FM
Gosto do
que diz sobre este meu livro o artista plástico Valdir Rocha, atento ao fato de
que o mesmo “contém versos que carregam poesia, versos típicos de prosa e até despidos
da poesia corrente, prosa que leva poesia, prosa que é prosa mesmo, e por aí vai.
Diz-se a certa altura, com razão, que ‘Não estou bem certo se o domínio de uma linguagem
afiança uma poética'. Reúne poemas e alguns não-poemas; jamais antipoemas. Ilude
sempre. Sinceramente, é muito difícil indicar-lhe o gênero. E isso está longe de
ser defeito porque é virtude. Diria – só para não omitir uma classificação – que
está embebido de poesia. Cabe a quem recebe as confissões do texto ‘aprender a lidar
com o imprevisto'“. Isto é o que se poderia dizer de minha poesia como um todo,
Álvaro, desde que acentuando que à medida que avanço na escritura de novos livros
se vai cavando mais abismo sob os pés, tanto do autor quanto do leitor. O que temos
então em Estudos de pele – e logo o teremos também em Duas mentiras,
livro que será publicado em seguida – é uma intensificação dessa aprendizagem com
o imprevisto. Gosto dessa provocação constante do imaginário, de provocar a mim
mesmo para que não incorra nunca na cristalização de um discurso.
AAF No início do livro, você
escreve que “toda a criação está feita de equívocos, exageros, precárias aproximações
da realidade, falsas suspeitas”. Peço que se estenda nesse assunto.
FM
Quando publiquei
Cenizas del sol (Andrómeda, 2001, Costa Rica), Alfredo Fressia, em resenha
na imprensa uruguaia, considerou que “o discurso, como costuma ocorrer na poesia
de Martins, parte de um não-saber, a ignorância que precede e provoca as reiteradas
perguntas, como em um infinito diálogo interior, para encerrar-se com respostas
intuídas por um observador”. Pode-se dizer que também em Estudos de pele
a mesma trama estética está presente, embora com mais complexidade, pois tanto se
desdobram e rearticulam as vozes convocadas como se multiplica a natureza do discurso,
recorrendo a passagens bíblicas, crônicas policiais, fragmentos autobiográficos,
evocações míticas e relatos de possessão. A linguagem poética ganha em astúcia quando
acentua o que não anda bem nela mesma.
AAF
O que me
parece imensa beleza é ler seu livro como se fosse um romance com começo, meio e
fim. Ao mesmo tempo, quero destacar imagens poéticas marcantes, escritas por quem
conhece seu ofício de escrever. Você afirma que não houve nenhuma caridade na escritura
de seu novo livro. O que significa isso?
FM
A primeira
observação diz respeito à estrutura do livro, que se não é propriamente romanesca
tampouco se trata de uma simples coletânea de poemas soltos. Todo o livro se encontra
montado partindo da ideia de uma polifonia. E aqui cabe recorrer uma vez
mais ao que mencionas na pergunta anterior, sobre os exageros e fantasias que neste
caso, à diferença de um livro como Dom Quixote, não se concentram na voz
única de um narrador, mas sim num caudal de tramas secundárias que acabam conformando
aquele “rio onírico”, digamos, evocando a aguda leitura que Milan Kundera faz da
poética de Kafka, remetendo-nos a um “longo fôlego da imaginação” que tão bem se
descortina na obra do autor de Castelo. Já em relação à caridade aludida,
situemos o contexto em que ela se dá, sempre considerando esse jorro incessante
de vozes que ambienta os cenários constitutivos do livro. Isto nos leva à ideia
de visitação que menciono no início, lembrando que todas as vozes femininas estão
por conta própria, que me procuraram para que eu lhes desse passo a seus depoimentos
viscerais. São elas que fazem do autor seus inesgotáveis estudos. As mulheres de
Estudos de pele são um retrato de nossa perda de sensibilidade. É do que
nos acusam em todo momento. Tanto recorro a personagens bíblicos, pela notória violência
sofrida pela mulher nas tábuas fundamentais do catolicismo, quanto à atualização
desses padrões de sofrimento induzido. Estão presentes tanto as discordâncias cotidianas,
na maneira de compartilhar a vida, quanto suas perspectivas míticas, as estranhezas
manifestas, por vezes místicas. Estas mulheres não têm medo de dizer do que padecem:
do abandono completo por parte de uma irracionalidade que assume o comando como
sendo a supremacia humana.
