Hoje
ainda que morto, se opõe à profanação,
Tu,
que antigamente tiveste as avalanches de rosas,
Tropas
de guerreiros com bandeiras ao vento
FEDERICO GARCÍA LORCA
Nascido em 02 de dezembro de 1940, numa São Paulo
ainda provinciana que já mostrava seus primeiros sintomas de modernização após
a semana de 22 e a criação da primeira universidade do país, Claudio Willer é
filho da união entre o seu pai judeu austríaco, Ricardo Willer, e sua mãe
católica alemã, Grete Willer, que vieram ao Brasil para fugir tanto do fascismo
quanto da guerra. Estimulado desde cedo por sua família os interesses culturais
e literários de Claudio remontam ainda à sua adolescência quando aos 15 anos
ganhou de sua mãe, que era preceptora dos filhos do maestro Gino Marinuzzi,
regente no La Scala, a assinatura do Pró-Arte onde tinha acesso a um ano todo
de concertos.
A inclinação para a pesquisa e a docência já se
manifestaram cedo quando Claudio, como primeira atividade pública, coordenou um
grupo de apreciadores de música na ACM, Associação Cristã de Moços.
Não demorou muito para que, após conhecer os jovens
poetas Antonio Fernando de Franchesci e Roberto Piva, junto a outros poetas e
amigos, começassem juntos a se reunir na sede da ACM e em outros lugares como
ruas, restaurantes, praças e galerias, para fazer leituras e palestras sobre
poesia e poetas.
Estava aí se lançando uma tendência que ainda viria a
se transformar numa espécie de revolução ou contracultura poética nas décadas
posteriores, aliada às descobertas de uma nova juventude enquanto novos atores
sociais, que lançaria mão de novos modos de vida e estimularia a criação
literária a se perfazer para além dos gestos, formas e rituais desgastados
propalados nas academias.
Eram os primórdios de uma agitação que fervilhava e
que tinha em Claudio Willer uma de suas figuras de proa.
II.
Deparei-me com o pensamento e as contribuições do
poeta já numa adolescência tardia, quando tinha por volta dos dezoito ou
dezenove anos. A rebeldia de minha adolescência, o grau de perdição e desorientação
em que me encontrava então (acresça a isso minhas tendências suicidas de quem
no mundo não encontrava nada que lhe proporcionasse o conforto de uma
referência) e, sobretudo, um feroz tesão de experiência alquímica da vida me
levou a cair no colo dos autores da Beat Generation.
Minha primeira suculenta mordida nesta anti-tradição
libertária promovedora da contracultura norte-americana se deu ao descobrir que
os grandes avatares do rock’n’roll da década de 60 e diante deviam a esses
caras. Por conta disso tive que ir atrás pra beber da água saindo da fonte.
Foi aí que o nome do Willer surgiu na minha vida.
Enquanto tradutor de Allen Ginsberg e profundo conhecedor do tema - com estudos
copiosos sobre os interesses e a mística filosófica da Beat junto a uma
gramática do anedotário e do profuso estilo de seus poetas e autores - já fui
fisgado não só pelo texto e o estilo de suas traduções, mas fiquei mesmo
apaixonado pela veemência e grau de conhecimento (contendo tanta erudição
quanto certa malícia existencial, condimento essencial e encantatório)
exibidos minuciosamente nos prefácios e ensaios do Willer sobre a Geração Beat.
A primeira tradução de Ginsberg do Claudio, uma edição bem surrada de Uivo,
Kaddish e outros poemas saída em 1984 pela L&PM Editores foi me
apresentada enquanto cruzava o país saindo de João Pessoa-PB até Porto Alegre
em fins de 2004 e começo de 2005, por um amigo e poeta que estava na mesma
caravana que ia participar de uma das edições do extinto Fórum Social Mundial.
Nada mais cosmicamente e idealmente alinhado do que conhecer o poema fundador
dessa geração em pleno deslocamento aventuresco, em plena estrada, enquanto aos
19 anos exalava essa energia descomunal e fome poética de viver as coisas. E o
que seriam quatro dias de viagem enfurnado num ônibus lotado de militantes
políticos de esquerda, artistas, boêmios e gente maluca tendo-se, além das
próprias vivências inesquecíveis, a oportunidade de ler e conhecer um dos
marcos fundadores de uma literatura e uma conduta libertária tão transformadora
como aquela propagada por Allen Ginsberg e tão bem apresentada e estudada por
Claudio Willer?
