PARTE 1 | A festa de mil gatos na tuba
Já não recordo em que ano conheci Heriberto
Porto (Ceará, 1964). Lembro-me, isto sim, do fascínio que exerceu sobre mim, de
imediato, a paixão com que tocava sua flauta. Apresentava-se com um grupo em um
bar em Fortaleza e tão logo terminou o show eu fui falar com ele, uma conversa rápida
de apresentação e declaração de afinidade. Passei então a acompanhá-lo, por onde
se apresentasse. Escrevi algo para a imprensa quando se editou o CD do grupo Syntagma,
ao qual ele pertence. Posteriormente ele mesmo me pediu que escrevesse o texto de
apresentação do CD Tente descobrir, da
Marimbanda, um dos grupos musicais que Heriberto ajudou a fundar. O primeiro deles
me parece ter sido o Cheiro de Choro, em Bruxelas, quando lá residiu na primeira
metade dos anos 1990. Na Bélgica deixou gravado o CD Music of Latin-América, ao lado do violonista Pierre-Paul Rudolph, com
repertório dedicado à obra de compositores latino-americanos, dentre eles Astor
Piazzolla, Gabriel Senanes, Garoto e Celso Machado. Sua formação musical mescla
erudito e popular, incluindo jazz e improvisação. Foi aluno de Baudoin
Giaux, Philippe Bernold e Jean-Pierre Rampal. Atualmente é professor do Curso de Música da UECE (Universidade
Estadual do Ceará) e do Festival “Música na Ibiapaba”. Finalmente conseguimos nos
encontrar para esta entrevista, já de muito planejada. Não é somente ao tocar que
Heriberto Porto irradia intensa paixão. É possuidor daquilo que eu chamo de volúpia
de viver. Sua música o garante, mas também suas atividades incessantes e este nosso
diálogo.
FM
| De que maneira a música
começa a fazer parte de tua vida?
HP
| Desde cedo fui cativado
pelos sons, apesar de não pertencer a uma família de músicos. Nasci em 1964 e morei
toda a infância em Aracati, no interior do Ceará, quase na beira do Rio Jaguaribe,
em uma casa grande cheia de tamarineiras no quintal. Lembro que por volta dos sete
anos ouvi na televisão, um minúsculo preto e branco que só transmitia a Tupi e a
TV Ceará, o “Brasileirinho” com Waldir Azevedo, e essa música me deixou fascinado,
fiquei parado um tempão a escutando. Eletricidade pura. Aí aconteceram várias coisas:
achei uma escaleta que meus irmãos tinham ganhado de meu pai e comecei a soprar.
Saía um som bem definido e também um monte de formigas que sempre continuaram a
morar lá. Tenho gravada até hoje na memória a altura das notas deste instrumento.
Daí a importância de se começar cedo a música para a aquisição do chamado “ouvido
absoluto”, que nada mais é do que a capacidade de identificar os sons, de lembrar
deles. A minha casa era meio rota para uns mochileiros hippies que queriam chegar
ao Cumbe, um lugar meio pré-Canoa Quebrada. Um deles deixou de lembrança uma flauta
doce. Um dia um vizinho chegou na casa ao lado, era um militar da marinha e ficava
tocando trompete, eu pegava a escaleta e através da parede tentava um diálogo com
ele. Depois comecei, já em Fortaleza, umas aulas de flauta doce no colégio. Eu tinha
13 anos. Na época participei da Fundação de uma Orquestra da Catedral, na época
do Cardeal Lorscheider. Era a orquestra Fratelli fundada pelo Frei Wilson.
Muita gente começou música
por lá. Daí para a flauta transversal foi um pulo. Na Orquestra estudei uns três
anos violino, mas quando cheguei na Bélgica, em 1983, tive de parar, pois tinha
de dar conta de muito estudo e dois instrumentos era demais.
FM
| Temos aí uma admirável
série de fatos interligados, a magia de notas (dados) que iam sendo tocadas por
um acaso objetivo, preparando e definindo o teu ouvido absoluto. Agora, além de “Brasileirinho”, recordas alguma outra
música marcante neste primeiro momento, até a tua entrada na Orquestra da Catedral?
HP
| Quando eu tinha doze anos
morreu meu pai, também Heriberto, e foi aí que meus irmãos mais velhos Rui e Márcio
vieram embora de Brasília, onde moravam. Trouxeram com eles discos que para mim
serviram como uma verdadeira formação musical: Chico Buarque, Milton Nascimento
– “Olhos nos Olhos”, “Mulheres de Atenas”, “Milagre dos Peixes” –, tinha também
o rock dos setenta, o progressivo, Gênesis, Jethro Tull, Focus. Além dos discos,
vieram livros: Maiakovski, Kafka, Rilke, Neruda e Lorca, juntamente com os jornais
subversivos Cidade Livre, Le Monde; tudo aquilo era o despertar para
outro mundo além deste do rio, dos bichos e pescarias. Época de ditadura, eu me
sentia importante com estes livros, apesar de não entendê-los muito bem. Também
a partir dos 15 anos comecei a ouvir Miles Davis, Weather Report, John McLaughlin,
a turma do jazz– rock que fazia sucesso na época.
FM
| O que exatamente propiciou
a ida para Bruxelas?
HP
| Foi o trabalho com a Orquestra
Fratelli. Como eu era o sub-regente da Orquestra, na pessoa do Frei Wilson, quis
buscar uma bolsa de estudos para eu poder fazer meus estudos. Na Bélgica morava
Frei Hermínio Bezerra (hoje no Vaticano), que fazia doutorado e serviu de contato
para eu poder ir. Com 18 anos fui encontrar lá uma família que me acolheu como um
filho, virei “le troisiémme” da família Caspar em La Hulpe, uma cidade de 8.000
habitantes na beira da floresta com castelos e uma igreja de 1230.
FM
| Na Bélgica intensificas
o estudo de música erudita, passas a ter contato com o jazz, e inclusive tu reúnes
um grupo, Cheiro de Choro, mais especificamente dedicado à música brasileira. Cultivavas
desde então uma completa ausência de fronteiras, aqueles limites clássicos entre
o erudito, o popular, o contemporâneo. A que atribuis esta postura tão livre?
