segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

AGULHA REVISTA DE CULTURA # 105 | Dezembro de 2017 | Editorial

● A OPULÊNCIA ANTECIPA A MALDADE

1 | Reformas são indispensáveis. Fazem parte da mecânica de qualquer norma. Devem ser efetuadas sempre que houver necessidade de atualização de um sistema. O dilema não está na reforma em si, mas antes em seu conteúdo, ou melhor, nos interesses que protagonizam a reforma. Mais especificamente, o dilema está na condição daquela fatia da sociedade que rege a reforma, o poder Legislativo. A lisura das reformas, em quaisquer âmbitos, exige um altruísmo da parte dos congressistas, hoje impossível de se encontrar, excetuando casos cuja função única é manter a relação entre regra e exceção. Demais poderes têm que atuar conforme a lei, porém o Legislativo é a Lei. Uma lei atualmente regida por gente a mais desonesta possível. Consequentemente toda e qualquer reforma trará benefícios únicos para a casta que comanda o espetáculo, o circo de horrores de nossa República.

2 | Há uma coisa criminosa nessa concepção da redação do ENEM. Dois critérios que por si só justificariam a correta aplicação de uma prova de redação – o domínio do vernáculo e a clareza na argumentação – estão sendo minimizados em face do julgamento sobre o entendimento que cada inscrito tem acerca do tema. A junta revisora converte-se em tribunal de valores, impondo uma linha de pensamento a seu bel prazer. Evidente que isto tanto inibe o candidato quanto atropela a formação de caráter do mesmo. Não tenho mais filhos em idade de vestibular, porém alerto a todos os pais conscientes que é no mínimo inaceitável o modo como este assunto vem sendo tratado pelo Governo.

3 | Utilização de celulares em salas de aulas, aprovada pelo Governo de São Paulo, é projeto piloto e tende a aprovação pelo MEC em esfera nacional. Como não há um conselho de pais de alunos e ou, caso exista, é inoperante e se subordina a todas as normas retrógradas impostas por um ministério absolutamente incompetente e a serviço de um princípio de derrubada sistemática das funções educativas, cria-se agora uma impossibilidade de relação entre alunos e professores. Alunos poderem consultar Internet ou conversar entre si virtualmente em sala de aula desmerece e desrespeita o acompanhamento didático e formaliza um padrão de consulta cujo conteúdo em grande parte é inconfiável. É tão óbvio o malefício que a medida causa que soa ridículo contestá-la. Repete-se aqui, no entanto, uma minimização dos efeitos danosos que advirão de tal prática. Uma vez mais a população se subordina às medidas mais espúrias do Governo.

4 | Como o brasileiro em geral é um tipo bipolar dá-me curiosidade saber quem está na outra ponta, cada vez que me deparo com elogios ou achincalhes, a quem quer que seja. De quem o sujeito é a favor quando declara ser contra alguém? Quem é o protótipo da integridade em relação ao acusado de chefe de quadrilha? Também acho um desalento quando vejo a facilidade com que se confunde o amoral com o imoral. Por vezes se embaralham inocentes e culpados, de acordo com a vareta mágica de quem manuseia nossos valores quase sempre mais oportunistas do que altruístas. A justiça também indaga a sua função em uma terra onde ninguém mais a cumpre de forma convicta e incondicional. Quem é o probo? Quem o desonrado? Qual a bola da vez e sua caçapa preferida?

5 | As cidades se entreolham, maquiando suas dores. Os reinos cresceram tortuosos, altares à míngua. As nove casas foram chamadas a identificar a queda. Trouxeram consigo um farnel de cal e bênção, como se a ilusão voltasse a modelar todas as almas. Novo saldo de impertinência acumulando poeira. Paradigma gasto dos dias mais escuros lembrados com a moenda dos sacrifícios ainda suja e quente. Os filhos arrastando seus grilhões, o olhar turvo, repetindo suadas ameaças de fuga de outras eras. Cenário descascado como um tempero da memória. Rostos revirados como folhas colhidas pelo acaso. Como arapucas e carapuças, um cento de mágoas. Na primeira das casas uma figura picava as sombras. Logo se via um balde de cinzas na soleira vizinha. As nove casas cerziam o retábulo de seus feitiços. A opulência antecipa a maldade ouvimos a víbora soletrando as asas de um mosquito antes de tê-lo.

