sexta-feira, 5 de novembro de 2021

WOLFGANG PANNEK | Surrealismo e teatro coreográfico de tensões

 


T
ransbordamento passional

O núcleo duro do movimento surrealista não era formado por amantes do teatro apesar do “papel significativo” da literatura teatral “na pré-história do surrealismo”. [1] Mas o movimento, constituído sobretudo por poetas, pintores e cineastas e oficializado por André Breton em 1924 com o Primeiro Manifesto Surrealista emprestou seu nome do subtítulo de uma peça teatral de Guillaume Apollinaire: As mamas de Tirésias, drama surrealista em dois atos e um prólogo.

Os hommes de théâtre do grupo – Roger Vitrac, autor de Victor, ou as crianças no poder, e Antonin Artaud, futuro idealizador do Teatro da Crueldade – foram expulsos em 1926 por incompatibilidade com os objetivos do surrealismo. Neste mesmo ano em que Breton, Aragon, Eluard aderiram ao Partido Comunista, Artaud, Vitrac e Aron publicaram o primeiro Manifesto do Teatro Alfred Jarry, companhia fundada no ano seguinte e “parte da linhagem do primeiro surrealismo”. [2]

Artaud, que chegou a conduzir o bureau de pesquisas surrealistas além de atuar como autor e editor da revista La Révolution Surréaliste, respondeu à sua exclusão em Para a grande noite ou o blefe surrealista. No texto, acusa Breton e seus companheiros de sectarismo e recusa a guinada marxista do movimento por acreditar que “a verdadeira revolução é um assunto do indivíduo” [3] que depende de “uma metamorfose das condições interiores da alma”. [4]

O confronto persiste nos anos seguintes. Em 1928, os surrealistas intervém numa apresentação de uma peça de Strindberg pelo Teatro Alfred Jarry, acusando Artaud de espírito comercial e cumplicidade com o capitalismo. Em A seguir: pequena contribuição para o dossiê de alguns intelectuais de tendência revolucionária, publicado em 1929, os homens de teatro são acusados de serem arrivistas e instruídos a “arrastar-se de estrume em estrume, o cadáver que se autodenomina Artaud e a lesma que se chama Vitrac”. [5]

No Segundo Manifesto Surrealista, que reconfirma em 1930 os laços indissociáveis entre surrealismo e marxismo, Breton retoma de modo papal o debate sobre a encenação de O Sonho. Questiona “o valor moral do evento” [6] tendo em vista que Artaud realizou o espetáculo “depois de saber que que a Embaixada sueca pagaria sua encenação. Em outro lugar, o manifesto expressa a esperança na contribuição futura das conquista surrealistas às artes em geral, incluindo o teatro, mas Breton ridiculariza os poetas e pensadores teatrais excomungados (Soupault, Vitrac e Artaud) sob a alegação que “somente muito poucos entre os pretendentes atendem à elevada exigência do surrealismo”. [7]

Com exceção feita a Vitrac, há certo consenso crítico acerca da inexistência de autores teatrais “especificamente surrealistas” e da qualificação das apresentações dos textos de Breton, Desnos e Pérez como “encenação de uma poesia mais do que de teatro”. [8] A ausência de uma teatralidade específica do surrealismo caracteriza também os textos de Picasso – O desejo pego pelo rabo (1941) e As Quatro Meninas (1947) – concebidos sob o domínio da linguagem que é considerada por Breton como meio principal de expressão e conversão humanas.

Mesmo Artaud, que concebeu com o Teatro da Crueldade uma espécie de teatralidade pós-surrealista avessa ao primado do verbo, confessa em dezembro de 1946, depois de sua saída definitiva do manicômio de Rodez e pouco antes de sua lendária aparição em 13 de janeiro de 1947 no Thêatre Le Vieux-Colombier com Histoire Vécue d’Artaud-Momo “uma coisa que vai talvez surpreender muita gente. Eu sou o inimigo do teatro, sempre fui. Tanto quanto amo o teatro, eu sou, por este motivo, seu inimigo.” [9]

Segundo Artaud, o teatro como “um transbordamento passional / uma terrível transferência / de força / do corpo / para o corpo” encontra-se sob o ponto de vista de sua transmissão artística numa problemática situação de auto-contradição porque “esta transferência não pode ser repetida duas vezes.” [10]

Essas esparsas reminiscências relativas ao período inaugural do movimento surrealista marcado pela exclusão de seus criadores teatrais apontam para a natureza problemática de um hipotético discurso sobre um teatro surrealista respectivamente o surrealismo no teatro.