HP
| Acho que foi devido a
essa primeira formação, às coisas que eu gostava de ouvir. No Conservatório de Bruxelas
tive de dar duro para enfrentar os primeiros concursos, então passei uns quatro
anos só tocando música escrita, antiga e moderna, as coisas do repertório de flauta,
muitos franceses, Fauré, Jolivet, Gaubert, Honneger etc. Depois do primeiro diploma
(primeiro prêmio de flauta) foi que reencontrei o amigo Henri Greindl, músico belga
que havia regressado da Califórnia. Assim surgiu o Cheiro de Choro. Na época não
conhecia muita música brasileira. O grupo foi uma escola. Aí tive contato com o
choro, o baião, a improvisação. Até hoje o grupo resiste e gravou outros CDs, além
do primeiro que eu fiz com eles. Atribuo esse ecletismo a uma busca pessoal por
linguagens diferentes, ao lado da necessidade de se conseguir mais trabalho. Com
a música brasileira eu podia trabalhar mais, me destacar na Bélgica. Fui estudar
improvisação livre primeiro, tentando quebrar mais radicalmente com certos paradigmas
do erudito, conheci o maravilhoso Fabrizio Cassol (do trio Aka Moon), depois fiz
o Conservatório de Bruxelas, na secção Jazz, com Steve Houben. Enfim, no começo
achava que eu tinha de me definir: sou um músico clássico ou popular? Depois vi
que esta indefinição poderia ser uma forma, uma maneira, algo difícil, porém muito
boa. Tocar de tudo um pouco, ou muito, provar das linguagens, assumir os personagens,
como um ator que consegue representar Molière e Pirandello. Hoje imagino como misturar
tudo isso num só trabalho: a música antiga com improvisações e elementos brasileiros.
FM
| Isto seria magnífico.
Há neste sentido um bom caminho preparado pelo Hermeto, e ampliado por alguns de
seus músicos, a exemplo do Jovino dos Santos e o Itiberê Zwarg. Mas aí o plano não
envolve propriamente o que chamas de música antiga, e sim uma mescla de elementos
brasileiros em ambiente jazzístico. Agora, eu preciso ainda que me contes o desdobramento
deste largo período na Bélgica e o que exatamente te levou a regressar ao Brasil,
a Fortaleza.
HP
| Recentemente tomei conhecimento
do trabalho da Orquestra Itiberê; já tinha ouvido falar, mas quando ouvi foi um
susto. É uma das coisas mais interessantes que se tem feito no Brasil na música
instrumental. Não só o som que é livre, aberto, mas o fato dele trabalhar com muitos
jovens, é muito bonito. Eles publicaram as partituras, o que é ótimo, tornando mais
próxima ainda a música deles. Depois de 12 anos na Bélgica eu tinha que me decidir:
ou tentava ficar por lá ou voltava. Mas a vontade de tentar o Brasil, procurar as
fontes, conhecer melhor a música foi mais forte. Não foi fácil encarar a volta,
como seria o trabalho aqui, essas preocupações. Na época conheci a Maria Novais,
Nazinha, minha esposa e aí foi definitivo: vou voltar e casar.
FM
| O ambiente encontrado,
no que possui de necessários vínculos entre arte e política cultural, te anima ou
desencanta? O que tem sido possível concretizar aqui e, dentro das impossibilidades,
quais os obstáculos reais, ou seja, a causa e não os efeitos?
HP
| Primeiro as conquistas.
Aqui pude realizar muito, fazer coisas muito boas na música. Dar continuidade ao
Grupo Syntagma foi uma delas. É uma proposta muito interessante esta dos vínculos
da música nordestina com a música europeia antiga. Depois veio a Marimbanda, outro
estilo, o da música instrumental, porém foi um grupo que marcou a cena musical local.
O engraçado foi o susto que as pessoas levaram quando o grupo surgiu. Como é que
tem um grupo assim, tão bom, no Ceará! É até um pouco o preconceito da imprensa
do sul que resplandece. O bonito do grupo foi conseguir esta mescla de universos,
gerações, o mestre Luizinho Duarte e toda sua vivência musical; o jovem Ítalo Almeida
em seus 19 anos; o Primata, um super-talento do baixo; e eu, um pouco a cereja do
bolo, na lapidação, no cuidado em fazer bem, de produzir CDs e shows.
Outra coisa boa foi entrar
no corpo docente da Universidade Estadual do Ceará e poder realizar o sonho de multiplicar
os conhecimentos, de repassar para os mais jovens o aprendido na escola e também
na vida. Sobre as relações da arte com a política cultural, são outros quinhentos.
Aqui temos algo como ciclos em que a cada quatro anos se vê uma nova equipe na administração
estadual e municipal e às vezes as políticas de sucesso não têm continuidade. O
projeto de uma orquestra no Ceará, por exemplo, já tem 10 anos e não foi adiante.
A única existente, a orquestra de câmera Eleazar de Carvalho, conseguiu se manter,
à força de muito trabalho e boa gestão, mas enfrenta grandes dificuldades, principalmente
orçamentárias. Tem horas em que penso: se um dia existir aqui uma boa escola, de
formação básica, democrática, e uma orquestra profissional, não vai ser na minha
vida, não alcançarei isto, é quase uma certeza. Mas guerra é guerra, e seguimos
na luta. Hoje se reconhece a importância da cultura para um povo, um país, todos
concordam que é a essência desse povo, sua riqueza e sua alma.
FM
| Não adianta evocar uma
ação isolada, justamente considerando sua falta de continuidade. O acerto então
converte-se em outra faceta do erro, não criando perspectivas para desdobramentos,
o que pode inclusive ter uma leitura de oportunismo auto-referencial da parte, por
exemplo, de um secretário de cultura. Não te parece um contracenso, Heriberto, que
sendo o Brasil um país essencialmente musical, a música seja tão desassistida em
termos de formação para a juventude?
HP
| Eu acho que temos uma
grande carência de escolas. Percebo que nelas se aprende muito dentro da sala de
aula e muito mais nos corredores, nas cantinas; é lá que surgem os grupos, as novas
ideias. Os jovens amam as artes, a música, esta sim é uma “droga” boa, mas sempre
têm de ir para outros centros, outros países para estudar, desenvolver e até trabalhar.
Este foi o motivo que me fez ir estudar fora e que faz com que todo ano muita gente
saia do país, do estado e da cidade. No Ceará não tem uma só escola de música de
formação de base para jovens. Temos os famosos “projetos” que tentam suprir isto.
