Nascida
em Jaú, em 1930, Hilda Hilst estreou em 1950, com o volume de poemas “Presságio”.
Desde então publicou mais de 30 livros de poesia, narrativa e teatro. Hoje a escritora
de “Tu não te moves de ti” garante que parou de escrever por ter esgotado em sua
obra a necessidade “imperiosa” de se expressar que, segundo ela, levou à literatura.
A poeta, que respondeu às perguntas por escrito, discorre sobre vários temas numa
linguagem repleta de reticências – e por isso completamente próxima à sua obra.
As respostas de Hilda Hilst são quase fábulas, falas tanto quanto comovidas com
a existência. “Não sei se a minha vida daria boa poesia”, duvida ela, para quem
a poesia, desde Shakespeare, jamais mudou nada no mundo. [P.M.]
PM | Hilda, você escreve para responder perguntas que às vezes não
têm respostas?
HH | Na maior parte das vezes sim. No meu texto Qadós, por exemplo, isso se revela mais
insistentemente. O personagem, desde criança, já perturbava os pais por ser acentuadamente
perguntante e recebia os apelidos de Qadós-pergunta-coisa, Qadós-disseca-tripa.
Depois, já adulto, continuou se perguntando:
“(Qadós)... quando comecei a perguntar de manhãzinha:
O que me dizes do administrador
do Cosmos?
E o administrador sabe de que maneira deve ser administrado para
chegar com sabedoria e perplexidade ao seu último estágio?
E se ele, o administrado sabe disso, que importância tem o administrador?
Fui indo aos solavancos muitas horas e terminei com esta jóia:
o meu ser pergunta é um estado imutável?”
Mas
escrevo principalmente pela necessidade imperiosa de me expressar.
PM | Vale a pena escrever poesia? Não seria melhor transformar a vida
em poesia do que fazer poesia com a vida?
HH | Não sei o que você quer dizer com “valer a pena”. Quer dizer
fama, prestígio, dinheiro? Palavras simples podem significar coisas complexas.
Heidegger escreveu um verdadeiro tratado sobre “O que é uma coisa?”. Poesia é a
necessidade de se expressar. Não sei se a minha vida daria boa poesia. Sei que antes
de tudo, importa poder se expressar.
No Brasil, a voz do povo
é o futebol, a música, a dança. Se ‘voz do povo é voz de Deus’ talvez Deus goste
muito de dançar. Sei muito pouco sobre Deus. Talvez ele passe horas falando ao telefone
e por isso tudo está como está. Mas, mesmo solitário, o poeta pode ter várias vozes.
Os grandes poetas são sempre solitários e falam muito sobre a ausência
PM | A poesia é capaz de transformar o mundo?
HH | Não acho que seja. Mesmo um grande poeta não pode transformar
o mundo. Shakespeare era deslumbrante mas não transformou o mundo.
PM | Hoje em dia é possível surgir um poeta que tenha a voz do povo
ou a poesia nestes tempos pós-modernos é apenas dos poetas solitários?
HH | No Brasil, a voz do povo é o futebol, a música, a dança. Se “voz
do povo é voz de Deus” talvez Deus goste muito de dançar. Sei muito pouco sobre
Deus. Talvez ele passe horas falando ao telefone e por isso tudo está como está.
Mas, mesmo solitário, o poeta pode ter várias vozes. Os grandes poetas são sempre
solitários e falam muito sobre a ausência.
PM | Octávio Paz diz que “a história da poesia moderna é a do contínuo
dilaceramento do poeta, dividido entre a moderna concepção do mundo e a presença
às vezes intolerável da inspiração.”
HH | A inspiração existe, embora João Cabral não acredite. Ela vem
subitamente e pode dar até febre física. É magnífico receber algumas vezes a inspiração.
É um dom divino com o qual somos agraciados.
PM | Ainda hoje nascem poetas simbolistas e saudosistas, soneteiros
e bordadeiras. Se pelo menos fossem repentistas...