Para mim soava não só como alguém aficionado que
conhece algo bem mais a fundo, mas alguém que realmente viveu aquilo que
relatava e, por conta disso, estava à altura de nos falar a respeito. Era como
se Willer estivesse falando de Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William S.
Burroughs, Gregory Corso e seu grupo de amigos como se fossem seus brothers
de curtição, parceiros íntimos de crimes estéticos e chapações que
misturavam em suas vidas uma voraz estética da existência a uma ética da
marginalidade. E de certa forma era isso mesmo! Afinal, Claudio era amigo de
juventude do Roberto Piva, do Roberto Bicelli, Décio Bar e tantos outros poetas
que viajavam no mesmo barato, cada qual a seu modo!
Logo depois de meu retorno da Europa em 2008, houve
uma edição da Fliporto (evento literário importante que acontece em Porto de
Galinhas/PE). Havia um grupo de poetas paraibanos que iria participar de uma
das apresentações, uma roda de leitura pública, e um dos convidados originais
não poderia ir. Um dos organizadores do grupo convidou-me então, perguntando se
eu toparia participar e que haveria cachê, viagem paga e etc., e que na ocasião
tudo o que eu teria que fazer era ler apenas três poemas no palco junto aos
outros poetas. A viagem se daria num esquema bate-e-volta, portanto, sem gastos
com estadia.
Como eu sou mesmo maluco que adora viajar e
experienciar a estrada - tal como um beatnik mesmo -, nem pensei duas
vezes e topei. Perguntei se na ocasião poderia levar a minha namorada da época,
eles disseram que havia sim mais uma vaga na van e que poderia ser para ela. No dia do evento,
pela manhã, nos encontramos num lugar marcado e partimos. Ao chegar lá e olhar
a programação do evento vejo que o Claudio Willer lá estaria para ministrar um
minicurso sobre a Geração Beat. Quase que não acreditava. Porém, o curso era no
dia seguinte e em nossa programação não cabia a permanência. Isso me deixou um
tanto chateado, mas tudo bem. Naquela mesma manhã o Claudio apareceu e compôs
uma das mesas de abertura na qual comentou sobre temas ligados às vanguardas
literárias. Fiquei excitado com a possibilidade de conhecê-lo e tentei ir
cumprimentá-lo, só que (nervoso como me encontrava e jovem como era) não
consegui articular mais do que 4 ou 5 palavras de aprovação e excitação. O
Claudio abriu aquele sorrisão sem dentes de condescendência feliz, passiva e
saiu com alguém que iria orientá-lo sobre algo do evento. Não consegui sequer
me apresentar a ele, mas não tinha importância: eu o tinha finalmente visto
pessoalmente.
Algum tempo depois nós nos adicionamos no Facebook e
sempre que postava algum poema ou texto literário interessante tentava fazê-lo
ciente marcando-o nos comentários ou enviando-lhe a publicação. Willer, ciente
dos esforços de um jovem autor com audácia de desbravação, começou a gostar das
minhas coisas e escrever-me elogios, indicar-me leituras e caminhos com atenção
cuidadosa. Um exemplo de generosidade sem fim. Chegou a comentar certa vez que
o Roberto Piva, grande poeta e seu estimadíssimo amigo, teria adorado me
conhecer (em 2008, quando vim a São Paulo pela primeira vez, quase conheci o
Piva - por intermédio do poeta Ademir Assunção -, mas ele estava fora da cidade
durante tal período) e falava sobre a potência e qualidade literária dos meus
poemas. A lisonja me tomava por completo, devo confessar.
