domingo, 23 de abril de 2023

IKARO MAXX | Elegia póstuma ao poeta Claudio Willer

 

Hoje ainda que morto, se opõe à profanação,

Tu, que antigamente tiveste as avalanches de rosas,

Tropas de guerreiros com bandeiras ao vento

FEDERICO GARCÍA LORCA

 

 I.

  

Os excessos traumatizantes deste último fim de semana me levaram a postergar a minha homenagem pessoal ao mestre e amigo Claudio Jorge Willer (1940-2023). A vida e obra de Willer confundem-se e ardem na mesma chama sinestésico-simbiótica em que subjetividade romântica, surrealidade, gnosticismo, xamanismo e a expertise libertário-aventureira das ruas combinam-se de modo mágico em permanentes intercâmbios ontológicos.

 

Nascido em 02 de dezembro de 1940, numa São Paulo ainda provinciana que já mostrava seus primeiros sintomas de modernização após a semana de 22 e a criação da primeira universidade do país, Claudio Willer é filho da união entre o seu pai judeu austríaco, Ricardo Willer, e sua mãe católica alemã, Grete Willer, que vieram ao Brasil para fugir tanto do fascismo quanto da guerra. Estimulado desde cedo por sua família os interesses culturais e literários de Claudio remontam ainda à sua adolescência quando aos 15 anos ganhou de sua mãe, que era preceptora dos filhos do maestro Gino Marinuzzi, regente no La Scala, a assinatura do Pró-Arte onde tinha acesso a um ano todo de concertos.

 

A inclinação para a pesquisa e a docência já se manifestaram cedo quando Claudio, como primeira atividade pública, coordenou um grupo de apreciadores de música na ACM, Associação Cristã de Moços.

 

Não demorou muito para que, após conhecer os jovens poetas Antonio Fernando de Franchesci e Roberto Piva, junto a outros poetas e amigos, começassem juntos a se reunir na sede da ACM e em outros lugares como ruas, restaurantes, praças e galerias, para fazer leituras e palestras sobre poesia e poetas.

 

Estava aí se lançando uma tendência que ainda viria a se transformar numa espécie de revolução ou contracultura poética nas décadas posteriores, aliada às descobertas de uma nova juventude enquanto novos atores sociais, que lançaria mão de novos modos de vida e estimularia a criação literária a se perfazer para além dos gestos, formas e rituais desgastados propalados nas academias.

 

Eram os primórdios de uma agitação que fervilhava e que tinha em Claudio Willer uma de suas figuras de proa.

 

 

II.

   

 

Deparei-me com o pensamento e as contribuições do poeta já numa adolescência tardia, quando tinha por volta dos dezoito ou dezenove anos. A rebeldia de minha adolescência, o grau de perdição e desorientação em que me encontrava então (acresça a isso minhas tendências suicidas de quem no mundo não encontrava nada que lhe proporcionasse o conforto de uma referência) e, sobretudo, um feroz tesão de experiência alquímica da vida me levou a cair no colo dos autores da Beat Generation.

 

Minha primeira suculenta mordida nesta anti-tradição libertária promovedora da contracultura norte-americana se deu ao descobrir que os grandes avatares do rock’n’roll da década de 60 e diante deviam a esses caras. Por conta disso tive que ir atrás pra beber da água saindo da fonte.

 

Foi aí que o nome do Willer surgiu na minha vida. Enquanto tradutor de Allen Ginsberg e profundo conhecedor do tema - com estudos copiosos sobre os interesses e a mística filosófica da Beat junto a uma gramática do anedotário e do profuso estilo de seus poetas e autores - já fui fisgado não só pelo texto e o estilo de suas traduções, mas fiquei mesmo apaixonado pela veemência e grau de conhecimento (contendo tanta erudição quanto certa malícia existencial, condimento essencial e encantatório) exibidos minuciosamente nos prefácios e ensaios do Willer sobre a Geração Beat. A primeira tradução de Ginsberg do Claudio, uma edição bem surrada de Uivo, Kaddish e outros poemas saída em 1984 pela L&PM Editores foi me apresentada enquanto cruzava o país saindo de João Pessoa-PB até Porto Alegre em fins de 2004 e começo de 2005, por um amigo e poeta que estava na mesma caravana que ia participar de uma das edições do extinto Fórum Social Mundial. Nada mais cosmicamente e idealmente alinhado do que conhecer o poema fundador dessa geração em pleno deslocamento aventuresco, em plena estrada, enquanto aos 19 anos exalava essa energia descomunal e fome poética de viver as coisas. E o que seriam quatro dias de viagem enfurnado num ônibus lotado de militantes políticos de esquerda, artistas, boêmios e gente maluca tendo-se, além das próprias vivências inesquecíveis, a oportunidade de ler e conhecer um dos marcos fundadores de uma literatura e uma conduta libertária tão transformadora como aquela propagada por Allen Ginsberg e tão bem apresentada e estudada por Claudio Willer? 