HH | Se você se refere a “bordadeiras” como aquelas mulheres que durante
a revolução francesa assistiam aos julgamentos bordando meias e eram denominadas
de tricoteuses, isso é terrível, pode
ser medonho. Acho que sempre é bom quando nasce um bom poeta, seja repentista
ou não. Mas é necessário tentar inovar.
PM | Poeta é aquele que sobrevoa o abismo?
HH | Sim. Sobrevoei muitos mas, nunca tive coragem de me lançar sobre
eles. Sempre tive uma boa dose de autopreservação.
PM | Há algum sentido, se é que há algum sentido, nas palavras e frases
do poema?
HH | Aquele que se expressa, sempre tenta fazer algum sentido. Não
um sentido convencional, muito menos na poesia. Ele não fala sobre o nada e para
nada.
PM | O ritmo é o núcleo da poesia?
HH | Não só. É um conjunto. O ritmo, a forma, o
fundo.
PM | Valéry comparou a poesia com a dança e a prosa com a marcha...
HH | Minha prosa não é uma marcha, é sempre uma prosa poética. Não
acredito nessa diferença.
PM | A palavra poética é a revelação da própria imagem? Um poema
só tem sentido a partir de suas imagens?
HH | Um poema não tem sentido apenas a partir de imagens, mesmo as
imagens tendo grande importância. Nos meus versos
“Como se te perdesse assim te quero.
/ Como se não te visse (favas douradas / Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
/ Inamovível, e te respiro inteiro / Um arco-íris de ar em águas profundas.”
existem lindas imagens mas, não apenas isso.
PM | Falemos da crítica. Os críticos mandarins ignoram a sua poesia
ou a tratam como se você fosse uma poeta apenas erótica. Alguns a classificam como
um poeta pornográfico...
HH | Os críticos mandarins que leram minha poesia não a ignoram e
sabem que não posso ser classificada de poeta erótica. Anatol Rosenfeld, Jorge de
Sena, Antônio Houaiss falaram muito bem sobre meu trabalho. Dos meus 22 livros
de poemas, apenas um, “As Bufólicas” pode ser considerado pornográfico mas, eu sei
que ele tem principalmente humor. E dos meus 11 de prosa, apenas 3 podem ser considerados
pornográficos, mesmo não o sendo exclusivamente. Wilson Martins usou erroneamente
a palavra “bordelesca” ao se referir ao meu livro “Do Desejo” mas ele não o deve
ter lido. Porém, estou em boa companhia. Du Boccage também sofreu esse tipo de
confusão, mesmo tendo, na quase totalidade, uma obra lírica, infelizmente desconhecida
pela grande maioria. D. H. Lawrence comentou muito bem o que é pornografia, em 1925
no livro “Pornografia e Obscenidade”. Não sei por que ainda fazem tanta confusão
hoje em dia. Nos jornais, adoram colocar títulos chamativos. A “Folha de São Paulo”,
na resenha do meu livro “Estar Sendo-Ter Sido”, usou o título “Uma Jeremiada Pornográfica”,
deixando claro que não entenderam do que se tratava. No jornal francês “Liberation”,
Eric Loret fez um comentário brilhante sobre “A Obscena Senhora D”, comparando-me
a Bataille. Alguém, na redação, colocou o título “La cochonne Hilsterique”. Acho
que nem na França me entenderam.
PM | Nietzsche diz que “é por nossas virtudes que somos bem punidos”.
HH | Não concordo inteiramente. Acho que quase ninguém lê Nietzsche,
que foi uma pessoa deslumbrante. Um dia ele se comoveu tanto vendo um cavalo sendo
açoitado que começou a chorar, abraçou e agradou a cabeça do cavalo, caiu no chão
e acabou sendo levado para o hospício.
PM | A leitura crítica deveria ser uma interpretação da beleza como
um objeto de saber...