6 | Pelo que nos permitiu deduzir o presidente da Câmara dos Deputados, gravidez por estupro é também um ato de amor. Dando uma passada pelas manchetes da grande imprensa somos acometidos por uma dúvida, se o roteiro de nossa realidade equivale ao de um filme de terror ou de uma comédia bufa. De um modo ou de outro nos dá a mais nítida impressão de que estamos sendo trapaceados. E o gozo cínico dos canalhas vem fiado por todas as congregações do Grande Espetáculo, com os ditames clássicos da moral e da cívica. Não há uma única voz confiável que funcione como uma baliza, por menor que seja. Como até mesmo os manuais de sobrevivência foram retirados de circulação, não se sabe o que será do dia seguinte enquanto perdure a noite. Viver assim, na mais completa ignorância, deve também ser uma forma de estupro, portanto, um ato de amor.

7 | Os estigmas de maior incidência em nossa sociedade – refiro-me ao Brasil – são todos da casa de uma relutância em aceitar que muitos de nós participamos da alegoria existencial dos anos 1960 e 1970 e que a turbulência moral era então aceita como uma instância natural, não importando sua relação direta ou indireta com sexo, religião e política. As décadas se passaram, roladas por baixo de uma ponte erguida pela hipocrisia, e hoje tratamos dos mesmos temas como se meio século houvesse sido congelado no tempo. Desconfio que o único avanço da sociedade brasileira pertinente aos costumes tenha a ver com seu revés. Duvidamos do que somos, por mais que ansiemos por ser outro. Não aceitamos o que somos e fraudamos as infinitas possibilidades de sermos outros. Reflexo disto é que circulemos pelo empório das crises políticas ou econômicas, nos escondamos nos porões das crises religiosas e nem de longe aceitemos a matriz geradora de todas elas, a crise moral.

NOTA | Durante todo o ano de 2018 a Agulha Revista de Cultura dedicará seus 12 números mensais a edições monotemáticas. Agradecemos a todos os nossos colaboradores pelo avanço afetivo e sistemático de nossas cumplicidades. Como projeto editorial paralelo ao da revista, segue em franca expansão o catálogo da coleção “O amor pelas palavras”, uma parceria Editora Cintra/ARC Edições, de circulação exclusiva pela Amazon: http://abraxasloja.blogspot.com.br/2017/10/colecao-o-amor-pelas-palavras-editora.html

Os Editores


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ÍNDICE

ALFONSO PEÑA | Mario Maffioli y el viaje a la textura orgánica de la naturaleza

ESTER FRIDMAN | A humanidade futura atirando a flecha

FLORIANO MARTINS | Uma breve apresentação de Agathi Dimitrouka

GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Poesía y filosofía en Ludovico Silva

HANS ARP | Sophie Taeuber-Arp

ISIS ROST | Navilouca, revista de inversão

LEONTINO FILHO | Raduan Nassar, o sobrevivente tempo da paixão

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | “Etat des lieux”: à propos d’un poème tardif de Césaire ou pour dire encore l’espoir

MANUEL MORA SERRANO | Algunas cotidianeidades ciudadanas

ZUCA SARDAN & FLORIANO MARTINS | Plek-Plek-Plex Repescando memórias

ARTISTA CONVIDADO Paulo Aguinsky | SANDRA REGINA SCHERER | A escultura de Paulo Aguinsky


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Agulha Revista de Cultura
Número 105 | Dezembro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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