quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

CÉLIA MUSILLI | Artaud: a arte, a solidão e seu sapato

 


O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função,

mas de vontade

e árvore de vontade que anda,

voltará.

Existiu, e voltará.

Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo,

ingestão, assimilação,

incubação, excreção,

o que existia criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam

ao domínio da vontade decisiva,

a vontade que em cada instante decide de si;

porque assim era a árvore humana que anda,

uma vontade que decide a cada instante de si,

sem funções ocultas, subjacentes, que o inconsciente rege.

 

O início do texto “O Homem-Árvore” de Antonin Artaud é um dos tantos em que o pensador francês proclama seu niilismo e sua desesperança. Ele fala da ancestralidade do homem, muito antes que fosse consumido por sua própria humanidade. É um pensamento avesso à lógica, mas tão profundo que nos faz pensar o que nunca pensamos. A exemplo de tantos outros, o sentido crítico atinge memórias insondáveis, um vômito da psiquê que dói e pragueja, trazendo a estranha beleza do impalpável que aponta a aceitação do absurdo pelo homem que deixou de ser árvore.

Poeta, dramaturgo e um dos pensadores mais importantes do século 20, Artaud nasceu em 4 de setembro de 1896 e, ao longo da vida, por problemas de saúde, acabou viciado em opiáceos e foi considerado louco. Morreu em 4 de março de 1948, aos 51 anos, no hospício de Ivry (França), agarrado a um sapato. A cena de sua morte é a representação da solidão de um crítico da cultura de seu tempo e dos padrões da sociedade ocidental. Ele não poupava a ciência nem os métodos da psiquiatria que teve que encarar nos diversos períodos de internamento.


É famosa a passagem de Artaud pela Universidade de Sorbonne, nos anos 1930, quando foi convidado a apresentar suas ideias e as “incorporou” através de “O Teatro e a Peste”. É célebre o texto da escritora Anaïs Nin descrevendo a cena em que o dramaturgo surge como que possuído pela doença:

 

Seu rosto estava convulsionado de angústia e seus cabelos, empapados de suor. Seus olhos dilatavam-se, seus músculos enrijeciam-se, seus dedos lutavam para conservar a agilidade. Fazia-nos sentir sua garganta seca e queimando, o sofrimento, a febre, o fogo de suas entranhas. Estava na tortura. Uivava. Delirava. Representava sua própria morte, sua crucificação.

 

As pessoas foram saindo uma a uma, rindo, zombando da cena, não sobrou quase ninguém a não ser Anaïs Nin, o Dr. Allendy, que convidava intelectuais e artistas para sua exposição de Novas Ideias na universidade, sua mulher e dois casais.

A incompreensão sempre atravessou a vida de Artaud e também sua morte. Ainda hoje, poucos atingem o que ele propôs e quis comunicar porque é preciso uma visceralidade humana e animal, humana e vegetal, humana e mineral para atingir o espectro de um ser em convulsão que fazia da angústia existencial a sua arte!

Em 2015, o grupo Taanteatro Companhia concebeu uma trilogia, dirigida por Wolfgang Pannek e Maura Baiocchi, tendo como ponto de partida o trabalho artístico de Artaud. O título era cARTAUDgrafia, uma combinação da palavra cartografia com o nome de Artaud, e a proposta era fazer um mapeamento da sua obra através de coreografias. Composta de três espetáculos – cARTAUDgrafia 1: Uma Correspondência; cARTAUDgrafia 2: Viagem ao México e cARTAUDgrafia 3: Retorno do Momo –, o grupo levou à cena, numa composição difícil, a ancestralidade, a originalidade, a força da pré-linguagem que permeia a obra do pensador. [1]


Um desafio encarado por um elenco jovem, dirigido por Pannek, que contava com a experiência magistral de Maura Baiocchi, uma chama disposta a iluminar e arder na construção artística que exige pele, pelos, coração, nervos, músculos e espírito. Via-se ali a representação do teatro de Artaud através da dança, a herança da rebeldia criativa que transborda os limites da arte convencional para girar à beira de um precipício onde os atores-bailarinos testam seus limites, transmitindo à plateia uma corrente de eletricidade e beleza na posse da transfiguração de um momento criativo único que foi a vida e a arte de Artaud.

Esse foi um dos vários trabalhos sobre a obra do pensador que fazem parte da trajetória do grupo; houve outros antes e também depois. Ainda se veria Maura Baiocchi em Artaud – Le Momo, em 2016, compreendido como um “monólogo teatrocoreográfico multimídia”. A dramaturgia mostra “a luta do poeta, ator e dramaturgo francês contra a institucionalização das formas de vida e sua tentativa de conquistar o corpo soberano”.


Ali, uma atriz e bailarina com a consciência e a posse de seu corpo, emoção, arte e espírito consagra à obra de Artaud cada movimento e cada respiração. Da ponta dos pés às pontas dos cabelos ela é Artaud ou as ideias de Artaud, transfigurada talvez na concepção do homem-árvore ou da humanidade-árvore que o dramaturgo e poeta propunha como um estágio inicial das criaturas antes do batismo da civilização, da institucionalização dos desejos e comandos, do espírito mercantil, da corrupção que nos rodeia.

Artaud é atual, é o olho que nos mostra a mediocridade das relações “limpinhas” do homem-árvore convertido no homem que ele propunha desconstruir ainda que fosse com os vômitos da psiquê para “levar as pessoas à força a um estado poético”, como escreveu Anaïs Nin ao defender seu amigo dos golpes da Sorbonne. Artaud morreu abraçado ao sapato da solidão e da incompreensão. A cena talvez também mostre que na mente profunda dos “loucos” brilha a poética nunca atingida pelos “normais”.

 

NOTA

1. Nota editorial: as documentações audiovisuais de cARTAUDgrafia estão disponíveis no canal Vimeo da Taanteatro Companhia: https://vimeo.com/user9504695.

 


CÉLIA MUSILLI | Jornalista, cronista e poeta. É autora dos livros de poesia Sensível Desafio (2006) e Todas as Mulheres em Mim (2010). Participou de coletâneas de crônicas e poemas, tem textos publicados em diversas revistas literárias. É editora de cultura do jornal Folha de Londrina e mestre em Literatura Brasileira pela Unicamp.
 

 

 


CANDELARIA SILVESTRO | Artista argentina nacida en Córdoba, en 1977. Expone desde el año 1998 en salas de arte, galerías y Museos públicos y privados. Su obra forma parte de colecciones públicas y privadas, nacionales e internacionales de Argentina, Brasil, Holanda, Estados Unidos. Desde el año 2000 colabora con la Compañía Taanteatro de Sao Paulo en la realización de escenografía, vestuario, video animación, objeto escénico y performer. Sus trabajos más recientes son una participación en el film internacional La Peste de Antonin Artaud junto a la Compañía Taanteatro, en 2020; además de una participación especial en el Festival de Ecoperformance 2021 (Compañía Taanteatro); una exposición de pinturas de gran formato inspirada en el paisaje de la Mar Chiquita “Bandada de Flamencos”; la performance Ophelia de Ansenuza, concepción, dirección y coreografía de Maura Baiocchi (Compañía Taanteatro); y participación en el filme Apokalypsis, dirección de Maura Baiocchi y Wolfgang Pannek – todo esto en 2021.
 

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 03

Número 202 | fevereiro de 2022

Artista convidada: Candelaria Silvestro (Argentina, 1977)

Traduções de Wolfgang Pannek e Vadim Nikitin

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

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