AAF Repito a você a pergunta
que faço a todos os poetas que entrevisto: afinal, a poesia serve para quê?
FM
A rigor,
já sabemos a resposta, conhecimento que também não serve para nada, pois a perversão
se encontra na pergunta, que pode muito bem ser contestada com outra indagação:
por que deveria servir a poesia para alguma coisa? Por aí não chegamos nunca a parte
alguma. Já chega de tanta tolice que serve apenas para a pirotecnia de quem
exibe malabares como sendo sua razão de ser. A serventia está ligada à ideia
de manipulação. O que perdemos, poetas? Perdemos o prazer pela existência, o mergulho
intenso no inapropriado, no inesperado, a cumplicidade com o imprevisto, até com
o indesejável, e saber tratar disso como quem se dispõe a receber novos ensinamentos,
abrir-se ao mundo, sim, Álvaro, abrir-se ao mundo, fugir da manipulação desonesta
que separa arte e vida, por exemplo, porque não há mesmo vida sem forma, existência
desgovernada em um plano estético. Então, a questão não é para que serve a poesia,
mas sim para que servimos nós, seres humanos. E para que servimos nós?
AAF
Os poetas
de sua região [o Nordeste] sofrem de preconceitos especialmente pela região sul
do país tropical de tantas alegrias e misérias? Quais são as dificuldades dos poetas
dessa região brasileira?
FM
Não vamos
acentuar caipirismos e regionalismos. As dificuldades do país não afetam aos poetas
mais do que a qualquer outro cidadão. Evidentemente que as oportunidades de trabalho
confluem para o que se chama de eixo Rio-São Paulo, especialmente, no caso dos escritores,
no âmbito editorial. Não é diferente em outros países, diferenciados por aspectos
como dimensão territorial e condições econômicas e culturais. Trata-se basicamente
de uma aposta reincidente, viciada e desgastada de manutenção de um grande centro
produtor, centro de referência, barreira que requer um esforço maior para ser dissipada,
uma atenção no sentido de não se importar um mesmo modelo, para cada região, digamos,
de novo caipirismo. É difícil, porque a grande imprensa comanda o espetáculo e distribui
a todos, indiscriminadamente, o mesmo santinho, a mesma carta marcada de
seu baralho de futilidades existenciais. Mais difícil ainda porque todos sonham
em virar carta marcada.
AAF
Eu penso
que a crítica literária brasileira – honradas algumas raríssimas exceções – já morreu
há muito tempo, ficando no seu lugar um bando que prima pela desonestidade e pela
desinformação cultural. O que você pensa da crítica literária dos jornais brasileiros,
especialmente no trecho Rio-São Paulo?
FM
Não te esqueças
que as exceções servem apenas para confirmar a regra. Quem se preocupa com a crítica?
Evidente que o leitor é um refém dela, um cliente a quem o marketing de venda trata
com o mesmo desapreço que qualquer outro consumista. A ausência de reflexão sobre
livros e autores em nossa imprensa não denuncia carência de visão crítica, como
se o país estivesse momentaneamente desprovido de certa falta de argumentação e
acuidade. O dilema central é o do comportamento de nosso intelectual, ou seja, há
conivência por toda parte, todos sonham com o apogeu, a glória, buscam – até com
incontrolável exasperação – um lugar ao sol, confundindo causa e efeito, sempre.