 

Indícios de surrealismo

Um século depois da emergência do furor surrealista, a abordagem de suas influências no taanteatro ou teatro coreográfico de tensões e no repertório da Taanteatro Companhia já não sofre das paixões estéticas e ideológicas absolutistas que caracterizavam o que Arthur Danto denominou a era dos manifestos.

A companhia fundada por Maura Baiocchi em 1991 em São Paulo desenvolveu seus conceitos e sua metodologia performativa [11] próprios e nunca reivindicou o estatuo de um teatro-coreográfico surrealista. Ainda assim, há indícios que justificam a suposição de uma ressonância da poética do surrealismo em seus métodos e em suas obras.


Entre 1998 e 1999, encenou o recital coreográfico Cantos de Maldoror baseado na obra homônima e precursora do surrealismo do poeta franco-uruguaio Comte de Lautréamont (vulgo Isidore Ducasse) e descrita por Breton como “verdadeira bíblia do inconsciente”, [12] na tradução de Claudio Willer e com adaptação e direção de Maura Baiocchi.

Muito mais marcante, porém, para a produção e evolução da Taanteatro, é o que o poeta e tradutor Claudio Willer chamou de um “catálogo colossal” [13] de encenações e projetos em torno da obra de Antonin Artaud. Em 1996, a companhia organizou a mostra internacional Artaud 100 Anos. A programação transdisciplinar dessa homenagem ao centenário do poeta francês, realizada no MASP, na Cinemateca, na Rádio USP e no Teatro Sérgio Cardoso, incluía encenações de teatro, dança e radiopeça, uma mostra de cinema, uma exposição fotográfica, leituras e lançamentos de livros. Inaugurada por um discurso de abertura de Willer, a mostra comissionou a encenação de três espetáculos inéditos: Para acabar com o juízo na encenação de José Celso Martinez Correa e o Teatro Oficina, A Conquista (do México) adaptada e dirigida pelo coreógrafo japonês Min Tanaka com elenco brasileiro e Artaud – onde deus corre com olhos de uma mulher cega concebido e dirigido Maura Baiocchi.

O espetáculo de Baiocchi, apresentado entre 1996 e 2004, não fazia nenhuma referências direta aos escritos de Artaud, mas visava invocar as energias artaudianas, seu aspecto bufão e xamã. [14] A origem onírica do espetáculo estava refletida em sua dramaturgia, seus personagens, na cenografia e no vestuário. À reelaboração das imagens dos sonhos da autora no contexto da encenação juntavam-se elementos da iconografia surrealista e figuras recorrentes do imaginário artaudiano. O personagem momo-xamã, protagonista de Artaud – onde deus corre …, proliferou ainda na série de solo performances Matéria 1ª a 3ª Forma apresentadas por Baiocchi entre 1998 a 1999, no Brasil e no Japão.

O cerne temático da encenação subsequente, Arará – histórias que os ossos cantam, [15] vinha também de um sonho de Baiocchi. Nessa sátira ácida sobre os vínculos entre poder e religião, a performer encarnava o líder da liga transgênica dos adoradores da mentira principal que psicografava mensagens de Artaud durante sua despedida definitiva da vida.

A partir de 2014, a Taanteatro Companhia retomou seu trabalho sobre Artaud numa sequencia contundente de obras, entre os quais 50 desenhos para assassinar a magia (2014), a trilogia cARTAUDgrafia (2015) e Artaud, le Mômo (2016). A trilogia com duração total de cinco horas e meia abordava a vida de Artaud em combinação com elementos de grande variedade de seus escritos como Uma Correspondência, O Teatro e seu Duplo, Viagem ao país dos Tarahumaras, Novas Revelações do Ser; Artaud, o Momo; Verdadeira História de Artaud-Momo; Supostos e Supliciações e Para dar um fim no juízo de deus.

