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A OPULÊNCIA ANTECIPA A MALDADE
1 | Reformas são indispensáveis. Fazem parte da
mecânica de qualquer norma. Devem ser efetuadas sempre que houver necessidade
de atualização de um sistema. O dilema não está na reforma em si, mas antes em
seu conteúdo, ou melhor, nos interesses que protagonizam a reforma. Mais
especificamente, o dilema está na condição daquela fatia da sociedade que rege
a reforma, o poder Legislativo. A lisura das reformas, em quaisquer âmbitos,
exige um altruísmo da parte dos congressistas, hoje impossível de se encontrar,
excetuando casos cuja função única é manter a relação entre regra e exceção.
Demais poderes têm que atuar conforme a lei, porém o Legislativo é a Lei. Uma lei
atualmente regida por gente a mais desonesta possível. Consequentemente toda e
qualquer reforma trará benefícios únicos para a casta que comanda o espetáculo,
o circo de horrores de nossa República.
2 | Há uma coisa criminosa nessa concepção da
redação do ENEM. Dois critérios que por si só justificariam a correta aplicação
de uma prova de redação – o domínio do vernáculo e a clareza na argumentação –
estão sendo minimizados em face do julgamento sobre o entendimento que cada
inscrito tem acerca do tema. A junta revisora converte-se em tribunal de
valores, impondo uma linha de pensamento a seu bel prazer. Evidente que isto
tanto inibe o candidato quanto atropela a formação de caráter do mesmo. Não
tenho mais filhos em idade de vestibular, porém alerto a todos os pais
conscientes que é no mínimo inaceitável o modo como este assunto vem sendo
tratado pelo Governo.
3 | Utilização de celulares em
salas de aulas, aprovada pelo Governo de São Paulo, é projeto piloto e tende a
aprovação pelo MEC em esfera nacional. Como não há um conselho de pais de
alunos e ou, caso exista, é inoperante e se subordina a todas as normas
retrógradas impostas por um ministério absolutamente incompetente e a serviço
de um princípio de derrubada sistemática das funções educativas, cria-se agora
uma impossibilidade de relação entre alunos e professores. Alunos poderem
consultar Internet ou conversar entre si virtualmente em sala de aula desmerece
e desrespeita o acompanhamento didático e formaliza um padrão de consulta cujo
conteúdo em grande parte é inconfiável. É tão óbvio o malefício que a medida
causa que soa ridículo contestá-la. Repete-se aqui, no entanto, uma minimização
dos efeitos danosos que advirão de tal prática. Uma vez mais a população se
subordina às medidas mais espúrias do Governo.
4 | Como o brasileiro em geral é um tipo bipolar dá-me
curiosidade saber quem está na outra ponta, cada vez que me deparo com elogios
ou achincalhes, a quem quer que seja. De quem o sujeito é a favor quando
declara ser contra alguém? Quem é o protótipo da integridade em relação ao
acusado de chefe de quadrilha? Também acho um desalento quando vejo a
facilidade com que se confunde o amoral com o imoral. Por vezes se embaralham
inocentes e culpados, de acordo com a vareta mágica de quem manuseia nossos
valores quase sempre mais oportunistas do que altruístas. A justiça também
indaga a sua função em uma terra onde ninguém mais a cumpre de forma convicta e
incondicional. Quem é o probo? Quem o desonrado? Qual a bola da vez e sua
caçapa preferida?
5 | As cidades se entreolham, maquiando suas dores. Os reinos
cresceram tortuosos, altares à míngua. As nove casas foram chamadas a
identificar a queda. Trouxeram consigo um farnel de cal e bênção, como se a
ilusão voltasse a modelar todas as almas. Novo saldo de impertinência
acumulando poeira. Paradigma gasto dos dias mais escuros lembrados com a moenda
dos sacrifícios ainda suja e quente. Os filhos arrastando seus grilhões, o
olhar turvo, repetindo suadas ameaças de fuga de outras eras. Cenário descascado
como um tempero da memória. Rostos revirados como folhas colhidas pelo acaso.