Não se trata de setorizar a questão. Não há uma crítica regional, pois o
que se veicula, a título de crítica – que não passa de um bolsão de resenhas definidas
e apanhadas à pressa, além de mal pagas e com atraso – é assinado por gente de qualquer
credo ou região. Eu sinto a tua preocupação, quase uma zanga, com o que se passa
entre Rio e São Paulo, mas agora mesmo estamos em diálogo aberto em um jornal no
Paraná, o que significa expressivamente que é possível buscar algo além do que chamei
de caipirismo. O exercício da crítica tem a ver com despojamento, com clara intenção
de diálogo, e não com o impositivo. Qual crítica morreu há muito tempo? Dois grandes
estilos de crítica ganharam terreno no Brasil: o adjudicatório, onde a vítima paga
pelos erros de sua eventual vinculação com o criminoso: seja o vínculo com alguma
escola literária ou uma mera preferência declarada em entrevista; e o evocatório,
que – mais astuto – dispensa explicações. Em resumo: aos amigos da corte, tudo;
a seus desafetos, nada. Isto é crítica? Chegou a ser algum dia?
AAF
Por que
e para quem escrever poesia? Quem lê poesia no Brasil?
FM
Isto me
recorda o Fellini. É como se alguém ao final de um filme – e este filme representasse
não apenas a sua vida, mas toda a existência humana – indagasse: mas afinal, para
que serviu este filme? E então se poderia refletir que algo se passou de errado,
de muito errado com o filme, pois ele não deveria suscitar tal indagação, porque
todo o filme havia padecido da pretensão de olhar o mundo por outra lente
que não fosse a do sentido histórico. E então Fellini, numa entrevista a
Giovanni Grazzini, nos dá a chave: “Olho para o cotidiano, enquanto estou vivo.
O resto é especulação”.
AAF Explique o seu trabalho
na poesia de vários países latino-americanos, desenvolvido há tanto tempo, organizando
antologias e eventos, levando a poesia brasileira para fora do país. Por incrível
que possa parecer, ainda existem na literatura pessoas como você.
FM
Não sou
dado a falsas modéstias, mas tampouco me atrai a ideia de ficar a enumerar feitos.
Gostaria que este meu trabalho ao menos provocasse um mal-estar, no sentido que
houvesse uma atenção para a indagação-chave: por que evitamos o diálogo entre nossas
culturas? Por que mesmo escritores, intelectuais, artistas, jamais promoveram a
aproximação dessas culturas? Por que os acordos recentes entre países latino-americanos
desconsideram a cultura desses povos? Por que reagimos de forma tão apática quando
a pauta trata da cultura do país, em contrapartida à maneira efusiva com que saltam
de órbita nossos olhinhos quando a única peça em questão no tabuleiro é o umbigo?
Evidentemente que as estratégias do mercado artístico, por exemplo – se pensarmos
em cinema ou música – delineiam-se buscando novos clientes, nada mais. Se a
esta regra básica nos submetemos todos, tudo está perfeito. E como em um negócio
qualquer, se a qualidade do produto foi substituída pela eficácia da apresentação
do mesmo, sua retórica, digamos, como esperar da música ou do cinema, que queira
voltar a ser arte? Pelo contrário, toda a arte agora quer ser cinema ou música.
É uma grande enrascada em que nos metemos, e com a plena conivência dos artistas.
AAF
E o seu
trabalho de tradutor?
FM
Imaginemos
a cena em que um tradutor tenta obsessivamente evitar o original que está a traduzir.
A todo custo tenta construir ali um objeto outro, o mais longe possível do original.
Este será – segundo pensa – seu grande mérito. A lição – a não ser repetida por
ninguém – é de que a tradução quer fazer com que o original desapareça por completo.
Porém, sua grande perversão consiste no fato de que, mesmo ausentado, ele
esteja sempre presente, com sua nova máscara, porque afinal a linguagem se transmite
de máscara em máscara. Existem três determinantes estilísticas no trabalho de um
tradutor: o estilo comum, o estilo do tradutor e, finalmente, o estilo do autor.
