terça-feira, 15 de abril de 2025

NINA MARIA | Barragem da Alma: A poética de Ithana Gomes e os transbordamentos do ser

 


NM | Como se iniciou o seu processo de escrita?

 

IG | Me lembro de caminhar pelo quintal de casa com cadernos e lápis escrevendo músicas e histórias que, (in)felizmente, se perderam no espaço-tempo da minha imaginação. Lembro de me perder na minha própria noção da realidade, hoje, não tenho certeza de que eventos foram reais ou não. Em suma, a escrita se iniciou em minha imaginação, logo depois, ganhou imagens no papel. Mas, apenas 20 anos depois de habitar esse planeta é que realmente entendi que poderia partilhar as minhas ideias e vivências, com corações iguais aos meus e mentes distintas. Quando me entendi enquanto figura mulher, negra e lésbica, entendi que precisava resgatar nas minhas palavras-dores a esperança para transgredir junto a tantas figuras mulheres, negras e lésbicas...

 

NM | De acordo com suas últimas publicações e participações literárias, sua poética versa sobre ressignificar a(s) dor(es), os afetos e a vida. Em sua perspectiva, a poesia pode coexistir como terapia e ofício? Entre o grito e o silêncio?

 

IG | Apesar de habitarmos em uma sociedade capitalista e que capta toda a nossa energia existencial para a produção de lucros aos grandes donos dos meios de produção, ainda sim, como seres humanos cheios de vida, encontramos na arte a lembrança da nossa humanidade. É difícil fazer da arte o nosso trabalho, o nosso ofício, um exemplo recente é a publicação do meu livro, que financeiramente não obtive retorno, pois para ter esse pequeno lucro com o que eu produzo eu deveria me fazer ver, deveria me autopromover, deveria fazer com que acreditassem em mim e em meu trabalho, mas como o fazer? Eu sei que hoje temos as redes sociais que nos ajudam a impulsionar e quem sabe ganhar uma visibilidade, mas essa autopromoção tem que vir acompanhada de uma autoestima, eu confio no que eu escrevo, confio na veracidade dos sentimentos que me guiam diante das teclas do notebook, na tela do celular ou no papel, eu confio e acredito no que falo em minhas poesias.

Mas, seja na gestão do tempo ou na confiança que este trabalho me daria algum retorno financeiro, estou mergulhada em uma sociedade que nos desencoraja ser arte, ser uma artista que não nasceu em berço de ouro e que não haverá ninguém para nos promover. Então, no momento, a escrita é o meu lugar de grito, o meu lugar de silêncio, um lugar para reexistir. E é claro, um manifesto, uma tentativa de provocar, de mudar as estruturas. Quero que ela possa ser um dia, bálsamo para mim e para os que eu olho, no momento ela ainda é um estilete que rasga os band-aid que foram colocados em nossas fraturas expostas.

 

NM | Seu livro de estreia Barragem da alma, lançado em 2023, traz esse título enigmático e potente. A função da barragem é sempre conter e/ou acumular, enquanto a alma é o princípio vital, a vida. Como foi o processo criativo e por que barragem da alma?

 


IG | Eu perdi todas as bases que me sustentavam durante um período da minha vida, hoje, estou tentando reconstruí-las. Acho que todo mundo passa por essa “epifania existencial” em que tudo o que dá sentido a nossa existência é posto a prova, ficamos à deriva, sem saber no que e em quem se agarrar, algumas vezes, é preciso reconstruir novas bases, as minhas foram quase todas reconstruídas e veio num período de total caos para a humanidade, a pandemia. Não tinha onde me apoiar, ninguém estava bem! E foi nessa bagunça, nesse sofrimento, nessa desesperança que surgem os poemas de dores, mas tinha uma fagulha em mim que não me deixava desistir, acredito que ela ganhou força com a escrita, e em meio a esse rio sem margens, eu fui aprendendo a nadar e percebi que poderia me agarrar a novas bases, umas eram bem frágeis, e caíram. Pense no desespero! Já outras, ainda estão vivas. Ainda não sei muito bem como consegui chegar até aqui, é uma incógnita ter sobrevivido em meio a relacionamentos abusivos, insegurança financeira, insegurança alimentar, homofobias, racismos, sexismos e solidão... Dizem que nosso corpo é “programado” para não desistir, acho que essa programação me ajudou. Mas, de algo, eu tenho certeza, escrever não foi apenas o despejo dessa alma ferida no papel, escrever foi e ainda é a criação e o sentido para poder existir!

E sobre o título do livro, bom, na verdade, minha ideia inicial era “Metamorfosis”, que remeteria a essa transformação que eu estava presenciando a humanidade passar, mas a minha própria humanidade também mudar. No entanto, conversando com um grande poeta da minha cidade, ele me sugeriu esse título que surge de um dos poemas, inclusive é o poema que abre o livro, “Barragem da alma” seria essa força que carregam meus escritos, essa energia que é gerada ao ler os poemas, mas ao mesmo tempo estaria se remetendo a docilidade e à esperança que há nessas dores-barragens. E assim , nasce Barragem da alma, um livro com poemas que escrevi não só na idade adulta e durante esse período turbulento que ainda ressoa em mim, mas também nasceu durante a infância e a adolescência, inclusive há poemas que escrevi quando tinha 14, 15 anos, então podemos dizer que é um livro de imaturidades e maturidades, é onde a fusão das dificuldades existências e os sonhos se chocam.

 

NM | No poema “Solitude”, você traz os seguintes versos: reconhecer-se!/Reiventar-se!/ Ter a coragem de ser/Ser e se ter!. Como é se reconhecer como escritora no Brasil tecnológico do século XXI? É um processo solitário ou coletivo?