 

Para mim soava não só como alguém aficionado que conhece algo bem mais a fundo, mas alguém que realmente viveu aquilo que relatava e, por conta disso, estava à altura de nos falar a respeito. Era como se Willer estivesse falando de Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William S. Burroughs, Gregory Corso e seu grupo de amigos como se fossem seus brothers de curtição, parceiros íntimos de crimes estéticos e chapações que misturavam em suas vidas uma voraz estética da existência a uma ética da marginalidade. E de certa forma era isso mesmo! Afinal, Claudio era amigo de juventude do Roberto Piva, do Roberto Bicelli, Décio Bar e tantos outros poetas que viajavam no mesmo barato, cada qual a seu modo!

 

Puta que pariu...”, pensei, “esse cara escreve pra caralho... Queria um dia atingir uma verve assim, solta, rica, cheia de experiências e conceitos, com um texto solto, fluido, que não se engasga ao primeiro sinal de lógica ou metafísica (em punhetações racionalizantes e hiper-abstratas, sem vida). Algo empolgante e que leva o leitor bem além e o desloque de sua experiência aprisionada na morosidade cotidiana... Quem sabe até o faça desejar mudar a vida!” E, de fato, o Willer tem essa qualidade em seu trabalho intelectual gigantesco com seus jabs certeiros nos conceitos do senso comum, da vida cotidiana certinha, regrada, na e pela ordem careta. Mal sabia eu que, um dia, me encontraria cara-a-cara com o ‘poeta’ em carne-e-osso. E que, pasmem, ele se tornaria um amigo e mentor, no melhor sentido da palavra.

 

Logo depois de meu retorno da Europa em 2008, houve uma edição da Fliporto (evento literário importante que acontece em Porto de Galinhas/PE). Havia um grupo de poetas paraibanos que iria participar de uma das apresentações, uma roda de leitura pública, e um dos convidados originais não poderia ir. Um dos organizadores do grupo convidou-me então, perguntando se eu toparia participar e que haveria cachê, viagem paga e etc., e que na ocasião tudo o que eu teria que fazer era ler apenas três poemas no palco junto aos outros poetas. A viagem se daria num esquema bate-e-volta, portanto, sem gastos com estadia.

 

Como eu sou mesmo maluco que adora viajar e experienciar a estrada - tal como um beatnik mesmo -, nem pensei duas vezes e topei. Perguntei se na ocasião poderia levar a minha namorada da época, eles disseram que havia sim mais uma vaga na van  e que poderia ser para ela. No dia do evento, pela manhã, nos encontramos num lugar marcado e partimos. Ao chegar lá e olhar a programação do evento vejo que o Claudio Willer lá estaria para ministrar um minicurso sobre a Geração Beat. Quase que não acreditava. Porém, o curso era no dia seguinte e em nossa programação não cabia a permanência. Isso me deixou um tanto chateado, mas tudo bem. Naquela mesma manhã o Claudio apareceu e compôs uma das mesas de abertura na qual comentou sobre temas ligados às vanguardas literárias. Fiquei excitado com a possibilidade de conhecê-lo e tentei ir cumprimentá-lo, só que (nervoso como me encontrava e jovem como era) não consegui articular mais do que 4 ou 5 palavras de aprovação e excitação. O Claudio abriu aquele sorrisão sem dentes de condescendência feliz, passiva e saiu com alguém que iria orientá-lo sobre algo do evento. Não consegui sequer me apresentar a ele, mas não tinha importância: eu o tinha finalmente visto pessoalmente.

