I
Desmobilizado no final da Primeira Grande Guerra, Giuseppe Ungaretti trabalha na embaixada
italiana e é o correspondente em Paris do jornal Popolo d’Italia, editado por Mussolini. O próprio Duce escreve a apresentação da segunda edição
dos poemas escritos no front, Il Porto Sepulto, impressa em La Spezia,
em 1923. Aparentemente, seria difícil encontrar quem argumentasse que o humanismo extraído
da sua obra e os laços com um
movimento totalitário que se aliou ao nazismo estão em campos separados. Mas não
foi.
Para não ir
além-mar, Pietro Maria Bardi – um lombardo naturalizado brasileiro que em 1930 recebeu
de Mussolini o encargo de dirigir a Galleria
d’Arte di Roma e em 47 concebeu o
MASP com Assis Chateaubriant –, naturaliza
as relações de Ungaretti (e as suas próprias) com o regime no breve artigo Ungaretti
e o Fascismo publicado na Revista da USP (n.37, março/ maio 1998). Na mesma matéria,
o professor Andrea Lombardi considera que tais relações são elementos biográficos irrelevantes para análise
do valor estritamente literário e poético das obras, mas importantes para entender
o contexto de produção dos próprios textos.
E, de fato, o fascismo de Ungaretti não
reverberou no Brasil. Nem enquanto aqui esteve, nem depois. Carinhosamente, Vinicius
o chamava de o menino de mil anos, e no
livro Brigada Ligeira e Outros Escritos,
publicado pela UNESP em 92, Candido o
define: professor, amigo, homem exemplar.
Quem vai à estante
e retira ao acaso entre os livros de Ungaretti a Invenção da Poesia Moderna para ler a introdução de Paola Montefoschi
ou quem folheia as notas de A Alegria escritas
por Cavalcanti, ou ainda o texto de Lúcia Wataghin para as traduções de Haroldo Campos e Aurora
Bernardini dos poemas de Daquela Estrela à
Outra, não encontra reparos sobre a relação do poeta com o fascismo, salvo no
depoimento neutro, mas consciente, de Mario Luzi.
Diante de tantas omissões
que o caso de Ungaretti
ilustra, me pergunto se a cumplicidade, a conivência, a seletividade
dos cancelamentos não seria um fenômeno a ser estudado por nossa indolente
historiografia literária. Especialmente durante o Estado Novo.
Os autores
que trago como exemplo são aleatórios, fazem parte do meu rol de admiração e não
têm comum entre si nada além da tensão ética entre suas biografias e suas obras.
Ezra Pound compõe
os Cantos como se ouvisse os versos nascendo de um fluxo multilíngue de
conhecimento enciclopédico. A erudição é esmagadora. Pound não pretende representar
a desintegração do mundo atual. Ao contrário, ele pretende a universalidade e a
expressa em fragmentos. Sua aspiração estética é abrangente, seu ideal político,
imperativo. Conservador e elitista apoiou o nacionalismo de Mosley na Inglaterra,
de Hitler na Alemanha e de Mussolini na Itália.
…
as ruas de Praga estavam mais uma vez lotadas de jovens dançando. No dia anterior,
um político socialista e um artista surrealista tinham sido enforcados como inimigos
do Estado. Praga com seus cafés cheios de poetas e suas prisões cheias de traidores. E no crematório o que restava
de um socialista e um surrealista, e a fumaça subia aos céus como um bom
presságio, e eu ouvi a voz metálica de Éluard declamando:
L’amour est au travail
il est infatigable.
É sabido que
o Pã de Pașii Profetului está contaminado pela
pureza racial defendida por Lucien Blaga. Parente da esposa do poeta e político fascista
Octavian Goga, Blaga moveu-
se como seu protégé desde 1926, quando
entra no serviço diplomático, até 1939, quando cria o próprio curso de filosofia
na Universidade de Cluj.
Goga, cumpre
que se mencione, foi primeiro-ministro do país pelo período de três meses. Tempo
suficiente para promulgar as primeiras leis antissemitas que retiraram dos judeus
a cidadania romena em 1938.
Mesmo naturalizado norte-americano, o poeta Ióssif Brodky nunca deixou
de sentir-se russo. O ofensivo poema contra a secessão ucraniana To Ukraine’s Independence [1992] foi escrito por um exilado que se considerava expulso pelo regime
soviético, não pela Mãe Rússia. Apesar de homme du monde, Brodsky nunca deixou
de ser um intransigente nacionalista.
II
Devo considerar casos na vida privada?
Com uma frase (I don’t like men who leave behind them a smoking trail of weeping women) Auden condena Lowell a ser lido como um misógino. E é difícil folhear Neruda sem que a filha com hidrocefalia abandonada em um orfanato descontextualize o seu célebre humanismo por inteiro.
Os biógrafos
dão por sentado que Michelangelo Merisi cresceu revoltado e agressivo
porque, quando tinha apenas
seis anos, a peste bubônica levou a maioria da sua família, seu pai, um arquiteto do marquês Caravaggio, inclusive.
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Devo, portanto, endossar o maniqueísmo de Ruskin quando diz:
O ignóbil
Caravaggio distingue-se apenas pela sua preferência pela luz das velas e pelas sombras
escu- ras, de modo a ilustrar e fortalecer o mal.
Não creio.
Se Picasso foi
sádico e androcêntrico, se Gauguin, Foucault e Caetano foram pedófilos notórios,
devo excluí-los sumariamente? E a Woody Allen?
Ou, por outro
lado, devo separar
as realizações dos seus autores e considerar os elementos
biográficos irrelevantes para análise
do valor estritamente poético, artístico e filosófico das respectivas obras?
III
O
poema é indiferente à vida do poeta. Consideremos
que o haikai de adeus escrito pelo
kamikaze ou o do samurai que cometerá seppuku não
são necessariamente melhores
que as versões retrabalhadas por um haijin
de gabinete, como Yosa Buson. Isto é, a experiência direta que inspira a manifestação
criativa não garante a sua intensidade. Da mesma forma,
a moral – e a reflexão sobre a
moral, a ética propriamente dita – do poeta não agregam valor ao seu esforço.
Como ouvir a leitura do Canto xlv (With usura) sem pensar que aquela é a voz gravada de um convicto antissemita?
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Como não impregnar
a leitura dos aforismos de Feuillets d’Hypnos
com o fato de terem sido escritos enquanto Char era um maquis nos Baixos Alpes?
Ou esquecer que La Primavera Hitleriana foi
a reação de Montale à visita, em 1938, do Führer
a Florença? Ou ainda, como desconsiderar que Juan de la Cruz compôs de memória
a maioria das estrofes do Canto Espiritual
(Qué bien se yo la fonte que mana y corre)
encerrado por meio ano em uma cela de dois metros por três em um mosteiro de
Toledo? Como, enfim, ler Manuel Bandeira sem sentir irradiar das páginas a luminosa
ternura do seu coração?
A biografia
de um artista e sua arte não são dimensões estanques, e se contaminam em abono ou desabono com as
suas circunstâncias conforme a importância dada a elas pela sensibilidade de cada
admirador.
THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).
ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 260 | abril de 2025
Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
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