 

IG | Diferente de outras gerações, a nossa, ali dos nascidos entre 1995 até 2010, mais ou menos, cresceu presenciando e almejando sonhos que pareciam ser possíveis, a realidade se dava de acordo aos relógios de ponteiro, as estações do ano eram percebidas, a vida passava ainda de maneira lenta, poderíamos estudar e conseguir um bom emprego. Mas, ali na adolescência no início da vida adulta percebemos que não estávamos preparados para aquela nova realidade tecnológica, e acelerada. E agora, é preciso uma nova preparação, uma nova consciência, um novo sonho, já estávamos atrasados, pois as gerações anteriores estavam conseguindo se estabelecer com trabalhos e estudos, e as mais novas cresceram e evoluíram juntos com as câmeras, com o novo jeito de se comunicar, de conseguir empregos, de conseguir se perceber no mundo, não éramos uma ilha, conseguiram se comunicar com outros povos e países de maneira muito mais rápida.


Bom, essa minha percepção é de alguém que nasceu e cresceu no interior da Bahia e acreditava que nunca sairia de lá porque ficava muito enjoada andando de carro ou ônibus, uma pessoa extremamente tímida e certa resistência à mudanças, e apesar de encontrar algumas dificuldades em meio a esse famoso século XXI, foi por meio da internet que entendi de onde vinham as dores do racismo, por meio dessa comunidade virtual, vi que existia um mundo cheio de literatura, a internet me possibilitou uma consciência crítica embasada e me mostrou que existiam tantas outras meninas como eu.

Não há felicidade em absoluto com as oportunidades oferecidas pela comunicação virtual, nem uma abominação aos perigos e disputas que as redes criam, enfim, é um caminho que está sendo trilhado e acredito que assim como eu, outros artistas querem tirar dela o melhor proveito e oferecer uma comunhão de ideias e apoio.

 

NM | Quais são os próximos passos e planos da sua poética?

 

IG | Bom, no mundo literário pretendo lançar outros livros, investir em outros gêneros literários também, as ideias ainda estão no campo da imaginação, mas em breve serão concretas. Também pretendo trabalhar com a literatura em ações sociais, são projetos que devem sair do papel ainda este ano.

 

 

AGARRAR-SE À VIDA

 

Tento me agarrar aos meteoros que passam por aqui,

 

Num infinito de emoções,

 

Caio no universo da dor.

 

Busco um chão que me ampare,

Que me sustente,

Grito até perder o ar,

E a garganta sangrar.

 

Que segurem a minha mão;

Busco apenas o direito à vida;

O direito de amar;

O perdão dos que não me entendem;

A bondade dos que me compreendem.

 

Feito farelo que cai da boca,

Me encontro perdida, em pó,

Num abismo sem fim.

 

Mas a minha vida há de findar-se.

No meio desta busca incessante do viver.

 

 

FERIDAS REABERTAS

 

Enquanto eu costurava à força minhas feridas, Era brutal a forma que me rasgavam novamente.

 

Eu só queria fechar,

Cicatrizar,

Me sarar,

Queria a cura.

Porém mesmo saudável,

As sequelas são eternas.

Dizem que fazem parte da vida,

Você amadurece,

Cria anticorpos,

e se torna mais forte.

 

Mas eu não queria ter sido ferida.

 

 


DEPOIS DE MAIO

 

Todos os meses antes eram ansiedade, insônias, medo, desesperança e barulho.

 

Todos os meses depois são esperanças, mas, ainda cheios de medo. Ainda há insônias, outros dias, são cheios de sono

 

Depois de maio,

Voltar não é uma opção. O silêncio é mais forte, Assim como a saudade.

 

 

MÃE

 

É com olhar salgado

Que recordo a minha data de nascimento,

Tive que fazer meu próprio parto,

Rasguei a vagina à procura do novo mundo,

Antes, afogada num útero desconhecido,

Cortei o cordão umbilical que me enforcava,

Saí quase sem vida,

Apesar dos vários abortos,

A vida me brindou com várias oportunidades,

E assim, nasci, cheia de sequelas.

A luz do novo mundo me cegou,

O ar fora da minha mãe me asfixiou,

Fui levada para o colo de minha genitora,

Cega, não me viu,

Não tive leite materno,

Mas não morri de fome,

Me entubaram e me esqueceram lá,

Até hoje, busco o amor da minha pátria-mãe,

Para que me ensine a viver.

 


ENCONTRO

 

Olhar para a imensidão de si mesma,

E se encontrar,

Se encontrar perdida.

Estender a mão para o próprio eu,

Mas não saber para onde levá-la,

Se ver sem direção.

Se ver refletida nos próprios olhos,

Sem poder limpar as lágrimas que se derramam.

Ainda não acabou,

Vamos esperar,

Nos resta esperar,

Enquanto contemplamos nosso caos.

 

 

NOTA

Ithana Gomes é baiana, natural de Santo Estêvão, graduada em Letras com Espanhol, e mestranda em estudos literários pela UEFS. Os poemas dessa edição foram escolhidos pela autora Ithana Gomes e fazem parte do seu libro Barragem da Alma, publicado em 2023 através da Editora Patuá (Brasil). A entrevista foi realizada em fevereiro de 2025.



NINA MARIA (Brasil, 2000). Poeta, editora e curadora literária internacional da revista
Ruído Manifesto. Produtora Cultural (SENAC). Autora e organizadora de cinco livros. Publicada em dozes países. Tem poemas traduzidos para o francês, árabe e espanhol.






ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.



Agulha Revista de Cultura

Número 260 | abril de 2025

Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


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