 

Algum tempo depois nós nos adicionamos no Facebook e sempre que postava algum poema ou texto literário interessante tentava fazê-lo ciente marcando-o nos comentários ou enviando-lhe a publicação. Willer, ciente dos esforços de um jovem autor com audácia de desbravação, começou a gostar das minhas coisas e escrever-me elogios, indicar-me leituras e caminhos com atenção cuidadosa. Um exemplo de generosidade sem fim. Chegou a comentar certa vez que o Roberto Piva, grande poeta e seu estimadíssimo amigo, teria adorado me conhecer (em 2008, quando vim a São Paulo pela primeira vez, quase conheci o Piva - por intermédio do poeta Ademir Assunção -, mas ele estava fora da cidade durante tal período) e falava sobre a potência e qualidade literária dos meus poemas. A lisonja me tomava por completo, devo confessar.

 

Mas, a vida é uma loucura em seu desconcerto de intensidades, inconstâncias, (des)encontros. Quis ela que me mudasse pra São Paulo em 2018 e, no meio das minhas peregrinações poéticas e graças ao meu querido amigo David Neves, acabei conhecendo e tornando-me amigo do poeta-editor Gabriel Rath Kolyniak, da Editora Córrego, e entrando na equipe que cuidava e catalogava a Biblioteca Roberto Piva. (O acervo - que se juntou ao do filósofo e professor Raul Fiker - atualmente encontra-se aos cuidados da Unicamp, em Campinas.) Um destes acontecimentos maravilhosos da vida que me abriu caminhos fecundos e extraordinários. Foi através do Gabriel que tive contato mais próximo a Willler e fui me aprochegando com sutileza e cuidado na convivência - digital e presencial - com o mestre.

 

Aos poucos fui entendendo cada vez mais o homem Claudio Willer, de carne-e-osso, a quem, depois de certo convívio e intimidade, chamava simplesmente de Claudio como se chama um amigo de verdade, daquele das antigas. Para todo os outros era Willer, Sr. Willer ou Professor, a depender da ligação e da devoção. Nossas conversas eram intensas e flanávamos entre diversos temas, “sacações”, autores, coisas da vida, política, arte, utopias e assim muitas figurinhas eram trocadas.

 

O nosso mútuo interesse pelos rebeldes e malditos, pelos místicos e revolucionários, semeava e essa comunicação cada vez mais livre e cimentava uma amizade intergeracional que para mim era fundamental (e sei que para ele também, que adorava conhecer gente jovem e ligada em poesia).

 

 

III.

                                                                                

 

Contudo, ‘les affaires sont les affaires’ e as vidas seguem em paralelas, cada um seguindo e sobrevivendo como pode. Se eu não estivesse tanto ocupado em como ganhar a vida (financeiramente) e estivesse mais próximo geograficamente no corpo da cidade - Willer morava no centro e eu não conseguia bancar-me por lá - teria ido visitá-lo em seu apartamento mais vezes para um café, conversar sobre livros ou falar mal do Bolsonaro (e esse era um dos nossos esportes favoritos).

 

Vejamos os noticiários para ver se o Bolsonaro já caiu”, costumava comentar antes de ligar a TV ou quando terminava uma chamada de vídeo no computador.

 

No meio da dura pandemia - atravessando diversas dificuldades financeiras - recebi o convite da jornalista Renata D’Elia (autora, junto com a Camila Hungria, do livro-reportagem Os Dentes da Memória, de 2011, sobre a geração de poetas em que se destacam Willer, Piva, Bicelli e De Franchesci) para tornar-me secretário do Claudio em sua plataforma de cursos, o Cursos Willer.

 

De agosto de 2020 até o final de 2022 chegamos a fazer uma oficina literária e oito cursos temáticos dentro do escopo de interesse do mestre. Foi a forma que um grupo de amigos elaborou e colaborou para o poeta continuar a ter uma renda mais frequente e não passar perrengues como passou anos antes. O acerto também acabou me envolvendo: uma parcela do total das matrículas me ajudava a não ficar com a barriga contra a parede. Achei aquilo ótimo e veio num dos momentos mais complexos de nossas vidas.