Mas, a vida é uma loucura em seu desconcerto de
intensidades, inconstâncias, (des)encontros. Quis ela que me mudasse pra São
Paulo em 2018 e, no meio das minhas peregrinações poéticas e graças ao meu
querido amigo David Neves, acabei conhecendo e tornando-me amigo do
poeta-editor Gabriel Rath Kolyniak, da Editora Córrego, e entrando na equipe
que cuidava e catalogava a Biblioteca Roberto Piva. (O acervo - que se juntou
ao do filósofo e professor Raul Fiker - atualmente encontra-se aos cuidados da
Unicamp, em Campinas.) Um destes acontecimentos maravilhosos da vida que me
abriu caminhos fecundos e extraordinários. Foi através do Gabriel que tive
contato mais próximo a Willler e fui me aprochegando com sutileza e cuidado na
convivência - digital e presencial - com o mestre.
Aos poucos fui entendendo cada vez mais o homem
Claudio Willer, de carne-e-osso, a quem, depois de certo convívio e intimidade,
chamava simplesmente de Claudio como se chama um amigo de verdade, daquele das
antigas. Para todo os outros era Willer, Sr. Willer ou Professor, a depender da
ligação e da devoção. Nossas conversas eram intensas e flanávamos entre
diversos temas, “sacações”, autores, coisas da vida, política, arte,
utopias e assim muitas figurinhas eram trocadas.
O nosso mútuo interesse pelos rebeldes e malditos,
pelos místicos e revolucionários, semeava e essa comunicação cada vez mais
livre e cimentava uma amizade intergeracional que para mim era fundamental (e
sei que para ele também, que adorava conhecer gente jovem e ligada em poesia).
III.
Contudo, ‘les affaires sont les affaires’ e as
vidas seguem em paralelas, cada um seguindo e sobrevivendo como pode. Se eu não
estivesse tanto ocupado em como ganhar a vida (financeiramente) e estivesse
mais próximo geograficamente no corpo da cidade - Willer morava no centro e eu
não conseguia bancar-me por lá - teria ido visitá-lo em seu apartamento mais
vezes para um café, conversar sobre livros ou falar mal do Bolsonaro (e esse
era um dos nossos esportes favoritos).
“Vejamos os noticiários para ver se o Bolsonaro já
caiu”, costumava comentar antes de ligar a TV ou quando terminava uma
chamada de vídeo no computador.
No meio da dura pandemia - atravessando diversas
dificuldades financeiras - recebi o convite da jornalista Renata D’Elia
(autora, junto com a Camila Hungria, do livro-reportagem Os Dentes da
Memória, de 2011, sobre a geração de poetas em que se destacam Willer,
Piva, Bicelli e De Franchesci) para tornar-me secretário do Claudio em sua
plataforma de cursos, o Cursos Willer.
De agosto de 2020 até o final de 2022 chegamos a fazer
uma oficina literária e oito cursos temáticos dentro do escopo de interesse do
mestre. Foi a forma que um grupo de amigos elaborou e colaborou para o poeta
continuar a ter uma renda mais frequente e não passar perrengues como passou
anos antes. O acerto também acabou me envolvendo: uma parcela do total das
matrículas me ajudava a não ficar com a barriga contra a parede. Achei aquilo
ótimo e veio num dos momentos mais complexos de nossas vidas.
Mesmo quando ele ia muito longe em rizomas de outras
curiosidades e desdobramentos espontâneos o Claudio conseguia retomar o fio da
meada que abandonara com uma clareza e capacidade revigorante de rememorar que
nos deixava boquiabertos. Era realmente algo impressionante. Eu mesmo não seria
capaz de fazer aquilo. Não como ele.
Ao final de cada aula, invariavelmente, ele perguntava
no grupo de Whatsapp dos Cursos: “Que tal?” E eu deixava as minhas
impressões a respeito, ao que ele retrucava: “Bom!” Ou então (para nós –
do grupo de amigos mais íntimos - já uma marca willeriana): “INHU!”
O que significava esse ‘INHU’ do Claudio
Willer? De onde tinha vindo essa expressão? Qual era a sua origem etimológica e
sua história?
Só ele, penso, sabia. Acabou que ele se foi e não nos
deixou o segredo desta pedra filosofal da expressão sintética-pré-adâmica. Para
mim, subjetivamente, pode significar um misto de coisas, talvez um tipo muito
específico, cirúrgico & subjetivo, de YEAH! Ou mesmo nada, nada
demais, ao menos. Uma exclamação sem fundo semântico, liberta da carga de
significação e da história das palavras, que poderia ser utilizada para
expressar alegria genuína, desprendida, provavelmente.