Em 2016, por ocasião dos cento e vinte anos desde o nascimento do poeta, a companhia produziu o evento multidisciplinar Ocupação Artaud no Teatro Aliança Francesa em São Paulo. O solo Artaud, le Momo, apresentado na capela de Rodez, no Théâtre de Nesle em Paris e no Theaterhaus Mitte em Berlin, rendeu durante anos subsequentes excelentes críticas à performance de Baiocchi na Europa. Em 2020, motivada pela pandemia da Covid-19, a companhia idealizou e conduziu o projeto cinematográfico internacional Antonin Artaud’s The Theater and the Plague. [16]

Obviamente, a mera encenação e criação de espetáculos com base em obras de um precursor e de um dissidente do surrealismo ainda não define, por si só, uma poética e prática performativas de cunho surrealista. No entanto, encontramos na recepção das encenações da Taanteatro Companhia a percepção recorrente de seu “clima surreal”. [17]

Segundo alguns críticos e comentadores, a linguagem cênica do Taanteatro “causa um enfeitiçamento no observador e move mundos internos que estavam nas distâncias impensáveis que nos habitam”, uma linguagem que “nos faz sonhar acordados [18] e que “constrói uma atmosfera onírica, mas atualizada para um tempo em que se desaprendeu a sonhar. [19]

A atmosfera extra-cotidiana das obras da companhia é atribuível à uma confluência de fatores: de um lado, a escolha e origem de seus temas em combinação com um tratamento dramatúrgico e um modo de encenação que priorizam a criação de atmosferas tensivas no lugar da narração de histórias e de conflitos dramáticos. De outro lado, um processo de preparação da/os performers investido no corpo e suas faculdades energéticas e apenas eventualmente na interpretação de personagens. E, por fim, a busca por uma linguagem inédita decorrente não de um estilo teatro-coreográfico preexistente, mas das exigências do tema abordado e do momento sociohistórico da encenação.

 A já citada origem onírica da dramaturgia de certas obras de Baiocchi precede a fundação da companhia e está presente em espetáculos anteriores como Himalaia e seu personagem Feifei, emergido em experiências estáticas. Numa das obras inaugurais da Taanteatro Companhia, O livro dos mortos de Alice (1992), espetáculo de seis horas de duração e apresentado em quatro capítulos, a personagem icônica de Lewis Carrol é transferida para o subterrâneo do inconsciente, nomeadamente o limbo do bardo e os labirintos dos livros dos mortos tibetano e egípcio.

Entre os espetáculos ambientados na vizinhança do surrealismo, [20] cabe também mencionar Frida Kahlo: uma mulher de pedra dá luz à noite. Concebido, encenado e performado por Baiocchi, entre 1991 e 2007, em formato solo, duo e trio, este “tributo à extraordinária Frida Kahlo de Rivera” não interpretava a biografia da pintora mas se apresentava como poema corpóreo e como “uma aventura e um mergulho na força e fragilidade do universo feminino regido pelas palavras-energias chaves: imaginação, inconformismo, independência, perseverança, foco e intensidade.” [21] Uma das particularidades de Frida Kahlo: uma mulher de pedra dá luz à noite era seu caráter metamórfico e magnetizante derivado da transição do corpo de Baiocchi entre os reinos animal, vegetal e mineral e de sua fusão com a paisagem cênica e seus objetos, qualidades também presentes nas paisagens oníricas da pintura surrealista.

Conforme aludido, somam-se à essas origens e escolhas temáticas, localizadas em mundos do devaneio e sonho, os objetivos e métodos da preparação performativa . A dinâmica taanteatro visa a/o performer autônoma/o em estado de esquizopresença [22] e empenhada/o na criação de uma linguagem singular, produto do eterno originar [23] “que significa movimentar-se como uma força da natureza ou como um jogo de forças naturais que desconhece a autoridade de juízos e verdade e de beleza”. [24]

O veículo principal dessa tonificação da anatomia afetiva da/o performer é o MAE ou mandala de energia corporal. [25] Dois momentos dessa prática que integra e sintoniza as faculdades motoras, sensoriais, cognitivas e imaginativas da/o performer – a A-PosiçãoZero e o MarRitmo – contribuem em particular para a capacidade de transição entre dois domínios que correspondem ao que Breton chamou de vida verdadeira e mundo real (e vice versa).

Até certo ponto, o MarRitmo no taanteatro reflete à écriture automatique do surrealismo por privilegiar o desconhecido e por convidar a/o performer a “praticar a poesia, descer às fontes anárquicas da imaginação, tocar a matéria-prima da linguagem e entregar-se aos fluxos do movimento sem intervenção crítica da razão.” [26] No MarRitmo a/o performer experimenta a imersão na beleza convulsiva do inconsciente poético, invocada por Breton no segundo Manifesto do Surrealismo. Mas é preciso acrescentar que seu 'movimento automático’ passa por um tratamento seletivo e de refinamento no decorrer do processo de ensaio.