 


Auxiliar e secretariar o Claudio Willer nos cursos deu-me a experiência epifânica da exibição de uma inteligência elegante, multifacetada e da capacidade de dançar com erudição, malemolência e sagacidade, improvisando quase como um John Coltrane ou Miles Davis sopravam o sax alto num sábado de madrugada, ouvindo & vendo-o nos entregar as aulas mais ricas e apaixonantes que já ouvi - e isso muito a despeito dele já ser um idoso de 80 anos (o etarismo é um dos preconceitos mais estúpidos de nossa cultura, que seja dito). Quanto brilho! Quanta beleza! Quanta finesse! Quanta desenvoltura!

 

Mesmo quando ele ia muito longe em rizomas de outras curiosidades e desdobramentos espontâneos o Claudio conseguia retomar o fio da meada que abandonara com uma clareza e capacidade revigorante de rememorar que nos deixava boquiabertos. Era realmente algo impressionante. Eu mesmo não seria capaz de fazer aquilo. Não como ele. 

 

Ao final de cada aula, invariavelmente, ele perguntava no grupo de Whatsapp dos Cursos: “Que tal?” E eu deixava as minhas impressões a respeito, ao que ele retrucava: “Bom!” Ou então (para nós – do grupo de amigos mais íntimos - já uma marca willeriana): “INHU!

 

O que significava esse ‘INHU’ do Claudio Willer? De onde tinha vindo essa expressão? Qual era a sua origem etimológica e sua história?

 

Só ele, penso, sabia. Acabou que ele se foi e não nos deixou o segredo desta pedra filosofal da expressão sintética-pré-adâmica. Para mim, subjetivamente, pode significar um misto de coisas, talvez um tipo muito específico, cirúrgico & subjetivo, de YEAH! Ou mesmo nada, nada demais, ao menos. Uma exclamação sem fundo semântico, liberta da carga de significação e da história das palavras, que poderia ser utilizada para expressar alegria genuína, desprendida, provavelmente.

 

Sim, Willer poderia até ser repetitivo em alguns momentos, desdobrar-se em autores de sua predileção desde os tempos juvenis em que se embriagava com amigos & liam em sua apartamento Garcia Lorca, Arthur Rimbaud, Conde de Lautreámont (que ele também traduziu e foi um desses que mudou minha vida! O prefácio-ensaio “Astro Negro” é um dos meus prediletos of all times, mostra o Claudio Willer totalmente em seu elemento), William Blake, Robert Desnos, Paul Éluard, Octávio Paz, André Breton, Alfred Jarry, Antonin Artaud, Walt Whitman, Henry Miller, Anaïs Nïn, Joyce Mansour, Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Gregory Corso, Jorge Luís Borges, Herberto Helder, Fernando Pessoa etc, tal qual uma bela playlist sentimental no campo das idéias. Mas isso não expressava tanto uma obsessão quanto era a marca identitária de uma fidelidade, de uma ética compromissada com a rebelião, o desbunde e a anarquia mística, anti-autoritária e capaz de abarcar a multiversidade das diferenças. 

 

Ainda assim era apaixonante vê-lo falar sobre essa literatura Beat-surreal quase como uma redescoberta ou como se a tivesse acabado de inventar ali diante de nossos olhos e ouvidos. Para mim era sempre uma aventura iniciar um papo com ele e deixar com que ele conduzisse a conversação nos precipitando numa floresta simbólica com uma tocha nas mãos, falando de seus amigos, seu passado, as leituras que faziam. “Eu o seguia, era preciso.

 

IV.

 

Com as internações e consequentes complicações em seu quadro de saúde nossos encontros foram rareando.

 

Durante os nossos cursos eu ia em sua casa, que ficava num apartamento na Avenida Barão de Limeira nos Campos Elísios, auxiliá-lo a fazer a conexão adequadamente (essa maldita dificuldade tecnológica que ele sempre sentia, o que de certa forma acabou sendo uma coisa boa porque nos aproximou bastante). Outra feita, bem antes disso, mas ainda relacionado aos cursos, juntamos um grupo de amigos e admiradores poetas e ajudamos a organizar sua biblioteca – presentes comigo na ocasião: Diogo Cardoso, Élvio Fernandes Gonçalves Junior, Pedro Spigolon e, às vezes, Gabriel Rath Kolyniak - de modo a facilitá-lo em suas buscas durante os cursos, participações em bancas e suas leituras cotidianas. Quando a coisa piorou - antes do fim do curso Mais sobre Poetas Malditos que, infelizmente, seria o nosso último - Willer teve que ser internado às pressas e nossas atividades ficaram indeterminadamente suspensas.