Sim, Willer poderia até ser repetitivo em alguns
momentos, desdobrar-se em autores de sua predileção desde os tempos juvenis em
que se embriagava com amigos & liam em sua apartamento Garcia Lorca, Arthur
Rimbaud, Conde de Lautreámont (que ele também traduziu e foi um desses que
mudou minha vida! O prefácio-ensaio “Astro Negro” é um dos meus
prediletos of all times, mostra o Claudio Willer totalmente em seu
elemento), William Blake, Robert Desnos, Paul Éluard, Octávio Paz, André Breton,
Alfred Jarry, Antonin Artaud, Walt Whitman, Henry Miller, Anaïs Nïn, Joyce
Mansour, Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Gregory Corso, Jorge Luís Borges,
Herberto Helder, Fernando Pessoa etc, tal qual uma bela playlist sentimental no
campo das idéias. Mas isso não expressava tanto uma obsessão quanto era a marca
identitária de uma fidelidade, de uma ética compromissada com a rebelião, o
desbunde e a anarquia mística, anti-autoritária e capaz de abarcar a
multiversidade das diferenças.
Ainda assim era apaixonante vê-lo falar sobre essa
literatura Beat-surreal quase como uma redescoberta ou como se a tivesse
acabado de inventar ali diante de nossos olhos e ouvidos. Para mim era sempre
uma aventura iniciar um papo com ele e deixar com que ele conduzisse a conversação
nos precipitando numa floresta simbólica com uma tocha nas mãos, falando de
seus amigos, seu passado, as leituras que faziam. “Eu o seguia, era preciso.”
IV.
Com as internações e consequentes complicações em seu
quadro de saúde nossos encontros foram rareando.
Durante os nossos cursos eu ia em sua casa, que ficava
num apartamento na Avenida Barão de Limeira nos Campos Elísios, auxiliá-lo a
fazer a conexão adequadamente (essa maldita dificuldade tecnológica que ele
sempre sentia, o que de certa forma acabou sendo uma coisa boa porque nos
aproximou bastante). Outra feita, bem antes disso, mas ainda relacionado aos
cursos, juntamos um grupo de amigos e admiradores poetas e ajudamos a organizar
sua biblioteca – presentes comigo na ocasião: Diogo Cardoso, Élvio Fernandes
Gonçalves Junior, Pedro Spigolon e, às vezes, Gabriel Rath Kolyniak - de modo a
facilitá-lo em suas buscas durante os cursos, participações em bancas e suas
leituras cotidianas. Quando a coisa piorou - antes do fim do curso Mais sobre
Poetas Malditos que, infelizmente, seria o nosso último - Willer teve que
ser internado às pressas e nossas atividades ficaram indeterminadamente
suspensas.
Graças a um grande grupo de amigos, admiradores e
familiares próximos Claudio esteve o máximo possível bem assistido, por vezes
até conseguindo se comunicar conosco no grupo de WhatsApp da Gangue Willeriana,
que era como éramos chamados pelo próprio.
(Vale o parêntese: Aliás, grupo esse de autores e
poetas reunidos em torno do Willer que já tem uma coleção publicada em
plaquettes pela Editora Córrego com muitos trabalhos incríveis - fizemos uma
festaça num sábado de sol em maio de 2021 na Casa das Rosas e foi simplesmente
incrível. Um big evento com a presença de grandes nomes como o Roberto
Bicelli, amigo de toda a vida, Beth Brait Alvim e Celso de Alencar, além de uma
geração de jovens poetas inspirados pelo Claudio como Luiz Perdiz, Macaio
Poetônio, Rita Medusa, Leonardo Chagas e este que vos fala. Um happening!)
Às vezes ele, rebelde sem causa que era, pedia que
traficássemos cigarros - era um daqueles fumantes inveterados e super nervosos
que entupiam cinzeiros de bitucas, mas não o fazíamos devido a sua embolia
pulmonar gravíssima - , água tônica ou que o ajudássemos a escapar: “Socorro!