Por fim, é possível constatar a aproximação à uma dramaturgia de tendência surrealista num projeto de cinema recente da Taanteatro Companhia. Antonin Artaud’s The Theater and the Plague, realizado no período da eclosão da pandemia da Covid-19 no Brasil, é uma releitura cinematográfica do ensaio O Teatro e a Peste de Artaud à luz das experiência pandêmica de artistas colaboradora/es da França, Tunísia, Islândia, Moçambique, Alemanha, Rússia, Argentina, Tailândia, Suíça, Austrália e do Brasil. O fio condutor do filme é o texto de Artaud falado nos respectivos idiomas dos artistas, mas a dramaturgia visual da obra segue o espírito imprevisível do cadavre exquis, jogo gráfico e de escritura coletiva praticado pelos surrealistas.

 

O surrealismo de acordo com seus manifestos

Uma meditação sobre o possível significado do surrealismo um século após a primeira manifestação de seu “non-conformiso absoluto” [27] requer a recordação de suas proposições principais.

No Primeiro Manifesto, Breton apresenta o Surrealismo como oposição da vida verdadeira ao mundo real e como confronto entre dois tipos de personalidade correlativas, a “personalidade interior” e a “personalidade histórica”. [28] Movida por uma “inquietação humana incurável” [29] e definida pelo tempo presente, a vida verdadeira lança o furor de sua liberdade de espírito e sua paixão pelo absoluto contra o mundo real, combatendo a racionalidade domesticada preocupada com tradições passadas e deveres futuros com poesia, sonhos e loucura.

O surrealismo se revolta contra o empirismo mimético, a aversão à imaginação e o “ódio ao maravilhoso” [30] do realismo. Seu élan anti-histórico em direção ao maravilhoso e fantástico (e o belo que lhes é inerente) é acompanhado pela “futura dissolução desses aparentemente tão contraditórios estados de sonho e realidade em uma espécie de realidade absoluta, se é que se pode dizer: surrealidade”. [31] Impulsionado pelo fervor da “crença na realidade superior (…) na onipotência do sonho, no jogo de pensamento sem propósito”, [32] Breton define o Surrealismo como:

 

puro automatismo psíquico através do qual se tenta expressar oralmente ou por escrito ou de qualquer outra forma o processo real do pensamento. Pensamento-Ditado sem nenhum controle da razão, além de considerações estéticas ou éticas. [33]

 


Praticar poesia”, eis então “descer às fontes da imaginação poética”, [34] render-se ao “ritmo da corrente de pensamento” [35] e captar o monólogo da voz surrealista à maneira fluída, veloz e a-crítica de uma escrita automática. Aos poetas surrealistas cabe o papel de máquinas de registro [36] de imagens linguisticas não intencionais e tirânicas que agem “como estimulantes da mente” [37] e cujo valor resulta da beleza e da intensidade da diferença de tensão entre os conceitos que compõem essas imagens.

O Segundo Manifesto Surrealista especifica a captação da voz surrealista como processo de “mediação muito sombria” [38] entre o conteúdos intencionais e involuntários da consciência. Segundo Breton, essa mediação – apesar de não depreciar as dimensões racionais da consciência – procura visualizar seus aspectos involuntários com clareza. Em termos metodológicos, o surrealismo visa a

 

reprodução artificial desse momento ideal em que o ser humano, sob o feitiço de um movimento emotivo muito peculiar, é repentinamente dominado por algo “que é mais forte que ele”, lançando-o , contra todas as resistências, na imortalidade. [39]

 

De acordo com Breton, a instauração metódica deste momento de 'inspiração' serve ao surrealismo – em combinação com a escrita automática e protocolo de sonhos – como chave ao infinito. Consequentemente, os métodos surrealistas, ao direcionarem “sua atenção não mais para o real, mas para o imaginário”, não visam em primeiro lugar “produzir obras de arte, mas iluminar a dimensão não conhecida porém conhecível de nosso ser”. [40]

A partir do Primeiro e do Segundo Manifesto Surrealista, as posições do surrealismo podem ser resumidas da seguinte forma:

o surrealismo rejeita história, religião, pátria, tradição, família, moral burguesa, capitalismo e guerra, mas enaltece intensidade, ética, liberdade e amor. Ele objetiva superar a historicidade da vida social em direção a uma pureza original das faculdades psíquicas e do pensamento no intuito de obter entendimento absoluto através da vivência do infinito e eterno. Ao privilegiar o pensável em vez do pensado, o surrealismo visa “expor a facticidade das velhas antinomias” e dicotomias – realidade e irrealidade, razão e irracionalidade, conhecimento e desconhecimento – e fazer o juízo dessa oposições no sentido de superá-las e alcançar uma posição espiritual que possibilita que “não sejam mais percebidas como contraditórias”. [41] Como um todo, a revolta surrealista contra o mundo real e o realismo racionalista da personalidade histórica pretende “desencadear uma crise da consciência” [42] para chegar ao avesso do real, isto é, na realidade absoluta ou surrealidade.