 

Graças a um grande grupo de amigos, admiradores e familiares próximos Claudio esteve o máximo possível bem assistido, por vezes até conseguindo se comunicar conosco no grupo de WhatsApp da Gangue Willeriana, que era como éramos chamados pelo próprio.

 

(Vale o parêntese: Aliás, grupo esse de autores e poetas reunidos em torno do Willer que já tem uma coleção publicada em plaquettes pela Editora Córrego com muitos trabalhos incríveis - fizemos uma festaça num sábado de sol em maio de 2021 na Casa das Rosas e foi simplesmente incrível. Um big evento com a presença de grandes nomes como o Roberto Bicelli, amigo de toda a vida, Beth Brait Alvim e Celso de Alencar, além de uma geração de jovens poetas inspirados pelo Claudio como Luiz Perdiz, Macaio Poetônio, Rita Medusa, Leonardo Chagas e este que vos fala. Um happening!)

 

Às vezes ele, rebelde sem causa que era, pedia que traficássemos cigarros - era um daqueles fumantes inveterados e super nervosos que entupiam cinzeiros de bitucas, mas não o fazíamos devido a sua embolia pulmonar gravíssima - , água tônica ou que o ajudássemos a escapar: “Socorro! Tiram-me daqui”, apelava com suas mensagens chegando em capslock e cheias de “!!!!!!!” Íamos lá ou escrevíamos e tentávamos acalmá-lo como fosse possível. Cheguei a comprar-lhe a Folha de São Paulo numa das vezes em que lá estive com ele para que se inteirasse dos assuntos políticos, econômicos e culturais. Logo após a leitura, colocávamos os temas e os dissecávamos com muitos risos e até alguma saudável dose de ira. Tripudiávamos dos ricaços, dos políticos, de todo mundo – não ficava pedra sobre pedra e não haviam tabus (fora ele quem escreveu que “o Marquês de Sade nem precisava daquele teatro todo”). Nesses momentos gostava de provocá-lo tentando criar-lhe armadilhas, mas o homem sempre se saía bem. Claro, um malandro velho, um sábio trickster das ruas e encruzilhadas. Não dá pra se enganar um velho lobo e um brujo como o Claudio Willer!

 

Numa dessas ocasiões irrompeu no quarto uma das enfermeiras locais e perguntou se eu era o “neto” do “Seu Claudio”. “Não!”, respondeu rispidamente. A forma quase seca poderia passar por alguma rabugice do velho (e ele poderia ser sim um pouco rabugento, às vezes, mas tudo bem). Ele era assim, em uma parte do tempo. Depois ele acrescentou: “É meu amigo.” E acrescentou, com um sorriso doce, não-irônico: “Também é um pupilo.”

 

Escutar isso vindo do próprio Willer me deu uma sensação muito boa, quase como se estivesse finalmente na companhia certa, ao lado de um gigante. Fez-me sentir que eu procurava essa companhia luminosa quando, ainda em minha caótica e anárquica adolescência, estava em metendo em todo tipo de roubada e enfrentando todo tipo de acusação vindo das instituições sociais e culturais. Talvez se eu o tivesse conhecido antes - e morasse em São Paulo - vai ver que não teria me ferrado tanto? Quem é que poderia saber?

 

Das últimas vezes que nos encontramos - ele havia me comprado uns livros - trouxe um dos meus últimos trabalhos, uma plaquette intitulada Demônios em Redemoinho escrito em parceria criativa com os poetas Rita Medusa e o Roger Tieri. Ao lê-la, Claudio comentou de modo enfático: “essa plaquette é uma porta de hospício! Contribui para a história do surrealismo brasileiro. Quero escrever sobre isso.

 

Meu rosto não aguentava carregar o meu sorriso de felicidade. Muito infelizmente esse texto – e outros - acabou não sendo escrito: a alta dosagem de medicação para as dores que sentia o privou da consciência e da possibilidade de trabalhos que ele gostaria de realizar ainda lúcido e atento. No hospital o próprio Willer, ainda que seu quadro não melhorasse, fazia planos diversos, típicos de quem ainda se sente no auge de sua capacidade intelectual: queria dar mais cursos, escrever mais prefácios para outros, participar de bancas de pós-graduação, prestigiar lançamentos, publicar um livro de ensaios de mais de mil páginas, etc.