É possível reduzir as transgressões de um autor a um mero idioma bem escrito,
dialogar intensamente com elas ou destroná-las em nome da hipotética transgressão
do tradutor. Teríamos aí os três estágios em que se movimenta a tradução: sufocação,
despojamento, presunção. Creio que há apenas uma originalidade na tradução:
a de perceber – e jamais será exata essa percepção – o grau de transgressão do que
se está a traduzir. O resto é traquinagem, ou crime de lesa linguagem.
AAF
A poesia
brasileira atual, em muitos casos, deprime, tal a inconsequência de alguns nomes
que têm respaldo da festividade do jornalismo cultural sem compromisso. Isso ocorre
também em outros gêneros da literatura, mas no que diz respeito à poesia essa questão
é alarmante. Então, para concluir, como anda a poesia brasileira hoje?
FM
Desconfio
que a poesia feita no Brasil sempre levou o que se poderia chamar de uma vida dupla:
de um lado a vertente explícita, encorajada pela crítica acadêmica e a mídia, ou
seja, sua agradável estação formalista, onde Semana de Arte Moderna e Concretismo,
eventos de maior circulação internacional, representam uma mescla de conservadorismo
e alheamento em termos de contato com a realidade. Observe-se que manifestos de
uma tendência e outra se aproximam na estratégia de não reconhecimento do que está
à volta ou atrás. Se o Modernismo simplesmente apaga as pistas que lhe são mais
caras, no caso do Concretismo há uma presunção em negar tudo o que lhe antecede.
Por outro lado, há a gestão solitária de eclosões que acabam por traçar um mapa
mais denso de nossa cartografia poética. Evidentemente que isto se passa em qualquer
parte. Mas por vezes me impressiona a maneira como um ilusório status quo
da poesia encanta o que há de mais medíocre, catadores de versos que perseguem uma
condição que, a bem da verdade, quem a tem, de fato, se sente incomodado com ela.
Os poetas são uns chatos, que sempre alertam para as tolices cometidas pela espécie
humana. Como alguém pode sentir prazer em ser poeta? É de uma morbidez impecável.
Mas todos querem se sentir poetas. É o lado espetacular da coisa, onde a sensação
tem mais importância do que o poema em si. O personagem ganha a parada. O poeta
em nossos dias não busca senão tornar-se personagem de si mesmo. Nem precisa escrever
versos. É tão simples e ao mesmo tempo todos parecem felizes com a situação: críticos
e editores e poetas se felicitam por esse acerto de ocasião. Nas outras artes também
se passa o mesmo. O que antes se poderia pensar que era uma fábrica discreta de
autores, agora ganha uma logística mais apurada: trata-se de uma fábrica de leitores.
Pensemos no cinema, por exemplo, naqueles atores que estão sempre a estragar as
cenas porque exibem um patético olhar de quem se sente extasiado com a própria –
suposta, claro – genialidade: Antonio Banderas e Hally Berry são boas lembranças
deste caso. Para melhor compreensão, misturemos as artes – já não seria sem tempo.
Acabaríamos percebendo que, no geral, uma vez que estamos falando de Brasil, o poeta
tornou-se um grande canastrão.
Entrevista concedida
a Álvaro Alves de Faria. Originalmente publicada
no Jornal Rascunho # 54. Curitiba, outubro de 2004. ÁLVARO ALVES
DE FARIA (Brasil, 1942). Poeta, ensaísta e jornalista. Foto de FM, ao lado de Jacob
Klintowitz, 2012 © Fábio Chiba.
Imagens
reproduzidas nesta página:
2011 Alegoria silenciosa
2011 Amuleto extraviado
2011 Árvore secreta
2011 Aviso ignorado
*****
Organização
a cargo de Márcio Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado
| Floriano Martins (ensaio fotográfico)
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta edição
integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA
ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS
DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA
MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS
NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO
EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS
DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA
MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA
ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano
Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio
2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de
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