Tiram-me daqui”, apelava com suas mensagens chegando em capslock e cheias
de “!!!!!!!” Íamos lá ou escrevíamos e tentávamos acalmá-lo como fosse
possível. Cheguei a comprar-lhe a Folha de São Paulo numa das vezes em
que lá estive com ele para que se inteirasse dos assuntos políticos, econômicos
e culturais. Logo após a leitura, colocávamos os temas e os dissecávamos com
muitos risos e até alguma saudável dose de ira. Tripudiávamos dos ricaços, dos
políticos, de todo mundo – não ficava pedra sobre pedra e não haviam tabus
(fora ele quem escreveu que “o Marquês de Sade nem precisava daquele teatro
todo”). Nesses momentos gostava de provocá-lo tentando criar-lhe
armadilhas, mas o homem sempre se saía bem. Claro, um malandro velho, um sábio trickster
das ruas e encruzilhadas. Não dá pra se enganar um velho lobo e um brujo
como o Claudio Willer!
Numa dessas ocasiões irrompeu no quarto uma das
enfermeiras locais e perguntou se eu era o “neto” do “Seu Claudio”.
“Não!”, respondeu rispidamente. A forma quase seca poderia passar por
alguma rabugice do velho (e ele poderia ser sim um pouco rabugento, às vezes,
mas tudo bem). Ele era assim, em uma parte do tempo. Depois ele acrescentou: “É
meu amigo.” E acrescentou, com um sorriso doce, não-irônico: “Também é
um pupilo.”
Escutar isso vindo do próprio Willer me deu uma
sensação muito boa, quase como se estivesse finalmente na companhia certa, ao
lado de um gigante. Fez-me sentir que eu procurava essa companhia luminosa
quando, ainda em minha caótica e anárquica adolescência, estava em metendo em
todo tipo de roubada e enfrentando todo tipo de acusação vindo das instituições
sociais e culturais. Talvez se eu o tivesse conhecido antes - e morasse em São
Paulo - vai ver que não teria me ferrado tanto? Quem é que poderia saber?
Das últimas vezes que nos encontramos - ele havia me
comprado uns livros - trouxe um dos meus últimos trabalhos, uma plaquette
intitulada Demônios em Redemoinho escrito em parceria criativa com os
poetas Rita Medusa e o Roger Tieri. Ao lê-la, Claudio comentou de modo
enfático: “essa plaquette é uma porta de hospício! Contribui para a história
do surrealismo brasileiro. Quero escrever sobre isso.”
Meu rosto não aguentava carregar o meu sorriso de
felicidade. Muito infelizmente esse texto – e outros - acabou não sendo
escrito: a alta dosagem de medicação para as dores que sentia o privou da
consciência e da possibilidade de trabalhos que ele gostaria de realizar ainda
lúcido e atento. No hospital o próprio Willer, ainda que seu quadro não
melhorasse, fazia planos diversos, típicos de quem ainda se sente no auge de
sua capacidade intelectual: queria dar mais cursos, escrever mais prefácios
para outros, participar de bancas de pós-graduação, prestigiar lançamentos,
publicar um livro de ensaios de mais de mil páginas, etc.
Mesmo em situações desfavoráveis como esse último
período de internação continuava a ser um gentleman, um homem mui
gentil, generoso. Preocupava-se com os amigos, queria saber como estavam e o que estavam fazendo. Só não oferecia
ajuda porque quem estava necessitado dela era ele próprio. E sendo um homem
forte (aquele de quem o De Franceschi, falecido aos 79 anos em 2021, dissera em
Os Dentes da Memória que fazia o “tipo do herói imbatível”) - com
certo orgulho, mas ainda esclarecido – só gritava por socorro quando realmente
não conseguia dar conta de enfrentar seu o problema ou cuidar de si mesmo.
V.
Porém, o último dos problemas de Claudio Willer era
tão pessoal quanto universal e intransferível: a proximidade da morte. Claudio,
contudo, foi poeta e não temeu o confronto ou o abraço. A certa altura, já com
a consciência fraca, confessou para Roberto Bicelli e para uma enfermeira: “Não
aguento mais. Só quero ir. Só quero ir. Deixem-me ir.” E foi-se. Foi sem
fazer estardalhaço. Foi sondar o outro lado, onde talvez só penetrem o oculto,
o mago, o xamã (e Willer foi tudo isso) onde
“a magia coloca-se ao alcance de todos sob forma de
um corrimão que aponta para a morte da Perspectiva. Foram setenta vidas, talvez
mais, contidas no espaço de alguns dias, límpidos, convergentes, inevitáveis,
sulcados pela proximidade dos ciclones, vivência do grande seio plástico que
abriga os desejos da alma, das cordas tensas do violino” [“O Serpentário e
suas Ramificações”, em ‘Dias Circulares’ (1976)]
No ano anterior Maninha Cavalcante, artista plástica
de inspiração surrealista e uma das companheiras mais antigas do poeta com quem
partilhara décadas de amor e convivência, havia falecido devido a um câncer.