 

Mesmo em situações desfavoráveis como esse último período de internação continuava a ser um gentleman, um homem mui gentil, generoso. Preocupava-se com os amigos, queria saber como estavam  e o que estavam fazendo. Só não oferecia ajuda porque quem estava necessitado dela era ele próprio. E sendo um homem forte (aquele de quem o De Franceschi, falecido aos 79 anos em 2021, dissera em Os Dentes da Memória que fazia o “tipo do herói imbatível”) - com certo orgulho, mas ainda esclarecido – só gritava por socorro quando realmente não conseguia dar conta de enfrentar seu o problema ou cuidar de si mesmo.

 

V.

 

Porém, o último dos problemas de Claudio Willer era tão pessoal quanto universal e intransferível: a proximidade da morte. Claudio, contudo, foi poeta e não temeu o confronto ou o abraço. A certa altura, já com a consciência fraca, confessou para Roberto Bicelli e para uma enfermeira: “Não aguento mais. Só quero ir. Só quero ir. Deixem-me ir.” E foi-se. Foi sem fazer estardalhaço. Foi sondar o outro lado, onde talvez só penetrem o oculto, o mago, o xamã (e Willer foi tudo isso) onde

 

a magia coloca-se ao alcance de todos sob forma de um corrimão que aponta para a morte da Perspectiva. Foram setenta vidas, talvez mais, contidas no espaço de alguns dias, límpidos, convergentes, inevitáveis, sulcados pela proximidade dos ciclones, vivência do grande seio plástico que abriga os desejos da alma, das cordas tensas do violino” [“O Serpentário e suas Ramificações”, em ‘Dias Circulares’ (1976)] 

 

No ano anterior Maninha Cavalcante, artista plástica de inspiração surrealista e uma das companheiras mais antigas do poeta com quem partilhara décadas de amor e convivência, havia falecido devido a um câncer. Desde então, ele o confessara, sentia o peso esmagador da solidão que a pandemia havia imposto sobre cada um de nós. Esta, com certeza, foi uma das mortes que marcou implacavelmente o poeta.

 

Seu violino tinha cessado de tocar aquela música que me conduziu e me tirou do sono provinciano me conduzindo até quase vê-lo morrer em seu leito num lar para idosos no bairro do Brooklyn. E a morte de um poeta é sempre a escavação ferina de algo que anseia a perfeição do grito.

 

Seu falecimento se deu numa sexta-feira 13, o que parecera, para nosso grupo de amigos íntimos dele, quase que uma última “peça” pregada pelo trickster Claudio Willer. Ainda que soubéssemos que iria acontecer (seu quadro já era irreversível), ninguém estava pronto para receber aquela notícia desoladora.

 

Ao chegar em seu velório, no final da manhã do sábado 14 de janeiro, senti a sensação interna de ser amputado e devastado inteiramente. Perceber a sua luz se apagar só me fez ter mais vontade de ver essa chama virar um grande incêndio que atravessará gerações presentes e futuras - e este texto faz parte dessa guirlanda de estrelas acesas para servir de pouso e passagem para o seu nome e os seus feitos de poeta e articulador cultural que era.

 

Encontrar ali no Crematório da Vila Alpina (onde treze anos antes seu grande amigo, Roberto Piva, a quem Willer sempre reconheceu e divulgou enfaticamente enquanto o mundo o ignorava, também havia sido cremado) reunidos tantos poetas e intelectuais diversos, amigos e familiares, pesquisadores e admiradores sinceros, gente que teve no Claudio Willer um grande professor ou orientador, foi glorioso.

 

Qualquer homenagem é ainda pouca para ele que sempre fora bastante humilde em algumas colocações. E, como disse o Alex Januário (editor e livreiro que lá estava presente junto conosco): “Claudio preocupou-se  mais com a difusão da poética alheia do que em ficar divulgando-se a si mesmo por meio dos cursos, das palestras e dos ensaios.”

