus, durante os seus êxtases. Santa Angela de Foligno, que vi­veu no século XIII, disse ter visto a beleza de Deus numa visão. Mas, acrescen­tou que “Ali não havia nem sombra de amor”. Isso me deixou tão impressionada que comprei sua biografia. Tal­vez nós todos, um dia, tenhamos visto o rosto de Deus e por isso evocamos a beleza.

PM | Você parou de escrever por causa da crítica, ou das editoras que não di­vulgam os poetas, ou ainda porque os leitores estão surdos para a poesia?

HH | Parei de escrever quando senti que tinha dito tudo o que eu sabia e da melhor forma que fui capaz. Fiz o esforço maior que pude para me ex­pressar. Não adianta mais dar explicações nem entrevis­tas. Se não entenderam, eu não sei dizer de outra forma. Se me vi­esse al­guma coisa com a força que me vinha, voltaria a escrever, seja prosa ou po­esia. Mas, não tem mais vindo. À medida que vamos envelhecendo, descobrimos que não compreendemos nada.

PM | Gide diz que “todas as coisas já estão ditas mas, como nin­guém escuta, é pre­ciso re­começar sempre”.

HH | Blake, Bataille, Rimbaud, Baudelaire, Beckett, Henry Miller, tan­tas outras pessoas deslumbrantes já dis­se­ram. Eu sinto que já disse tudo o que devia. Acho que os novos artistas, os novos talen­tos, devem recomeçar sem­pre sim.

PM | Ler poemas em voz alta irrita os deuses aposentados...

HH | Se são deuses, nunca são aposentados. É preciso saber ler muito bem a poesia. Pa­blo Neruda, Drummond, não sabiam ler bem seus poemas. Ou­vindo uma gra­vação de Cecília Meirelles declamando seus poemas fiquei surpresa. Eu sempre soube ler poesia muito bem, tanto a minha própria como a dos outros. Quando eu tinha 19 anos, Oswaldo de Andrade me fez ler o poema “Une Charogne” do “Flores do Mal”, de Baudelaire, em voz alta.
Parei de escrever quando senti que tinha dito tudo o que eu sabia e da melhor forma que fui capaz. Fiz o esforço maior que pude para me ex­pressar. Não adianta mais dar explicações nem entrevis­tas

PM | Você concorda que, geralmente, os poetas são aplaudidos por­que traba­lham em fa­vor da língua comum e não porque inventam uma forma origi­nal de linguagem?

HH | Não da língua comum. Quando você escreve poesia ou prosa, tua von­tade é sempre dar um passo além. Como já teve Shakespeare, Rimbaud, Joyce e tantos outros maravi­lhosos e geniais, é muito difícil dar esse passo, ser original.

PM | Falemos do tempo. A eternidade está no presente?

HH | Os antropólogos dizem que para todos os homens a ação onírica une o passado e o futuro no presente, e nos sonhos o espaço inexiste. O Zen questiona muito isso do Ali e Agora, a eternidade estaria no aqui e agora. Mas não sabemos o que é Eternidade.

PM | A morte não tem importância, desde que haja alguma coisa do outro lado...

HH | Ela não tem importância porque ela é inevitável.

PM | Nunca somos geniais quando morremos...

HH | Podemos ser muito geniais ao morrer. As últimas palavras de Kafka foram “Para o poço, para o fundo do poço filho de reis”. Rimbaud despediu-se da sua irmã, refe­rindo-se ao dia seguinte da sua morte, dizendo “Eu estarei embaixo da terra e tu caminharás ao sol”. Eu apenas diria “Que maçada”. Daqui há 50 anos serei conside­rada genial. Principalmente quando morre­mos podemos ser geniais.



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PEDRO MACIEL (Brasil). Narrador e ensaísta, autor de A Noite de um Iluminado (Iluminuras). Entrevista publicada no suplemento Prosa & Verso, do jornal O Globo de 25/12/1999, cuja reprodução nos foi autorizada pelo próprio autor. Página ilustrada com obras de Joseph Cornell (Estados Unidos), artista convidado desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 25 | Março de 2017
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