No seu excelente
ensaio de divulgação “O Homem e o Livro”, publicado pelo Prof. Bento de Jesus Caraça
na saudosa “Biblioteca Cosmos”, conta-nos M. Iline que, na longa caminhada para os
tempos modernos, o livro foi precedido pelo objecto simbólico e mesmo pelo próprio
Homem – como aedo, como trovador, como livro
vivo.
O volumezinho é
extremamente curioso e merece toda a nossa boa atenção. A par de nos fornecer inúmeros
dados interessantes, ameniza-se narrando-nos diversas histórias pitorescas como
a do comerciante Itelius e os seus escravos-livros, e outras que não me cabe recordar
aqui.
Habitantes que
somos deste século tolhido e limitado por ilusões e artifícios, será talvez mais
útil, por ora, tentar compreender quais os caminhos que o Homem tem defronte enquanto
leitor e enquanto presença viva e raciocinante
face aos homens que para ele escrevem, para ele publicam, distribuem e vendem –
nem sempre correspondendo com eficácia e exemplaridade ao seu desejo de mais saber e mais esclarecimento, que o mesmo é dizer mais conhecimento e mais realidade.
Não entra no âmbito
deste texto uma dissertação ampla sobre o problema dos chamados “mass-media”, os
célebres meios de comunicação de massa,
que vêm a ser: a rádio, a televisão e os jornais. Mas justifica-se, por razões óbvias,
que mesmo ao de leve para ele chamemos a atenção do leitor, recordando que já de
há muitos anos pensadores como Umberto Eco, Marshall Mac Luhan, Herbert Marcuse,
Gérard Legrand, Roland Barthes e Fernando Savater, entre outros, nos andaram a alertar
a consciência para o facto, perturbante, desses ”mass-media” procederem mais ou
menos subtilmente a uma crescente esterilização
do nosso espírito.
Com efeito, caracteriza-se o tempo em que vivemos
por uma presença obsidiante de imagens e de signos – na maior parte dos casos destituídos
de valor – que arrastam verdadeiras obsessões e angústias por intermédio das quais
se promove a inserção do Homem em modelos sociais uniformes e unidimensionais, visando
claramente a sua inércia ante cripto-autoritarismos ainda que de fachada democrática.
Assim sendo, é lícito perguntar-se: que papel pode o livro desempenhar na sociedade
actual, que deve então ser o livro para o comum dos cidadãos?
A primeira potencialidade
do livro é ser, duma maneira marcante e na contramão do que eles têm de imediatista
e manipulatório, o anti-rádio, o anti-jornal, o anti-televisão. Será, evidentemente, outras coisas mais profundas, mas
se antes de tudo não fôr isso será muito pouco.
Ficará mais explícita
a anterior afirmação se nos detivermos por instantes no excerto de um artigo de
análise de Claude Julien, vindo a lume no “Mundo Diplomático”, onde nos diz o conhecido
publicista: “Porque recebe do mundo inteiro, a intervalos muito curtos, uma grande
quantidade de notícias, o cidadão de uma sociedade industrializada pode julgar-se
informado. Na realidade, é constantemente submergido por uma vaga de informações
rápidas, efémeras, muitas vezes superficiais e desligadas do seu contexto histórico,
cultural e económico – a ponto de os
factos, as palavras e as imagens frequentemente perderem o seu significado profundo. Limitados apenas aos meios de comunicação de massas, o Europeu e o Americano podem tomar conhecimento de um fastidioso volume de notícias discordantes sem, no entanto, adquirirem uma melhor compreensão da sociedade em que estão inseridos e da história de que são agentes”. [1]
factos, as palavras e as imagens frequentemente perderem o seu significado profundo. Limitados apenas aos meios de comunicação de massas, o Europeu e o Americano podem tomar conhecimento de um fastidioso volume de notícias discordantes sem, no entanto, adquirirem uma melhor compreensão da sociedade em que estão inseridos e da história de que são agentes”. [1]
As razões que assistem
a Claude Julien são, quanto a mim, tão claras e evidentes que não necessitam de
corroboração por meio de mais exemplos. Concluamos, sem nos demorarmos demasiado
neste passo, que o livro – se moderadamente liberto duma soma de condicionalismos
que entravam a sua difusão e a sua divulgação – é a forma mais eficiente, mais nobre
e mais bela de impedir a verdadeira castração
mental a que o homem do quotidiano, se mal se precata, está sujeito. O livro
ampara-nos no acesso a um mundo mais real
porque mais exacto. Ler um livro é sempre
um acto de humana solidariedade que com frequência atinge níveis muito profundos.