Hoje mesmo encontrei um jovem violinista que está postulando uma bolsa para os EUA
e foi me ver na Universidade para ter alguma orientação. Às vezes se diz de um músico
brasileiro: “que grande talento, um virtuose”. Mas percebo que só o talento não
é tudo, falta referencial; sem orientação, o músico fica a fazer “notas rápidas”,
o que é uma visão herdada do Séc. XIX. Frente a esta situação, de falta de escolas,
estou indo conversar com o novo Secretário de Cultura, junto com colegas da UECE,
para propor algo mais consistente para nossa região.
FM
| Evidente que o dilema
se verifica em todo o país, situação que se agrava pela própria falta de sensibilidade
da parte de um ministro da cultura que sempre nos pareceu ser alguém ligado à música.
O que seria este “algo mais consistente” que artistas poderiam propor à administração
pública?
HP
| Uma coisa que acontece
e que as pessoas criticam é a política de eventos, festivais, feiras, encontros.
Apesar de achar que a gente tem de fugir de grandes formalismos, estruturas anacrônicas,
conservatórios “importados”, consistente mesmo seria uma escola, ou escolas, é claro,
que oferecessem ensino de instrumentos, de música, de composição, de criação.
FM
| Refletindo agora sobre
o ambiente da música instrumental no Brasil, me parece que esta se encontra bem
fortalecida e diversificada, com algumas apostas ousadas, bem ao contrário do ambiente
da canção, que já de muito está estagnado. Vou me referir a alguns músicos e grupos,
porém antes gostaria de sentir uma avaliação tua do ambiente geral.
HP
| Sempre tento acompanhar
o movimento da música instrumental. Vejo que existe um público fiel a este estilo.
As pessoas comparecem aos shows, compram discos, fora do grande mercado a música
instrumental resiste. Muito da nossa música instrumental, aquela mais ligada ao
Jazz, é a continuação da onda que surgiu nos anos 1970, como os trios Zimbo e Tamba,
muitas orquestras, tantos grupos que junto à Bossa Nova faziam um instrumental de
qualidade. Era a era do “balanço”. Lembro também do Quarteto Novo, do Hermeto e
Heraldo; depois veio Medusa, Pau Brasil e Cama de Gato nos “80, Antonio Adolfo,
Luis Eça, Egberto Gismonti, enfim, tanta gente boa que deixa aí um exemplo de música
de excelente qualidade e interesse para os novos que estão surgindo ou já surgiram
há alguns anos. Há selos bem solidificados, A Maritaca, o núcleo Contemporâneo,
a Acary da Luciana Rabêlo e Maurício Carrilho. Se a gente falar do choro já é um
universo em si.
Só no Ceará: desde Sátiro
Bilhar (um grande boêmio e violonista dos princípios do Choro), aqui tivemos um
celeiro de bons instrumentistas e compositores. Terra de Humberto Teixeira, Lauro
Maia, Mozart Brandão, Eleazar de Carvalho e Zé Menezes que, desde a década de 1940,
deram sua contribuição para a consolidação da linguagem musical brasileira. Brilharam
especialmente no Choro violonistas como Francisco Soares, Nonato Luiz, Aleardo Freitas
e Zivaldo Maia. Hoje, apesar da lógica de mercado privilegiar outros estilos, esta
tradição musical vem sendo mantida por compositores contemporâneos que têm tornado
vivo este estilo tão representativo da nossa música. Podemos citar alguns: Adelson
Viana, Carlinhos Patriolino, Aroldo Araújo, Luizinho Duarte, Carlinhos Ferreira,
Tarcísio Sardinha e Ítalo Almeida. Mas eles são mesmo resistentes, não têm espaços
para mostrar as composições, com tão poucos grupos atuando. Quando se vai ao Rio
ou Brasília, lá o choro vive hoje um verdadeiro renascimento, com grandes intérpretes
tornando-se célebres e escolas de choro formando novos talentos. No entanto, se
vê na maioria das produções uma supervalorização dos instrumentistas e uma repetição
dos padrões do choro de antes de 1940. O choro foi um gênero que se renovou graças
aos grandes autores como Radamés Gnattali, Heitor Villa-Lobos, Tom Jobim, Garoto,
Hermeto Pascoal e Sivuca. Uns chamam de choro-jazz, coitados, atrás sempre dos rótulos;
eu chamo de música ousada, boa. Esta é que tem de ser cultivada. Foi aí que as formações
se diversificaram, se libertando do tradicional regional. Hoje temos grupos até
no Japão, na França e na Bélgica, no mundo todo. O choro só se renova e pode sobreviver
como um estilo atual e vivo quando recebe as boas influências do jazz, da música
contemporânea, do flamenco etc. Wagner Tiso, Leandro Braga, Guinga, Hermeto e Paulo
Moura têm mostrado esta via atual do choro. Estou pensando num show só com choros
contemporâneos para abril deste ano. É quando temos as comemorações do Dia do Choro,
aniversário de Pixinguinha.
FM
| Acreditas então que não
está havendo renovação do choro, apesar de sua maior presença, do surgimento de
novos músicos etc.? Há todo um trabalho de composição da parte de músicos como Jovino
dos Santos Neto, Henrique Cazes, Pascoal Meirelles, Carlos Malta, que me parece
deve ser visto como renovação e não apenas como mera “repetição dos padrões do choro”.
Não te parece?
HP
| Justamente. Concordo.
Graças a esta turma maravilhosa, a estes nomes incríveis, o choro tem se renovado.
Mas o que a gente vê muito são os velhos regionais, as imitações baratas do grupo
Época de Ouro; isto acontece nos jovens que vejo pelas escolas. É uma questão difícil:
o choro já é um gênero extremamente difícil, tecnicamente, uma música muito elaborada,
requer muito estudo, então até se conseguir um jeito mais moderno, mais relaxado,
fica mais difícil ainda. Imagine improvisar em cima do choro. É algo muito complicado.
Mas é este desafio que devemos levantar. A música vocal parou, estagnou, pouca coisa
nova está sendo proposta. A gente tem que pesquisar, os bons novos estão aí, mas
a mídia esconde muito. Ao mesmo tempo a Internet disponibiliza uma verdadeira discoteca
para quem gosta de pesquisar. Na música instrumental também acontece esta estagnação.