 

De fato, Claudio Willer - que conheci antes como tradutor e difusor dos Beats do que como poeta de lavra própria, como disse no começo deste texto - ocupou bastante tempo de sua vida trazendo a nós autores que hoje nos são tão caros e necessários, e que permanecem, em sua grande maioria, atuais.

 

Não foram poucos  seus esforços e não foram nada em vão.

 

VI. 

 

Não sou celebridade. Não sou famoso. Mas, creio que fui ‘famoso’ em umas três ocasiões”, confessa em uma das crônicas de seu formidável Dias Ácidos, Noites Lisérgicas, de 2019. Uma delas - ainda no começo de sua carreira literária - foi a resenha do seu livro de estreia, Anotações para um Apocalipse (1964) editado pelo grande editor Massao Ohno que saíra na revista capitaneada pelo próprio pai do surrealismo, Monsieur André Bréton, “La Brèche”, ao lado de Roberto Piva & Sérgio Lima (que conhecia Bréton e os havia convidado para ‘organizar’ o movimento surrealista no Brasil, o que acabou não dando certo). Um baita feito! 

 

Willer colocou assim, junto com esses nomes, o seu em todo manual ou dicionário sobre surrealismo neste planeta. Tais histórias também foram citadas por Floriano Martins (com quem Willer co-editou a revista literária Agulha) em seu Visões da Névoa: surrealismo no Brasil (2019), excelente trabalho para quem quer mergulhar na história deste movimento por aqui.

 

Outra destas ocasiões, havia me contado, mas pode ser lido no já citado Dias Ácidos... (o qual estive em seu lançamento em 2019 na Casa das Rosas e outros lugares), foi quando foi transformado no personagem ‘Claudio, poeta surrealista’ no romance Cleo e Daniel do Roberto Freire, o criador da somaterapia, lançado em 1966.  

 

Famoso ou não, Claudio Willer, para mim, já era célebre. Pois me lembro bem, quando eu vivia me metendo em confusões e amanhecendo em delegacias ou dormindo na rua ou participando de orgias diversas, as palavras contidas em seus ensaios, traduções ou em seus poemas me chegavam aos meus ouvidos como combustível alucinante e fio condutor no meio do caos e do abismo.

 

Como certa vez em que, no meio de uma cena que parecia ter saído do Satíricon, em meio a uma confusão de coxas, cus, bocas, bucetas, picas, cabelos e secreções, fiquei de pé numa cadeira totalmente sem roupas e, regendo invisivelmente a cena, ainda de pau duro com uma ruiva magnífica a chupar-me, comecei a recitar:

 

mergulho no amor

            com a cega convicção dos suicidas

penetro passo a passo

            nesta região misteriosa

                                        turva

                                        opaca

aberta pelo encontro dos corpos

                               e sinto outra familiaridade nas coisas

         esta calma permanência dos objetos

                               agora formas de lembrar-se

                 o mundo

                               que se reduz a traços de presença

                 a realidade

                               que fala ao transformar-se em memória

tudo é convergência e signo

                               o espaço uma extensão do gesto

                 as coisas

                                matéria de evocação

qualquer coisa treme dentro da noite

                                como se fosse um som de flauta

e a cidade se contorce e se retrai

                      MAIS UMA VEZ

ao abrir-se                                     para este turbulento silêncio

                              de olhar frente ao olhar

                                             pele contra pele

sexo sobre sexo

 

 

É assim, amigos, que quero elogiar e lembrar-se de um grande poeta. Não com lágrimas (elas virão quando vierem), mas com a inspiração de potência para a vida e a habilidade, sempre professada pelo Claudio Willer, de transformá-la em obra de arte.

 

VII. 

nosso espaço

é o espaço do terrível

o pântano

varrido por ventos mornos

atravessando os flautins de sargaços

a noite definitiva e o grito congelado

penetremos aos poucos

neste jardim de negações

onde a palavra pede mais espaço

não há mais muita vida

sobre a face deste planeta

 

(Claudio Willer - Visitantes Nº 4) 

 

Certa vez cheguei a dizê-lo: “Claudio, caralho, obrigado por tudo, cara! Você nem tem a mínima ideia do quanto você me ajudou e até mesmo me salvou. Tudo isso à distância & sem sequer desconfiar de que eu existia.