 

Tensão e sonho

Em O que o surrealismo quer (1953), Breton reitera que seu objetivo nunca se resumiu à criação de obras de artes nem à iluminação do inconsciente enquanto domínio do desejo e origem dos mitos. Em primeiro lugar, o surrealismo quer “devolver a linguagem à sua vida verdadeira” [43] através da redescoberta de sua materia prima alquímica liberta de qualquer resíduo utilitário. Essa crença em um ideal de pureza original [44] da linguagem, anterior à sua instrumentalização designativa porém dotada do poder linguistico demiurgo de fazer brotar o verdadeiro nome das coisas está à base da ideia surrealista da “libertação da intuição poética […] como criadora de novas formas, capaz então de compreender em si todas and estruturas do mundo”. Para Breton, o surrealismo reconduz, para além da arte, ao caminho da gnose, ou seja, ao “conhecimento da realidade supra-sensível”. [45]

Se o sacrifício de 17 milhões vidas humanas durante a Primeira Guerra Mundial conseguiu despertar a revolta de uma juventude desiludida e enfastiada de valores patrióticos e contribuir para o surgimento de movimentos em busca de liberdade e elevação ética, os terrores genocidas ainda maiores da Segunda Guerra Mundial, aparentemente, não tiveram a força de dissuadir Breton de suas convicções fundamentais e de esfriar as expectavas superaquecidas investidas na ideia de uma salvação espiritual pelo surrealismo.

É certo que Breton nunca formulou argumentos demasiado convincentes para justificar sua credulidade na existência e primazia criadora de uma suposta pureza original (da linguagem, do espírito, do homem) capaz de proporcionar conhecimento absoluto. Tampouco explicou por que motivo os métodos inovadores porém modestos da escritura automática e do protocolo onírico teriam o poder de revolucionar não somente a personalidade histórica mas também de superar a história como tal a partir do mero registro da voz surrealista. Breton não ofereceu uma conciliação conceitual entre os princípios opostos do surrealismo e do materialismo histórico. E, apesar da insistente recusa do realismo e da exaltação dos estados puros, o surrealismo reproduziu por via escrita e visual imagens corporais de extraordinário hibridismo fenomenal e formal.

Precisamente, em função dessa impureza estética, o teórico do modernismo Clement Greenberg situou o surrealismo na contramão da história da modernidade. Segundo Greenberg, a modernidade é caraterizada pela intensificação de um processo autocrítico do Ocidente, motivada pelo objetivo de examinar e definir seus próprios fundamentos. Introduzido pela filosofia transcendental de Kant – “por ter sido o primeiro a criticar os próprios meios da crítica” [46] – essa autocrítica é definida pelo uso de todos característicos de uma disciplina para criticar essa mesma disciplina [47] e estendeu-se a todos os domínios da cultura, incluindo o da arte. De acordo com Greenberg, a autocrítica artística, próxima do método científico, levou à purificação das linguagens, ou seja, à uma autodefinição radical sede cada disciplina de arte sob a condição da eliminação de todos os meios e efeitos expressivos próprios de linguagens alheias.

Se a prática surrealista contradiz a teoria do surrealismo, a produção artística pós-moderna (ou pós-histórica) desmente a estética modernista ao relevar, em termos práticos e conceituais, a ausência de uma direção histórica da arte e por demostrar, segundo Danto, “que tudo poderia ser arte”, que “nenhuma arte é mais verdadeira que a outra, e que a arte não está atrelada à uma forma prescrita de ser: toda arte é igual e indiscriminadamente arte.” [48]


Apesar de eventuais inconsistências de auto-teorização e excessos juvenis de onipotência, o surrealismo exerceu influência profunda e profusa na vida cultural do século XX. Entre suas qualidades impuras transcendentes ao devaneio onírico, destacam-se seu ímpeto de invenção artística, sua abertura à alteridade (psíquica, sexual, étnica e cultural) sua verve revolucionária e transgressora, seu anti-patriotismo-fascismo-capitalismo-colonialismo, e seu espírito coletivo internacionalista capaz de agregar artistas [49] de grande diversidade, originalidade e ressonância dentro e fora da Europa.