HH | Você conhece a beleza? A idéia da beleza é muito difícil. Você
pode ter a ilusão da beleza que você já viu um dia mas, não sabe onde. Alguns místicos
contemplaram a beleza em Deus, durante os seus êxtases. Santa Angela de Foligno,
que viveu no século XIII, disse ter visto a beleza de Deus numa visão. Mas, acrescentou
que “Ali não havia nem sombra de amor”. Isso me deixou tão impressionada que comprei
sua biografia. Talvez nós todos, um dia, tenhamos visto o rosto de Deus e por isso
evocamos a beleza.
PM | Você parou de escrever por causa da crítica, ou das editoras
que não divulgam os poetas, ou ainda porque os leitores estão surdos para a poesia?
HH | Parei de escrever quando senti que tinha dito tudo o que eu sabia
e da melhor forma que fui capaz. Fiz o esforço maior que pude para me expressar.
Não adianta mais dar explicações nem entrevistas. Se não entenderam, eu não sei
dizer de outra forma. Se me viesse alguma coisa com a força que me vinha, voltaria
a escrever, seja prosa ou poesia. Mas, não tem mais vindo. À medida que vamos envelhecendo,
descobrimos que não compreendemos nada.
PM | Gide diz que “todas as coisas já estão ditas mas, como ninguém
escuta, é preciso recomeçar sempre”.
HH | Blake, Bataille, Rimbaud, Baudelaire, Beckett, Henry Miller,
tantas outras pessoas deslumbrantes já disseram. Eu sinto que já disse tudo o
que devia. Acho que os novos artistas, os novos talentos, devem recomeçar sempre
sim.
PM | Ler poemas em voz alta irrita os deuses aposentados...
HH | Se são deuses, nunca são aposentados. É preciso saber ler muito
bem a poesia. Pablo Neruda, Drummond, não sabiam ler bem seus poemas. Ouvindo
uma gravação de Cecília Meirelles declamando seus poemas fiquei surpresa. Eu sempre
soube ler poesia muito bem, tanto a minha própria como a dos outros. Quando eu tinha
19 anos, Oswaldo de Andrade me fez ler o poema “Une Charogne” do “Flores do Mal”, de Baudelaire, em voz alta.
Parei de escrever quando
senti que tinha dito tudo o que eu sabia e da melhor forma que fui capaz. Fiz o
esforço maior que pude para me expressar. Não adianta mais dar explicações nem
entrevistas
PM | Você concorda que, geralmente, os poetas são aplaudidos porque
trabalham em favor da língua comum e não porque inventam uma forma original de
linguagem?
HH | Não da língua comum. Quando você escreve poesia ou prosa, tua
vontade é sempre dar um passo além. Como já teve Shakespeare, Rimbaud, Joyce e
tantos outros maravilhosos e geniais, é muito difícil dar esse passo, ser original.
PM | Falemos do tempo. A eternidade está no presente?
HH | Os antropólogos dizem que para todos os homens a ação onírica
une o passado e o futuro no presente, e nos sonhos o espaço inexiste. O Zen questiona
muito isso do Ali e Agora, a eternidade estaria no aqui e agora. Mas não sabemos
o que é Eternidade.
PM | A morte não tem importância, desde que haja alguma coisa do outro
lado...
HH | Ela não tem importância porque ela é inevitável.
PM | Nunca somos geniais quando morremos...
HH | Podemos ser muito geniais ao morrer. As últimas palavras de Kafka
foram “Para o poço, para o fundo do poço filho de reis”. Rimbaud despediu-se da
sua irmã, referindo-se ao dia seguinte da sua morte, dizendo “Eu estarei embaixo
da terra e tu caminharás ao sol”. Eu apenas diria “Que maçada”. Daqui há 50 anos
serei considerada genial. Principalmente quando morremos podemos ser geniais.
PEDRO MACIEL
(Brasil).
Narrador e ensaísta, autor de A Noite
de um Iluminado (Iluminuras). Entrevista
publicada no suplemento Prosa &
Verso, do jornal O Globo de 25/12/1999, cuja reprodução nos foi autorizada
pelo próprio autor. Página ilustrada com obras de Joseph Cornell (Estados Unidos),
artista convidado desta edição de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 25 | Março
de 2017
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente |
MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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FLORIANO MARTINS
revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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