O jovem pianista quer tocar como Chick Corea, que é referência, mas só com muita
busca ele vai conseguir propor algo interessante, que seja dele. O Radamés Gnattali
tinha uma maneira suingada, isto nos anos
1950, de fazer choro, muito cromatismo, deixou uma obra vasta a ser explorada. Os
arranjos que ele fazia para a Camerata Carioca, para a Orquestra de Cordas Brasileira
do Henrique Cazes são obras primas. Fiquei impressionado, como todo muito, ao ouvir
o Yamandú Costa, algo fora dos padrões. Ele com Paulo Moura ou Armandinho é muito
bonito.
FM
| Como situarias dentro
desta nossa conversa as composições de Ítalo Almeida ou Luizinho Duarte, a partir
do que está registrado nos CDs da Marimbanda?
HP
| O Luizinho é o grande
compositor do grupo. Ele compõe muito, sempre. As suas composições têm algo de Manuel
Bandeira ou Carlos Drummond, falam bonito de coisas simples, os temas são fortes,
muito samba, frevo, choro e principalmente os baiões animados que são a cara do
grupo. O Ítalo é mais rebuscado, tem uma linguagem mais jazz, harmonias ricas e
ousadas. Antes a gente tinha o Primata, que é um excelente compositor. No primeiro
CD, hoje difícil de encontrar, tem várias músicas dele. O Aroldo Araújo, que foi
baixista na Marimbanda, também é um grande compositor, pouco tocado, muito sensível
e rico.
FM
| Dificuldades oriundas
da política e do mercado não seriam bastante ampliadas pela própria indiferença
da classe artística, sua ausência de responsabilidade, falta de autocrítica etc.?
HP
| Existe uma falta de organização
dos músicos, principalmente nesta parte do planeta. A gente vê que quando o pessoal
se organiza, forma associações, elabora projetos, enfim, quando existe um trabalho
conjunto a coisa tende a melhorar.
Aqui a gente não tem nem
um sindicato para lutar por condições dignas para o músico. A OMB (Ordem dos Músicos
do Brasil), a gente conhece de muito tempo. Não se vê ações. Neste momento estou
tentando reunir os músicos profissionais daqui de Fortaleza para a gente discutir
estas coisas. É muito difícil, o pessoal toca por qualquer cachê e diz que tem de
ser assim, pois do contrário vai outro mais novo que faz mais barato. Existe no
ar um “pra que?”, um “não vai dar certo”, que mina qualquer iniciativa positiva
de se tenta mudar as coisas. O mercado se aproveita disto e explora o músico e os
artistas em geral. Muita gente está rica às custas dos nossos bons e tão pouco valorizados
músicos. Mas o importante é imaginar: que música boa se pode ouvir hoje? Que trabalho
ainda é possível? Como é maravilhoso tocar, ouvir, amar a música. Vamos tirando
as cartas da manga até elas se esgotarem.
PARTE 2 | O fôlego ainda tem sete gatos vivos dentro de si
FM
| 17 anos após a realização
de nosso primeiro diálogo, eu quero retomá-lo justamente pelo último tema. Independente
de teus esforços, de um desdobramento relevante de teus cuidados quase abnegados
com a pesquisa e produção de música em suas instâncias eruditas, populares e instrumentais,
o que mudou nesse período no que diz respeito ao aparato institucional e ao comportamento
da classe musical?
HP | Meu querido Floriano, foi muito prazeroso
retomar esse contato, depois de tanto tempo, e ao mesmo tempo confirmar a proximidade,
a conexão, como se tivessem se passado só 17 dias e não 17 anos. Também foi bom
refletir sobre o que era o nosso mundo naquela época e como o vemos hoje, principalmente
em torno da arte da música. Sobre a parte institucional, acompanho principalmente
a cena cearense, mas participo também do Fórum Nacional da Música que este ano se
fortaleceu para lutar por uma agência nacional da música e dialogar com o MinC e
a Funarte. A respeito do tratamento dado à cultura no Estado do Ceará, é uma situação
complexa. Enquanto para o Brasil o Ceará representa um oásis de resistência contra
os ataques neofacistas, a gente aqui acompanha e observa o fortalecimento de uma
política que vem desde os anos 1990. Nos ambientes institucionais temos uma atuação
forte dos profissionais da cultura, dos gestores, que pregam o diálogo e a inclusão
mas parece que é só para eles esse diálogo, entre eles, “nós com nós mesmos”, com
pouco diálogo com os artistas. Em vez de uma figura pensante, que viesse com uma
visão mais abrangente, da nossa cultura (penso em figuras como Gilmar de Carvalho,
que jamais aceitaria um cargo, mas que viveu cada canto, cada grito e rito ) , temos
hoje “gestores”. As OSs (Organizações Sociais) dominam o campo cultural, numa perpetuação
da privatização dos órgãos e ações públicas.
Desde 2014 faço parte
da diretoria do Sindimuce (Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado do Ceará),
trabalho difícil, de diálogo e conversas com a classe trabalhadora, que nem sempre
se vê como tal, e com as instituições, prefeituras, governos, deputados e vereadores.
A pandemia mostrou como é precária a situação da música. O Sindicato atuou como
intermediador entre a sociedade e os músicos, para conseguir auxílios e milhares
de cestas básicas. Era a ocasião de uma tomada de consciência de classe. “ Se paramos
de trabalhar, voltaremos somente sob melhores condições”. Não foi assim e os músicos
voltaram a se apresentar por comida e por “vitrines”. Mas dentre as conquistas quero
destacar a mudança na lei do silêncio, municipal, que agora não prejudica o músico,
com apreensões de instrumentos e responsabiliza os estabelecimentos. Elaboramos
propostas para os governos estaduais e municipais, sugestões construídas em diálogos
com vários setores da cultura, entregamos, protocolamos e nunca responderam. Mas
uma das frentes de lutas era as escolas de música, que não tínhamos. Agora temos
uma Escola Municipal de Música, ligada à Vila das Artes. É pouco ainda. Nos equipamentos
faltam equipamentos, falta pessoal, faltam pianos. Não temos uma só orquestra profissional
e continuamos a única cidade desse porte, no mundo, a não ter uma orquestra. A lista
é extensa, nem cabe aqui.