Se o artista, o escritor, desperta em nós sentimentos de consideração e de estima,
isso deve-se ao facto de, no nosso íntimo, nós bem sabermos que o homem que escreve
– e não que escrevinha – está ao nosso lado e ao lado dos que sofrem asdisfunções
sociais e quotidianas e desejam mais pureza e mais verdade prática.
Embrenhando-se nos mundos criados pelo escritor
autêntico (aquele que não escreve com intenções de crua propaganda ou de notoriedade
malsã) o leitor recupera o seu estatuto de ser pensante e participante, de ser que aspira à inteira dignidade tantas
vezes negada, com frieza ou cinismo, pela rotina social erigida em dogma por sectores
particulares ou mesmo oficiais. É que ler livros, na verdade, ajuda-nos a ascender
à comunicação com os outros e connosco, humaniza-nos verdadeiramente. É como que
uma operação alquímica que no cadinho dos livros calcina e faz erguer a matéria
nova e saudável, filha da luz dispersa nas frases, nas páginas, nas folhas, ajudando-nos
a entender a Vida – pois que o saber de experiência feito só é valioso e autêntico
se caldeado com o conhecimento intrínseco dos extensos e complicados (porque profundos)
processos motores do Mundo.
Humilde ou rico, simples ou de cuidada apresentação,
vindo da prateleira elegante duma livraria moderna ou do obscuro escaparate de um
qualquer alfarrabista, um livro é sempre uma presença fraternal, uma companhia inestimável
na travessia das vastas florestas do hábito, dos pântanos desmesurados do dia-a-dia
mecanizado.
A história do livro
entrelaça-se intimamente, aliás, com a história do Homem. O livro tem sofrido a
par com o Homem. A destruição de livros, que é um seguro indício da destruição de
homens – atente-se nas depredações cometidas em bibliotecas durante guerras de invasão
– diz-nos bem dos sentimentos e das razões bestiais dos poderosos autoritários ante
a verdade potencial inerente aos livros. O califa Omar, que mandou destruir por
fanatismo a Biblioteca de Alexandria com os seus milhares de livros raros, tem um
émulo perfeito nesse nefando cardeal Ximenes que, aquando da conquista de Granada,
condenou cinco mil livros valiosos a perecerem nas chamas. E que dizer dos autos-de-fé
perpetrados publicamente pelos nazis contra livros de Heine,
Brecht, Arnim, Lichtenberg ou Stefan Zweig ou, nas caves da Lubianka para dar menos nas vistas da opinião pública internacional, pelos fascistas vermelhos contra obras de Mikail Bulgakov, Isaac Babel, Boris Pasternak ou Bruno Schulz? Ou a destruição efectivada, por agentes da Gestapo, dos manuscritos do grande poeta Saint-Pol Roux, que morreu de desgosto?
Brecht, Arnim, Lichtenberg ou Stefan Zweig ou, nas caves da Lubianka para dar menos nas vistas da opinião pública internacional, pelos fascistas vermelhos contra obras de Mikail Bulgakov, Isaac Babel, Boris Pasternak ou Bruno Schulz? Ou a destruição efectivada, por agentes da Gestapo, dos manuscritos do grande poeta Saint-Pol Roux, que morreu de desgosto?
Os exemplos, infelizmente,
poderiam multiplicar-se – e já não falamos das tentativas de marginalização e ocultação,
levantando no mínimo dificuldades financeiras impeditivas – mesmo aqui e agora no
nosso país tendencialmente democrático, em relação a autores desenquadrados ou que
não se pautem pelas “obrigatoriedades” que o regime desejaria institucionalizar.
É imenso o rol da hostilidade e até do ódio ao
poder poético e salutar, portanto libertador, dos livros.
Ao encerrar esta
digressão, que desejei comunicativa, resta-me pedir aos que me estiveram seguindo
com menor ou maior atenção: leiam. Há tanta coisa maravilhosa para descobrir ou
para saber!
Um livro pode eventualmente
inquietar, mesmo magoar – porque nós somos seres humanos e, por isso, passíveis
de mágoa e de inquietação. Mas repare-se que até dessa mágoa e dessa inquietação
pode nascer, e geralmente nasce, beleza e conhecimento, anterrostos da possível
sabedoria.
Os quais, acrescentando-se
a muita outra sabedoria e beleza que constituem património comum, caberão um dia
na Festa de construir um mundo outro –
mais justo, mais verdadeiro e mais feliz.
NOTA
1. Intervenção do autor
na sessão que lhe esteve destinada, em Tours), aquando do evento “Livros e leitores”,
na qual foi um dos participantes pela banda de Portugal. Tradução para o francês
de Alex Centeno.
NICOLAU SAIÃO (Portugal,
1949). Poeta e ensaísta, tradutor e artista plástico. Página ilustrada com obras de Ana Mendoza
(Venezuela), artista convidada desta edição de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 26 | Abril de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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