Como arapucas e carapuças, um cento de mágoas. Na primeira das casas uma figura
picava as sombras. Logo se via um balde de cinzas na soleira vizinha. As nove
casas cerziam o retábulo de seus feitiços. ⎼
A opulência antecipa a maldade ⎼
ouvimos a víbora soletrando as asas de um mosquito antes de tê-lo.
6 | Pelo que nos permitiu deduzir o presidente da Câmara dos
Deputados, gravidez por estupro é também um ato de amor. Dando uma passada
pelas manchetes da grande imprensa somos acometidos por uma dúvida, se o
roteiro de nossa realidade equivale ao de um filme de terror ou de uma comédia
bufa. De um modo ou de outro nos dá a mais nítida impressão de que estamos
sendo trapaceados. E o gozo cínico dos canalhas vem fiado por todas as
congregações do Grande Espetáculo, com os ditames clássicos da moral e da
cívica. Não há uma única voz confiável que funcione como uma baliza, por menor
que seja. Como até mesmo os manuais de sobrevivência foram retirados de
circulação, não se sabe o que será do dia seguinte enquanto perdure a noite.
Viver assim, na mais completa ignorância, deve também ser uma forma de estupro,
portanto, um ato de amor.
7 | Os estigmas de maior incidência em nossa sociedade –
refiro-me ao Brasil – são todos da casa de uma relutância em aceitar que muitos
de nós participamos da alegoria existencial dos anos 1960 e 1970 e que a
turbulência moral era então aceita como uma instância natural, não importando
sua relação direta ou indireta com sexo, religião e política. As décadas se
passaram, roladas por baixo de uma ponte erguida pela hipocrisia, e hoje
tratamos dos mesmos temas como se meio século houvesse sido congelado no tempo.
Desconfio que o único avanço da sociedade brasileira pertinente aos costumes
tenha a ver com seu revés. Duvidamos do que somos, por mais que ansiemos por
ser outro. Não aceitamos o que somos e fraudamos as infinitas possibilidades de
sermos outros. Reflexo disto é que circulemos pelo empório das crises políticas
ou econômicas, nos escondamos nos porões das crises religiosas e nem de longe
aceitemos a matriz geradora de todas elas, a crise moral.
NOTA | Durante todo o ano de 2018 a Agulha Revista de Cultura dedicará seus 12 números mensais a
edições monotemáticas. Agradecemos a todos os nossos colaboradores pelo avanço
afetivo e sistemático de nossas cumplicidades. Como projeto editorial paralelo
ao da revista, segue em franca expansão o catálogo da coleção “O amor pelas
palavras”, uma parceria Editora Cintra/ARC Edições, de circulação exclusiva
pela Amazon: http://abraxasloja.blogspot.com.br/2017/10/colecao-o-amor-pelas-palavras-editora.html.
Os Editores
● ÍNDICE
ALFONSO PEÑA | Mario
Maffioli y el viaje a la textura orgánica de la naturaleza
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/12/alfonso-pena-mario-maffioli-y-el-viaje.html
ESTER
FRIDMAN | A humanidade futura atirando a flecha
FLORIANO MARTINS | Uma
breve apresentação de Agathi Dimitrouka
GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Poesía y filosofía en Ludovico Silva
HANS ARP | Sophie Taeuber-Arp
ISIS ROST |
Navilouca, revista de inversão
LEONTINO FILHO | Raduan
Nassar, o sobrevivente tempo da paixão
LILIAN PESTRE DE ALMEIDA |
“Etat des lieux”: à propos d’un poème tardif de Césaire ou pour dire encore
l’espoir
MANUEL MORA SERRANO | Algunas
cotidianeidades ciudadanas
ZUCA SARDAN & FLORIANO
MARTINS | Plek-Plek-Plex Repescando memórias
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/12/zuca-sardan-floriano-martins-plek-plek.html
ARTISTA CONVIDADO Paulo Aguinsky | SANDRA REGINA SCHERER | A escultura de Paulo
Aguinsky
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Agulha Revista de Cultura
Número 105 | Dezembro de 2017
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão |
FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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os artigos assinados não refletem
necessariamente o pensamento da revista
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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