FM | Queria conversar sobre teu instrumento
de disposição existencial: a flauta. Quais as raízes de teu interesse pelo instrumento
e aqueles músicos que te trouxeram até aqui? Além deles, penso em teus contemporâneos,
como Antonio Carrasqueira, Amy Porter, Pierre-Yves Artaud, Carlos Malta, Jasmine
Choi, Gro Sandvik, uns mais velhos, outros bem jovens, ligados à música de câmara,
palestrantes, arranjadores, produtores, e até incluo aqui um desses pais grandes,
o irlandês Ian Anderson, enfim, lista infinita, como o instrumento chegou a teus
lábios e como dialogas com teus comparsas de sopro…
HP | Eu comecei com a flauta doce e logo ganhei
uma transversal por volta de 1980 e também um violino, então eu tocava os dois e
o grande nome, o “homem da flauta de ouro” era Jean-Pierre Rampal. Minha primeira
banda foi a banda Chá de Flor do Batista Sena, João do Crato, Ronald Carvalho, eu
era o caçula desse grupo de “desbundados”, psicodélicos, maconhistas (é claro).
Recentemente nos reencontramos, sem o Batista, que faleceu, e relembramos das músicas.
Muito bonitas, blues, baladas, baiões na onda do Perfume Azul e Pacheli Jamacaru.
Vai ter um documentário sobre o Batista que era também um grande artista plástico.
O visual da banda era tão “os malucos” que tive problemas na hora de conseguir a
bolsa de estudos para ir para a Bélgica. A bolsa vinha de um projeto da catedral
de Fortaleza onde eu tocava a música clássica. Não ficava bem para eles ter o “jovem
maestro” numa banda de malucos. Era tempo de ditadura, militares, polícia nos “tetéus”
e “camburões” dando “bacurejos” em toda esquina.
Mas voltemos para a flauta
mágica. Considero muita sorte ter este instrumento como minha forma de fazer música
porque ele tem essa coisa do sopro desde a antiguidade, desde os neandertais, então
com a flauta você se conecta com culturas diversas, andinas, amazônicas, Xingu,
árabes, indianas, chinesas, alpinas, em toda cultura tem as flautas, como uma dádiva,
um contato com a magia, com a festa. O Carlos Malta, o “escultor dos ventos”, ele
carrega essa tradição, mostra o “pife”, a “dizi” (chinesa), a flauta baixo de uma
forma muito bonita. A flauta no caso do Brasil participa de uma uma tradição que
inicia com Joaquim Callado, considerado um dos consolidadores do gênero choro, passando
por Pattapio Silva, Pedro de Alcântara, Pixinguinha, Benedito Lacerda, Dante Santoro,
Carlos Poyares, Copinha, Altamiro Carrilho e muitos outros, até os dias de hoje
com muita gente continuando essa tradição: Dirceu Leite, Antônio Rocha, Toninho
Carrasqueira, Celso Woltzenlogel, Mauro Senise, Carlos Malta, Hermeto Pascoal, Teco
Cardoso, Dudu Oliveira, Sergio Morais, Sergio Barrenechea,Maiara Moraes, Andréa
Ernest Dias, Mariana Zwarg, Mauro Dias, Artur Andrés e Alexandre Andrés dentre outros.
O Toninho Carrasqueira já sinaliza que essa flauta é diversa e transita pelos gêneros,
Choro, Samba, Baião e a música erudita. Ele diz no seu livro: “é interessante notar
que, como vimos, desde muito tempo a flauta brasileira é popular e erudita. Assim,
no que diz respeito aos flautistas, essa tão propalada barreira nunca existiu”.
O Toninho é esse músico passarinho passeador dos estilos, iniciando sua carreira
tocando em orquestras e gravando música erudita europeia, estudou com renomados
mestres franceses e com o tempo, passou a gravar e a publicar choros e colocar este
e outros gêneros brasileiros em sua metodologia. Ele faz parte dessas minhas inspirações,
na performance, na pesquisa e no ensino. Nosso último contato foi quando ele esteve
na banca de doutorado da minha filha Mathilde, na Unicamp. As observações dele são
sempre muito perspicazes, interessantes, instigantes.
FM | Com a morte prematura do Luizinho Duarte,
a Marimbanda – esse enxame de prazeres estéticos, nome cujo radical é um inseto
chamado marimbondo, que tanto é uma dança de roda ao som de percussão como o nome
que os portugueses davam aos brasileiros por ocasião da independência do Brasil
–, como o grupo criado por vocês se manteve na estrada? Imagino que Luizinho tenha
deixado na gaveta inúmeros temas inéditos. O que mudou na formação do grupo e em
sua concepção criativa? Outra pergunta que insiro aqui diz respeito à repercussão
do grupo dentre e mesmo fora do país.
HP | A Marimbanda se tornou um templo para
mim e para os colegas que fazem parte deste grupo. É o templo da música duarteana. Marimbanda tomou a decisão de
seguir o caminho começado pelo mestre Luizinho, para tocar sua música. É um grande
desafio pois ele deixou mais de 500 composições, para falar das registradas. Como
tocar tudo isso? Que músicas gravar? Num primeiro momento, em 2022 e 2023 trabalhamos
arranjos novos de músicas que havíamos gravados. Arranjos novos e instigantes do
Thiago Almeida que sinalizavam a nova fase do grupo.
O baterista Michael da
Silva foi convidado a ser a bateria do grupo, não só por conhecer, acompanhar e
estar próximo da gente há muitos anos, mas por ter uma proposta artística, musical
interessante e por já ter uma grande cumplicidade com o Thiago. É muito instigante
a forma com que Michael da Silva usa a bateria. Ele não a vê somente da forma convencional,
marcando o ritmo, acompanhando, mas a usa como um instrumento de várias possibilidades
e sonoridades. A sua bateria faz a zabumba, faz o pandeiro, atabaques e diversos
instrumentos. É uma bateria viva, que além do ritmo, dialoga com as harmonias e
melodias, uma reverência e referência à forma de tocar de Luizinho Duarte. Os arranjos
de Thiago deixam espaço para esta expressividade e criatividade do músico. Michael
toca a bateria de forma inusitada, com as mãos e de forma percussiva (sem se privar
das baquetas). Nessa época estávamos com um novo membro, desde 2020 o Pedro Façanha,
contrabaixo acústico. Foi uma mudança sonora, Luizinho era encantado com o instrumento
e o Pedro era muito bom.