Desde então, ele o confessara, sentia o peso esmagador da solidão que a
pandemia havia imposto sobre cada um de nós. Esta, com certeza, foi uma das
mortes que marcou implacavelmente o poeta.
Seu violino tinha cessado de tocar aquela música que
me conduziu e me tirou do sono provinciano me conduzindo até quase vê-lo morrer
em seu leito num lar para idosos no bairro do Brooklyn. E a morte de um poeta é
sempre a escavação ferina de algo que anseia a perfeição do grito.
Seu falecimento se deu numa sexta-feira 13, o que
parecera, para nosso grupo de amigos íntimos dele, quase que uma última “peça”
pregada pelo trickster Claudio Willer. Ainda que soubéssemos que iria acontecer
(seu quadro já era irreversível), ninguém estava pronto para receber aquela
notícia desoladora.
Ao chegar em seu velório, no final da manhã do sábado
14 de janeiro, senti a sensação interna de ser amputado e devastado
inteiramente. Perceber a sua luz se apagar só me fez ter mais vontade de ver
essa chama virar um grande incêndio que atravessará gerações presentes e
futuras - e este texto faz parte dessa guirlanda de estrelas acesas para servir
de pouso e passagem para o seu nome e os seus feitos de poeta e articulador
cultural que era.
Encontrar ali no Crematório da Vila Alpina (onde treze
anos antes seu grande amigo, Roberto Piva, a quem Willer sempre reconheceu e
divulgou enfaticamente enquanto o mundo o ignorava, também havia sido cremado)
reunidos tantos poetas e intelectuais diversos, amigos e familiares,
pesquisadores e admiradores sinceros, gente que teve no Claudio Willer um grande
professor ou orientador, foi glorioso.
Qualquer homenagem é ainda pouca para ele que sempre
fora bastante humilde em algumas colocações. E, como disse o Alex Januário
(editor e livreiro que lá estava presente junto conosco): “Claudio
preocupou-se mais com a difusão da
poética alheia do que em ficar divulgando-se a si mesmo por meio dos cursos,
das palestras e dos ensaios.”
De fato, Claudio Willer - que conheci antes como
tradutor e difusor dos Beats do que como poeta de lavra própria, como disse no
começo deste texto - ocupou bastante tempo de sua vida trazendo a nós autores
que hoje nos são tão caros e necessários, e que permanecem, em sua grande
maioria, atuais.
Não foram poucos
seus esforços e não foram nada em vão.
VI.
Willer colocou assim, junto com esses nomes, o seu em
todo manual ou dicionário sobre surrealismo neste planeta. Tais histórias
também foram citadas por Floriano Martins (com quem Willer co-editou a revista
literária Agulha) em seu Visões da Névoa: surrealismo no Brasil
(2019), excelente trabalho para quem quer mergulhar na história deste movimento
por aqui.
Outra destas ocasiões, havia me contado, mas pode ser
lido no já citado Dias Ácidos... (o qual estive em seu lançamento
em 2019 na Casa das Rosas e outros lugares), foi quando foi transformado no
personagem ‘Claudio, poeta surrealista’ no romance Cleo e Daniel
do Roberto Freire, o criador da somaterapia, lançado em 1966.
Famoso ou não, Claudio Willer, para mim, já era
célebre. Pois me lembro bem, quando eu vivia me metendo em confusões e
amanhecendo em delegacias ou dormindo na rua ou participando de orgias
diversas, as palavras contidas em seus ensaios, traduções ou em seus poemas me
chegavam aos meus ouvidos como combustível alucinante e fio condutor no meio do
caos e do abismo.