 

Pude em vida expressar minha gratidão enfática a ele por ter passado neste mesmo mundo que eu e me ensinado bastante. Ele sorria belamente e dentro do velho eu vi o jovem Claudio Willer, o “tipo herói imbatível” nietzscheano-baudelairiano que ia remar e andar de barco com amigos e namoradas e andava junto a criminosos românticos, orgulhoso com um leão.

 

Com isso tudo escrito desejo manifestar meu mais profundo respeito, agradecimento e orgulho por ter tido no Claudio Willer não só um guia xamânico, um bruxo ou professor com erudição, streetwise e empáfia o bastante para peitar e partir pra cima dos caretas enquadrados e engravatados nas academias e no sistema literário. Alguém com coragem suficiente para defender suas próprias ideias e inventar a sua própria coerência.

 

Mas, acima de tudo, isso sim, ter nele um amigo muito especia, sábio, gentil e acolhedor; um homem inteligente e sensível, além de tudo neste mundo. Foi também um grande incentivador da literatura, principalmente a experimental e transgressora, sempre disposto a aconselhar jovens autores sem ficar de queixo levantado. Alguém que nunca temeu confundir a Arte com a Vida. Ou a Vida com a Arte. Isso aprendi, sobretudo, não só nos textos, mas ao lado mesmo do Claudio Willer.

 

Espero estar à altura de ajudar o seu legado a ser transmitido para outras próximas gerações. Posto que Claudio Willer, de corpo e alma, sempre se dedicou à emancipação do delírio, do desejo, do amor, do erotismo e foi um apaixonado libertário. Temas e paixões que sempre serão jovens e sempre atrairão a energia da juventude e o delírio magnífico dos sábios.

 

Estes que como eu, como ele, como o Roberto Piva, estão nas cidades, perdidos, sujos e famintos, buscando uma dose de encantamento e uma (des)razão para viver num mundo cada vez mais fechado e enquadrado, baseado em cálculos e metas.

É assim que espero que seja! Cladio Willer já é eterno: Evoé, VIVA WILLER!

 

 

 

IkaRo MaxX (1985) é filósofo, poeta, performer, músico, editor, tradutor e agitador cultural. Nascido na capital paraibana é um nômade convicto e cosmopolita desenraizado - percorreu o Brasil e chegou a viver na França e na Inglaterra. Suas inquietações percorrem dimensões políticas, poéticas e estéticas da existência. Inconformista, antiautoritário e anticanônico é um experimentador inquieto que desconhece limites e fronteiras. Trabalhou com os acervos da Biblioteca Roberto Piva e Raul Fiker. Secretariou o Willer Cursos onde auxiliou cursos on-line de Claudio Willer. Em nome do terrorismo poético e da liberdade livre publicou obras como: Saliva (VirtualBooks - 2015), Uive Quando Se Sentir Eterno (2016), Full Foda-Se (Córrego/Provokeativa - 2019), A Arte da Subversão (Editora Cintra/ARC Edições - 2019), 68 Teses Provokeativas (Provokeativa - 2020), Ode a Lorca & outros Poemas (Mocho Edições - 2020), Lóki-Down (Provokeativa - 2021), Diablo Ex-Machina (Provokeativa - 2022), Carta Aberta de um Poeta a um Genocida (Provokeativa - 2022), Orgia de Unicórnios (Córrego - 2022), Demônios em Redemoinho (Provokeativa, 2022), Abolir a Mercadoria para Transformar a Vida em Odisséia (Provokeativa, 2023). Autor do experimento de colagem audiovisual Vídeo-Crise (2017).


DESMOND MORRIS (Reino Unido, 1928). Sus grandes pasiones son los animales y el arte. Es zoólogo, con doctorado en Oxford, etólogo, pintor surrealista y experto en sociobiología humana. Ha publicado 48 artículos científicos, escrito 80 libros y ha sido traducido a 43 idiomas. Entre 1956 y 1998, presentó más de 700 programas de televisión. También pintó más de 3400 cuadros y presentó 60 exposiciones individuales. (Fuente: U.Porto) Uno de sus libros más destacados es The Naked Ape (1967), además de ser conocido por su programa de televisión Zoo Time, en la década de 1960, en ITV.





Agulha Revista de Cultura

Número 228 | abril de 2023

Artista convidado: Desmond Morris (Reino Unido, 1928)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023 

 


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