A paixão surrealista pela produtividade do inconsciente e da imaginação se opus à reivindicação de exclusividade do positivismo no que diz respeito à ideia das formas legitimadas de pensamento e restituiu à vida cultual e às ciências sociais o valor existencial e político da invenção poética.

Com a viagem de Breton ao México em 1938, dois anos depois de Artaud, e o exílio de vários surrealistas [50] em Nova Iorque a partir de 1940, o surrealismo passa a se difundir de forma consistente na América Latina e nos Estados Unidos. O retorno desses artistas à Europa, depois Segunda Guerra Mundial, proporciona uma difusão do ativismo surrealista por uma série de países europeus, estimula uma multiplicidade de movimentos das artes visuais, entre os quais o grupo COBRA e a Companhia de Arte Bruta de Dubuffet.

Breton morre em 1966, mas seu empreendimento ressoa nos eventos do Maio de 1968: l'imagination au pouvoir. Desde então, o surrealismo contagia as mais diversas esferas da vida cultural e do mercado das artes. Se faz presente não somente na poesia e na pintura, mas se populariza também na música e arte audiovisual de Frank Zappa [51] e David Bowie, [52] no cinema de David Lynch, [53] na moda de renomados estilistas e – ironia do destino – no teatro.

Em 1971, cinco anos após a morte da eminência parda do surrealismo, o poeta Louis Aragon publica Uma Carta aberta a André Breton sobre 'Deafman Glance' de Robert Wilson. [54] Correligionário de Breton desde o advento do movimento e corresponsável pela excomunicação de Vitrac e Artaud, Aragon transmite ao falecido através dessa carta a boa nova de um milagre “que estávamos esperando”. [55] Trata-se do “mundo de uma criança surda” encenado como síntese da “vida acordada e da vida com olhos fechados”. [56] Essa ópera surda de Wilson, diz Aragon, opera como uma máquina de liberdade. “Não é surrealismo de forma alguma, mas é o que nos, que geramos o surrealismo, sonhamos que ele poderia se tornar depois de nós, além de nós.” [57] Breton diria, imagina Aragon, que Wilson virá surrealista através de um teatro que celebra o “casamento do gesto e do silêncio, do movimento e do inefável.” [58]

Cinquenta anos depois do maravilhamento de Aragon face ao Olhar do Surdo, a escritora Kristen Bateman se indaga acerca do retorno da vibrações oníricas do surrealismo, desta vez, no mundo fashion:

 

Mas por que, em 2021, o movimento está voltando? Considerando que ainda estamos em meio a uma pandemia global na esteira de muitos distúrbios políticos, a próxima geração do surrealismo na moda faz muito sentido. Afinal, o motivo dos surrealistas originais era tornar o familiar estranho e mostrar um mundo frágil cheio de tensão em um novo estado de sonho. [59]

 

Haveria uma resposta mais apropriada para o teatro coreográfico de tensões de uma companhia que nos faz sonhar acordados?

 

NOTAS

1. READ, Peter. Apollinaire et les mamelles de Tirésias em Surréalisme et surréalistes. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2000. P. 139 -149 (tradução nossa).

2. GROSSMAN, Évelyne. Antonin Artaud. Un insurgé du corps. Paris: Découvertes Gallimard, 2006. P. 31 (tradução nossa).

3. ARTAUD, Antonin.Oeuvres. Paris: Quarto Gallimard, 2004. P. 245 (tradução nossa).

4. Ibid. P. 236

5. A suivre.Petite contribution au dossier de certains intellectuels à tendance révolutionnaire em Variété. Le Surréalisme en 1929. Paris, 1929.Disponível em: https://manifestedusurrealisme.files.wordpress.com/2014/12/manifetedusurrealisme.pdf . Acesso em: 27/10/2021.

6. BRETON, André. Die Manifeste des Surrealismus. Hamburg: Rowohlt, 2004. P. 60 (tradução nossa).

7. Ibid. P. 63. Vale observar uma certa reconciliação entre Breton e Artaud após a saída do autor das Cartas de Rodez do manicômio. Breton faz o discurso de abertura a Homenagem a Antonin Artaud em 7 de Junho de 1946 no Teatro Sarah Bernhardt em Paris, onde declara que foi Artaud que avançou de forma “mais ousada e mais longe” no caminho de “mudar o mundo, de mudar a vida, e de renovar a mente humana em todas as partes” (KAPRALIK, Elena. Antonin Artaud. Leben und Werk des Schauspielers, Dichters und Regisseurs. München: Matthes & Seitz, 1977. Em 1959, e conversa com Jean Laurent, Breton situa o Van Gogh de Artaud ao lado de Aurélia de Gerard de Nerval e os poemas tardios de Friedrich Hölderlin.