Como certa vez em que, no meio de uma cena que parecia
ter saído do Satíricon, em meio a uma confusão de coxas, cus,
bocas, bucetas, picas, cabelos e secreções, fiquei de pé numa cadeira
totalmente sem roupas e, regendo invisivelmente a cena, ainda de pau duro com
uma ruiva magnífica a chupar-me, comecei a recitar:
“mergulho no amor
com a cega convicção dos suicidas
penetro passo a
passo
nesta região misteriosa
turva
opaca
aberta pelo
encontro dos corpos
e sinto outra
familiaridade nas coisas
esta calma permanência dos objetos
agora formas de
lembrar-se
o mundo
que se reduz a
traços de presença
a realidade
que fala ao
transformar-se em memória
tudo é
convergência e signo
o espaço uma
extensão do gesto
as coisas
matéria de
evocação
qualquer coisa
treme dentro da noite
como se fosse um som de flauta
e a cidade se
contorce e se retrai
MAIS UMA VEZ
ao abrir-se para este
turbulento silêncio
de olhar frente
ao olhar
pele
contra pele
sexo sobre sexo”
É assim, amigos, que quero elogiar e lembrar-se de um
grande poeta. Não com lágrimas (elas virão quando vierem), mas com a inspiração
de potência para a vida e a habilidade, sempre professada pelo Claudio Willer,
de transformá-la em obra de arte.
VII.
nosso
espaço
é
o espaço do terrível
o
pântano
varrido
por ventos mornos
atravessando
os flautins de sargaços
a
noite definitiva e o grito congelado
penetremos
aos poucos
neste
jardim de negações
onde
a palavra pede mais espaço
não
há mais muita vida
sobre a face deste planeta
(Claudio Willer - Visitantes Nº 4)
Certa vez cheguei a dizê-lo: “Claudio, caralho,
obrigado por tudo, cara! Você nem tem a mínima ideia do quanto você me ajudou e
até mesmo me salvou. Tudo isso à distância & sem sequer desconfiar de que
eu existia.”
Pude em vida expressar minha gratidão enfática a ele
por ter passado neste mesmo mundo que eu e me ensinado bastante. Ele sorria
belamente e dentro do velho eu vi o jovem Claudio Willer, o “tipo herói
imbatível” nietzscheano-baudelairiano que ia remar e andar de barco com
amigos e namoradas e andava junto a criminosos românticos, orgulhoso com um
leão.
Com isso tudo escrito desejo manifestar meu mais
profundo respeito, agradecimento e orgulho por ter tido no Claudio Willer não
só um guia xamânico, um bruxo ou professor com erudição, streetwise e
empáfia o bastante para peitar e partir pra cima dos caretas enquadrados e
engravatados nas academias e no sistema literário. Alguém com coragem
suficiente para defender suas próprias ideias e inventar a sua própria
coerência.
Mas, acima de tudo, isso sim, ter nele um amigo muito
especia, sábio, gentil e acolhedor; um homem inteligente e sensível, além de
tudo neste mundo. Foi também um grande incentivador da literatura,
principalmente a experimental e transgressora, sempre disposto a aconselhar
jovens autores sem ficar de queixo levantado. Alguém que nunca temeu confundir
a Arte com a Vida. Ou a Vida com a Arte. Isso aprendi, sobretudo, não só nos
textos, mas ao lado mesmo do Claudio Willer.
Espero estar à altura de ajudar o seu legado a ser
transmitido para outras próximas gerações. Posto que Claudio Willer, de corpo e
alma, sempre se dedicou à emancipação do delírio, do desejo, do amor, do
erotismo e foi um apaixonado libertário. Temas e paixões que sempre serão
jovens e sempre atrairão a energia da juventude e o delírio magnífico dos
sábios.
Estes que como eu, como ele, como o Roberto Piva,
estão nas cidades, perdidos, sujos e famintos, buscando uma dose de
encantamento e uma (des)razão para viver num mundo cada vez mais fechado e
enquadrado, baseado em cálculos e metas.
É assim que espero que seja! Cladio Willer já é
eterno: Evoé, VIVA WILLER!
Agulha Revista de Cultura
Número 228 | abril de 2023
Artista convidado: Desmond Morris (Reino Unido, 1928)
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2023
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