O Luizinho tinha muitas
facetas, transitava por vários gêneros, principalmente os brasileiros como o samba,
o choro, o baião, o frevo, a bossa nova, mas não somente. Às vezes ele nos surpreendia
e vinha com um tango, uma música afro-caribenha, uma valsa-jazz, e muitos funks,
aqueles no estilo dos anos setenta e oitenta. Neste álbum, a Marimbanda passeia
por três gêneros musicais: dois sambas, dois baiões e dois funks, além de “Abracadabra
2”, que é um tema bastante diferente dos outros, com passagens experimentais e misteriosas
e uma parte bem iluminada, ascendente.
Luizinho tinha uma vertente
de forrós e baiões que viraram clássicos. “De Frente ao Baião”, “Tudo Vem” e “Eu
Quero Baiãozar”, gravados pela Marimbanda, são exemplos dessa pegada nordestina
dentro de sua obra. “No Forró do Barro Seco”, uma das faixas de “Lindo Sol”, é um
arrasta-pé ligeiro e muito animado. A participação do mestre da sanfona, Adelson
Viana, é um momento muito especial deste álbum. Adelson é um colaborador constante
da Marimbanda desde o primeiro disco, quando gravou o tango “Morangotango”.
O arranjo faz alternar
os andamentos da música, passando do presto muito rápido para o forró moderado,
numa brincadeira. No final é uma criação musical coletiva, com improvisos livres.
Michael da Silva faz a zabumba na bateria explorando ao máximo as nuances e sutilezas
do instrumento
“Um Samba Louco” é um
samba muito rápido, bem a cara de Luizinho, que tocava e compunha sambas rápidos
como ninguém. “Chega de monotonia” de Luizinho e “Marimbanda” de Adriano Giffoni
foram gravadas assim, a 180 batimentos por minuto.
Quem ouve esse trabalho
recente percebe uma mudança no grupo. Não queremos fazer um cover do que foi a Marimbanda, com o grande
baterista que foi o Luizinho, mas buscamos estar sempre olhando para frente e buscando
nossa sonoridade da forma mais autêntica possível.
FM | Ouvindo o grupo de tua filha, Mathilde
Fillat, pensando em teus encontros com Carlos Malta, não me escapa da memória o
tema das grandes famílias musicais, como no caso de um Frank Zappa ou de um Hermeto
Pascoal, esses músicos notáveis que criam à sua volta um ambiente de comunicação
intensa e desdobramento estético. Nivaldo Ornelas e Steve Vai, por exemplo, frequentaram
respectivamente as famílias Pascoal e
Zappa. Estes dois grandes pais também
se aproximam pela inesgotável fonte de fusões que experimentaram, fascinante escola
de fartura estética. Queria saber a tua opinião acerca de ambos, que outras figuras
igualmente radicais podemos encontrar na música, e como te sentes tu, em especial
no caso do Hermeto.
HP | O Hermeto Pascoal é desde muito o maior
músico do mundo e é incrível estar neste mesmo mundo/tempo que ele; perceber o quanto
ele irradia sua música para o mundo inteiro. A “escola Jabour” hoje é enorme e temos
muito a aprender com sua “harmonia universal”. Daquele “ Hermeto Pascoal e Grupo
“ dos anos oitenta e noventa temos o Carlos Malta que traçou seu próprio caminho,
mostrou para o Brasil um “Pife Muderno”, um “cabaçal universal”, exemplo para todo
o Nordeste. Trabalhar com ele, Marimbanda e Irmãos Aniceto no DVD “Epifania Kariri”
foi um grande aprendizado, desafiador. Toda aquela turma, Jovino, Márcio Bahia está
aí produzindo muito, mas a pessoa que levou adiante a “escola Jabour” foi o Itiberê,
que está com o Hermeto desde 1977. A Orquestra Família formou muita gente que segue
formando muita gente, garantindo a continuação desta música livre, a música do Hermeto.
O Itiberê segue dando oficinas pelo mundo, criando “orquestras famílias” em vários
continentes e mostrando que a música pode sim ter esse caminho de abertura, totalmente
diferente da vertente Berklee ou do estilo ECM, mais europeu. O filho do Itiberê,
Ajurinã Zwarg é hoje o baterista do grupo do Hermeto, a Mariana sua filha flautista
trilha uma carreira incrível no Brasil e na Europa. Saídos da Orquestra Família
e semeando a música universal pelo mundo se destacam a Carol Panesi, violinista,
compositora, Renata Neves, também violinista, Ranier Oliveira, sanfoneiro do Crato,
Rodrigo “Digão”, baterista, Bruno Aguilar, baixista, Vitor Gonçalves, pianista e
sanfoneiro em Nova Iorque, Joana Queiroz, incrível clarinetista, para citar alguns
de cabeça. No sax tivemos os incríveis Vinícius Dorin, saudoso e hoje o Jotapê está
neste lugar que foi do Malta e do Ornelas.
Nivaldo Ornelas é um compositor de alto nível, transitando entre a música
de câmera e a música instrumental, passou pouco tempo com Hermeto e a gente associa
mais ao Som Imaginário, à turma da fusão Minas-Rio, Wagner Tiso, Novelli, Toninho
Horta. É um dos nossos grandes compositores, transitando entre o erudito e o popular.
FM | Sob o selo do que convencionou chamar
de jazz contemporâneo, vimos surgir um afluente interessante que mescla a interação
de solistas com orquestras com várias formações. Penso em uma Maria Schneider Orchestra,
no grupo Snarky Puppy, ambos dos Estados Unidos, e com um tratamento distinto. Assim
como a holandesa Metropole Orkest – que inclusive gravou um disco com Edu Lobo –
ou a francesa-argelina Nesrine, que inseriu tão bem voz e cello em uma formação
orquestral. Os exemplos são vários, vão da Manchester Orchestra até a rapper Meshell
Ndegeocello… Algo sobre o que eu gostaria de te escutar é sobre os caminhos que
o jazz abriu envolvendo um espectro amplo da música instrumental, daquela mais popular
em cada país até mesmo o encontro com o mundo naïf ou folclórico.
HP | É um mundo muito vasto, realmente muitos
exemplos de formações, bandas, orquestras, grupos camerísticos, que promovem essas
mesclas musicais, muitas vezes na fronteira fluida entre o erudito e o popular,
tantos que eu nem conseguiria nem fazer um panorama agora. Minha escuta musical
é bem restrita, ou focada, pelo ofício mesmo de estar tocando e produzindo. Mas
gosto de escutar coisas novas, incluindo as produções mais antigas que eu não conhecia.