8. CHAVOT, Pierre. l’ABCdaire du Surréalisme. Paris: Flammarion, 2001. P. 110 (tradução nossa).

9. ARTAUD, Antonin. 2004. P. 1177 (tradução nossa)

10. Ibid.

11. BAIOCCHI,M. e PANNEK, W. Taanteatro: forças & formas. São Paulo: Transcultura, 2018.

12. BRETON, André. La Révolution Surréaliste. N°12, 15 Décembre 1929. Disponível em: http://melusine-surrealisme.fr/site/Revolution_surrealiste/Revol_surr_12.htm . Acesso em: 27/10/2021.

13. WILLER, Claudio. Artaud, A. & Willer, C. Escritos de Antonin Artaud. Posfácio para a nova edição. Porto Alegre: LP&M, 2019. P. 208, 209.

14. ROCHA, Daniela. Maura Baiocchi revela Artaud Momo. Folha de S. Paulo, 23/04/1997. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/4/23/ilustrada/44.html. & ROCHA, Daniela. Espetáculo traz lado xamã do ator. Folha de S.Paulo, 01/09/1996. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/9/01/mais!/8.html. Acessos em 27/10/2021.

15. DE SÁ, Nelson. Baiocchi satiriza a mexicanização. Folha de S. Paulo, 24/10/1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq241025.htm. Acesso em: 27/10/2021.

16. Website do projeto Antonin Artaud’s The Theater and the Plague: https://oteatroeapeste.wixsite.com/taanteatro

17. CALSAVARA, Katia. Taanteatro celebra 20 anos com atmosfera surrealista. Folha de S. Paulo. 06/07/2012. Disponível em: https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/07/1115696-taanteatro-celebra-20-anos-com-atmosfera-surrealista.shtml. Acesso em: 27/10/2021.

18. GESISKY, Jaime. Crítica de Subtração de Ophelia no blog da Mostra de Dança XYZ em Brasília em 2006. https://www.dancaxyz2006.com.br/

19. GORTE-DALMORO, Daniel. Danças [Im]Puras. Comportamento Geral. 08/07/2012. Disponível em: https://comportamentogeral.blogspot.com/search?q=baiocchi. 08/07/2012.

20. Frida Kahlo recusou a rubrica surrealista para definir sua pintura. Do ponto de vista da artista mexicana, simplesmente retratava sua própria vida. Ainda assim aceitou a inclusão de seus quadros em exposições surrealistas organizadas por Breton em Nova Iorque e Paris.

21. Citado a partir da página web de Frida Kahlo: uma mulher de pedra dá luz à noite (versão 1991) no site da Taanteatro Companhia. Disponível em: http://www.taanteatro.com/obras/frida-kahlo-uma-mulher-de-pedr.html . Acesso em: 2710/2021.

22. Com o conceito da esquizopresença, o teatro coreográfico de tensões designa um tipo de presença performativa não representativa-narrativa” de inspiração nietzscheana-deleuziana. Esquizopresença pressupõe conexão com o plano ontológico do acontecimento performativo: seu fluxo de tensões (ou devir tensivo). É em função dessa conexão, que o performer se torna capaz de superar a representação e de criar o novo na figura de “signos sustentados por uma tensão vital-criativa entre forças e formas.” Para maiores informações, consulte: Pannek, W. e Baiocchi, M. (Org.). Taanteatro: [Des]construção e Esquizopresença. São Paulo,Transcultura, 2016.

23. Sobre o eterno originar, consulte: BAIOCCHI, M. e PANNEK, W.Taanteatro: forças & formas. São Paulo, Transcultura, 2018.

24. Ibid. P. 21

25. BAIOCCHI, M. e PANNEK, W. Taanteatro: MAE – mandala de energia corporal. São Paulo, Transcultura, 2013.

26. Ibid. P. 114

27. BRETON, André. 2004. P. 43

28. Ibid. P. 83

29. Ibid. P.20

30. Ibid. P.18

31. Ibid.

32. Ibid. P.26, 27

33. Ibid. P.26

34. Ibid. P.21

35. Ibid. P.25

36. Ibid. P.27

37. Ibid. P. 34

38. Ibid. P.79

39. Ibid. P. 81

40. Ibid.

41. Ibid. P. 55

42. Ibid.

43. P. 132

44. La Révolution Surréaliste N°12, 15 Décembre1929. P.2. Disponível em: http://melusine-surrealisme.fr/site/Revolution_surrealiste/Revol_surr_12.htm . Acesso em: 27/10/2021.