Neste momento tenho escrito muito, lido muito (é o trabalho de doutorando) e não
consigo escrever e ouvir música. Deve ser um defeito de profissão, ou um hábito
mesmo. Ainda tenho bastante contato com a produção belga e uma das coisas mais legais
que eu acho que surgiu lá é o trabalho do compositor saxofonista Fabrizio Cassol
com quem estudei. Ele tem um trio desde 1992, o Aka Moon que desde o começo faz
uma música muito forte, cheia de poliritmos e modalismos. Esse trio é um sax, um
baixo e uma bateria e desde o princípio eles dialogam com diversas culturas como
se quisesse absorver a musicalidade “universal” como diria o Hermeto. Pigmeus, indianos,
DJs ( uma big band de DJs), músicos dos Balcãs, da África, da Romênia, o violinista
cego Tcha Limberger), grupos de música contemporânea. Fora isso, ele revisitou Monteverdi,
J. S. Bach, Scarlatti em colaborações com Óperas e Balés, de uma forma inédita e
bem realizada. No final do século 20 ele fazia música para o final do século 21.
Neste final de ano 2024 eu comecei a ouvir o último trabalho do pianista e compositor
brasileiro Felipe Senna. Ele montou um grupo de câmera muito incrível chamado Câmaranóva
com muitos sopros (flautas, clarinetes, fagote, trompete, trompa, sax e eufônio)
e algumas cordas e bateria. É impressionante o álbum Overture, acho que fazia tempo que não chegava pra gente uma produção
musical tão requintada, tão instigante nos arranjos, performance, improvisações. A Léa Freire toca nesse grupo e lançou pelo
seu selo Maritaca. Acho que hoje a música instrumental é essa música que foge dos
rótulos e os músicos estão mais livres: “Sim, podemos tocar erudito e podemos improvisar,
está tudo bem”.
FM | Quando em 1969 Manfred Eicher criou o selo ECM Records, ganhou estrada um
lema interessante: o som mais belo, próximo
do silêncio. O selo persiste, e o silêncio que sempre almejou foi aquele que
abre passagem para a grande revelação. Além da rota inesgotável de músicos que ganharam
o mundo inteiro, também foram feitos alguns documentários valiosos. De algum modo
esse jazz-ECM estabeleceu uma espécie de radical que definiu um público que passou
a ter menos apreço pela música fora daquele ambiente mais experimental?
HP | É muito impressionante o trabalho da
ECM e como continua a produzir desde o final dos anos sessenta. Muita gente do jazz
mas eles lançam também música contemporânea como as obras de Arvo Part e Steve Reich,
dois dos maiores compositores do nosso tempo. Sempre tem essa tópica do silêncio,
da respiração, algo nórdico, dos fjords, do jazz europeu, da improvisação fora dos
padrões do jazz americano. É o selo do Egberto, do Naná Vasconcelos, do Jan Garbarek
e Keith Jarret, mas é muito variado e nele tem muitos americanos como o Pat Metheny,
Dave Holand, Chick Corea. Eu estou aguardando o dia 24 de janeiro quando lançarão
um disco do francês François Couturier, um veterano o piano. Sobre o público eu
não saberia falar, se ele diminuiu ou cresceu, sei que nos anos setenta , quando
eu comecei a comprar discos, era um sucesso mundial.
FM | Quero que me contes em detalhes a origem
e desdobramento de um projeto como este: “Epifania Kariri
com Malta e Anicetos”.
HP | Era um sonho antigo fazer algum trabalho
com esses grandes feras da nossa música. Primeiro era aquela vontade de beber mais
de perto no “exótico”, na “pureza” das bandas cabaçais, visão um pouco “alugada”
e eurocêntrica. Mas por isso mesmo cheguei perto deles, no Bairro da Batateira ,
no Crato em 1998, para fazer uma pesquisa para a UECE. Depois nos encontramos nos
concertos da ORCEC ( Orquestra Eleazar de Carvalho) com os Aniceto que resultou
na gravação de um DVD. Na época fui um “elo” entre os sopros dos pífaros e as fricções
das cordas, eles nem sempre concordavam no quesito afinação. Com esta aproximação
percebi o quanto eles eram musicais, como tocavam bem, como representavam as raízes
de nossa música, do samba, do baião e do choro e ficou a vontade de fazer algo para
tocar juntos, como colegas que se encontram para se divertir. Veio o edital Itaú-Rumos
e tive essa epifania, fazer um projeto que uniria Marimbanda, Anicetos e uma cereja
maravilhosa que é o Carlos Malta, o “cara” do Pife Muderno. Me senti ganhando na
Mega Sena quando fomos selecionados dentre mais de 15.000 projetos. Aí fomos pensar
como seria esse encontro, elaborar os arranjos e planejar o espetáculo que circularia
pelo Cariri, Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo. Em vez de uma simples participação
especial em algumas músicas, o Carlos Malta tocou tudo com a gente. Foram muitos
aprendizados, mútuos. Pra mim foi o encontro de músicos, que amam tocar, tirando
aquele medo de que no folclore não se pode mexer. Hoje o mundo é globalizado e os
Aniceto têm a consciência da tradição que eles representam.
FM | Também quero os detalhes de tua descoberta
da flautista Léa Freire. Imagino que um interesse inicial de pesquisa, que despertou
uma afinidade intensa, e que agora espero se desdobre em parcerias relevantes. Estou
certo?
HP | Certíssimo! A gente se conhece desde
2004 quando ela e o Filó Machado vieram a Fortaleza e rolou um show no Café Pagliuca,
com eles, Luizinho Duarte, Henri Greindl (Cheiro de Choro) e Jr. Primata. (baixista
da primeira formação da Marimbanda). Nos aproximamos mais a partir de 2019 quando
eu a convidei para ser a “madrinha” da Orquestra Transversal da UECE, numa residência
do Porto Iracema das Artes, órgão do Instituto Dragão do Mar. Ela nos presenteou
com arranjos incríveis, lindos, de suas músicas e veio algumas vezes ensaiar com
a gente. Terminamos 2019 gravando em estúdio, ela com a Marimbanda e ela com a Orquestra
Transversal. Em 2021 escolhi a música da Léa como tema do meu projeto de doutorado
que apresentei no programa de pós-graduação da Unicamp. Desde então aprendo muito,
não só sobre a Léa mas também sobre a música brasileira e nossa cultura em geral.
Estudar a Léa é um desafio porque ela é uma transgressora, flautista, compositora,
improvisadora, produtora. Várias vertentes. A partir dos anos 2000 ela começou a
escrever músicas orquestrais, com várias partes. “ Já que eu sou proibida, eu vou
fazer”. E assim chegou num lugar na fronteira da música instrumental, do jazz brasileiro
e da música erudita, de Villa-Lobos, Francisco Mignone e muitos outros. O Quinteto
Vento em Madeira, formado por ela, Teco Cardoso, Tiago Costa, Fernando Demarco e
Edu Ribeiro, com a Mônica Salmaso, voz linda sempre presente, se permite fazer arranjos
rebuscados, trabalhar as formas, dinâmicas, andamentos, compassos, como pouco se
vê na nossa música instrumental.
Eu a considero uma pessoa
muito incrível, com muita coragem para se posicionar, para lutar contra os preconceitos,
desde a família que não queria uma moça “de família” flautista, até no meio musical,
bem machista. Ela fala bastante sobre isso nas entrevistas que fiz com ela, e na
imprensa também: “Já ouvi que mulher não devia se apresentar na noite, que mulher
não compõe”. E completa: “hoje quando perguntam se fui eu mesma quem compôs uma
música respondo sem paciência: foi sua mãe!”
Em entrevista ao pianista Leandro Braga no YouTube, Léa fala de como os obstáculos
se tornaram desafios: “O não é maravilhoso, me obrigou a reagir. Já que não querem
me chamar eu serei “The Boss”, serei produtora de mim mesma”, explicando a opção
de montar uma gravadora ela mesma e de se autoproduzir. A sua gravadora Maritaca
tem mais de 25 anos e já produziu trabalhos incríveis da cena paulista e brasileira.
Arismar do Espírito Santo, Mozart Terra, Silvia Gois, Thibault Delor, contrabaixista
francês, Theo de Barros, um catálogo bem diverso. Para toda uma nova geração de
compositoras, instrumentistas, a Léa representa essa figura feminina na música instrumental.
Tatiana Parra, Thais Nicodemo, Maiara Morais, Joana Queiroz, Erika Ribeiro, Andréa
Ernest, Mariana Zwarg vêem na Léa essa figura “bruxona”. Tem um documentário belíssimo
do Lucas Weglinski, A MÚSICA NATUREZA DE LÉA FREIRE, que circulou em 2024 pelas
capitais e hoje está nos streamings e canais de tv a cabo, sobre a música e a vida
da Léa. Nele a Erika Ribeiro fala assim: “A gente sabe que tem ainda muita coisa
pra ser conquistada. Que ao mesmo tempo que a música da Léa tem uma profundidade,
ela tem um senso de expressão do feminino, muito poderoso, uma profundidade, ela
representa, ela vai num canal de representação muito forte”.
Hoje em dia, além da pesquisa,
estamos tocando juntos, começamos em 2022, em São Paulo, na casa dela, estudando,
detalhe por detalhe, as músicas dela, que são desafios para tocar. E desde então
fazemos concertos, shows em dueto, ela no piano e eu na flauta, em trio com o Fernando
Brandt, contrabaixista de São Paulo, em quarteto com o Michael “Marimbanda” da Silva.
É muito bonito esse trabalho, esse repertório dela. Já fizemos shows em festivais
no Rio de Janeiro, Campinas, São Paulo, Fortaleza, e nesse ano de 2025 vamos tocar
no famoso Festival Jazz e Blues de Guaramiranga.
FM | Volto ao passado, música em conservatório
na Bélgica, estudos de jazz e improvisação, grupos formados ali, discos gravados,
o que essa experiência toda te fez pensar em regressar ao Ceará? Entendes essa tua
opção como um sacrifício que, ao final, tenha se convertido em uma feliz decisão?
HP | É, realmente foi um período muito rico,
os doze anos em Bruxelas, de estudos, de produção, de experiências diversas, de
Choro, de Jazz, de música contemporânea, toquei em óperas, orquestras, teatro infantil
mas no final eu percebi que se voltasse para o Brasil eu teria um papel mais preponderante,
eu não seria mais um dos tantos flautistas que existia na Bélgica, eu poderia criar
uma escola, ter um trabalho mais consistente, e foi exatamente isso que aconteceu.
Foi difícil deixar o lugar que você viveu tanto tempo, mas eu seria sempre um estrangeiro,
um exótico lá. Aqui eu/sou era um cidadão que podia ter um trabalho legal, fazer
concursos, etc. Sem falar que passar oito meses no frio e na chuva, pra alguém do
Aracati ensolarado, não era fácil. Eu brinco que eu comecei a criar musgos e mofos
de tanta umidade. Quando voltei eu era ainda bem um músico erudito, tocando os concertos,
sonatas do repertório da flauta mas aconteceu que aqui pude beber na fonte da música
brasileira, do Choro, do Baião, principalmente com o convívio por 20 anos com o
Luizinho Duarte e a Marimbanda, mas também no Syntagma do Liduino Pitombeira, no
Quinteto de Sopros Alberto Nepomuceno, que fundei, na Orquestra Transversal da UECE
que criei. Então não entendo como um sacrifício aquela mudança, como disse o Tom
Jobim: “lá era bom mas era uma m. aqui é uma b. mas é bom”.
FM | Quando nos sentamos para conversar não
temos problema algum de falta de temas. Esta nossa conversa poderia durar algumas
eternidades. Mas queres mencionar aqui algo que deixamos escapar?
HP | Nenhum tema na cabeça neste momento,
mas vamos marcar um reencontro daqui menos tempo, quem sabe dez anos. Guardo esperanças
que a tão esperada e demorada mudança no mundo possa acontecer daqui pra lá. Ou
talvez estejamos mais e mais dentro do cenário “1984” e “Admirável Mundo Novo”?
Sei que a música é mais que entretenimento, mercado, que ela vai sempre instigar
compositores e intérpretes a buscar seguir na criação musical. E o público sempre
irá aos concertos, às salas, mantendo um ritual que não envelhece, mantendo a magia
de preencher os espaços de sons que nos levam a infinitos lugares.
FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023).
ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 260 | abril de 2025
Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
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