45. BRETON, André, 2004, P. 132

46. FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecilia. Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1997. P. 101

47. Ibid. P.101

48. DANTO, Arthur. Das Fortleben der Kunst. München: Finkelverlag. 2000. P. 60 (tradução nossa).

49. Entre os quais, os poetas: Louis Aragon, Antonin Artaud, André Breton, René Crevel, Robert Desnos, Paul Éluard , Michel Leiris , Benjamin Péret, Philippe Soupault, e a/os artistas visuais: Man Ray, Salvador Dalí, Max Ernst, René Magritte, André Masson, Joan Miró, Paul Delvaux, Remedios Varo, Leonor Fini, Dorothea Tanning, Meret Oppenheim, Leonora Carrington, entre outra/os.

50. Entre os quais Char, Duchamp, Ernst, Masson, Pérez, Tanguy, Tzara e Breton.

51. FREMER, Michael. Frank Zappa's Surrealistic Documentary and Soundtrack 200 Motels Gets Multi-Format 50th Anniversary Treatment. Analogplanet. 24/09/2021. Disponível em: https://www.analogplanet.com/content/frank-zappas-surrealistic-documentary-and-soundtrack-200-motels-gets-multi-format-50th. Acesso em: 27/10/2021.

52. MORLEY, Paul. Dalí, Duchamp and Dr Caligari: the surrealism that inspired David Bowie. The Guardian. 22/07/2016. Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2016/jul/22/david-bowie-surrealist-inspired-dali-duchamp-dr-caligari. Acesso em: 27/10/2021.

53. JAMES, Ezra L..The Surrealist World of David Lynch. Storius. 09/01/2020. Disponível em: https://storiusmag.com/the-surrealist-world-of-david-lynch-d200c86657f1. Acesso em: 27/10/2021.

54. ARAGON, Louis. An Open Letter to Andre Breton on Robert Wilson’s ‘Deafman Glance. Performing Arts Journal, vol. 1, no. 1, Performing Arts Journal, Inc., 1976, P. 3–7, https://doi.org/10.2307/3245181 .

55. Ibid. P. 4

56. Página sobre Deafman Glance no website de Robert Wilson: https://robertwilson.com/deafman-glance

57. ARAGON, Louis. 1976. P.4

58. Ibid. P. 5

59. BATEMAN, Kristen. Surrealism Is Staging a Fashion Comeback. Harpers Bazaar.13/07/2021. Disponível em: https://www.harpersbazaar.com/fashion/trends/a36877016/surrealism-fashion-comeback/. Acesso em: 27/10/2021.

 

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WOLFGANG PANNEK. Diretor, performer, autor, tradutor e produtor. Integrante (1992) e codiretor (1994) da Taanteatro Companhia. M.A. (filosofia, letras e psicologia) pela FernUniversität Hagen (Alemanha). Diretor de produção da Mostra 95 Butoh e Teatro Pesquisa, idealizador e diretor de produção de Artaud 100 Anos, coordenador do Intercâmbio Cultural Matola-Brasil (2005) e organizador da Hans Thies Lehmann Brasil Tour 2010. Idealizador e produtor da Ocupação Artaud (2016) e da Ocupação Deleuze (2017) no Teatro Aliança Francesa de São Paulo. Atuou como coreógrafo e ator em Os Sertões, sob direção de José Celso Martinez Corrêa. Criou e dirigiu a trilogia cARTAUDgrafia (2015) sobre a vida e obra de Antonin Artaud e o espetáculo 1001 PLATÔS (2017) baseado na obra Mil Platôs de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Idealizou e produziert o filme coletivo The Theatre and the Plague (2020). Na televisão participou como ator do seriado “fdp” (HBO Brasil), da telenovela “Além do horizonte” (TV Globo) e da série “El Presidente: Jogo da Corrupção” (Amazon Prime).




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[A partir de janeiro de 2022]

 

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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 186 | novembro de 2021

Curadoria: Floriano Martins (Brasil, 1957)

Artista convidado: Marcos Tedeschi (Brasil, 1982)

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