1 Os círculos enigmáticos
No panorama da pintura europeia, o casal Delaunay é um nome de referência.
A sua biografia tem a ver com Portugal. Aqui viveram momentos fundamentais da sua
vida artística. Foi no nosso país e por via da luminosidade invulgar do mesmo, que
o cromatismo típico da sua linguagem pictórica ganhou individualidade e intensidade.
Mas foi aqui que se viram envolvidos numa história de espionagem, precisamente por
causa da sua invulgar pintura. Um dia talvez a história dê livro. Assim eu tenha
tempo.
Sonia Delaunay Terk nasceu a 14 de novembro de 1885
em Gradiesk, na Ucrânia, filha de Elia Stern e de Hanna Terk. No mesmo ano, a 12
de abril, em Paris, nasceria Robert Delaunay, seu companheiro de arte e futuro marido
em segundas núpcias.
Casal de artistas, as suas biografias misturar-se-iam
numa paleta de estilos e de vivências. Toda a sua vida será passada no estrangeiro;
será, tal como seu marido, uma das muitas expatriadas que trazem a alma russa a
marcar a sua condição de emigrante.
Tratar da sua biografia é abordar de modo indissociável
a de Robert. Mas numa vida há sempre o reduto inexpugnável da individualidade, aquilo
que sobeja a uma ligação conjugal ou mesmo familiar.
No caso de Sonia a primeira parte da sua vida decorre
sob o signo da desagregação do lar que lhe deu origem.
Fruto de um casamento atribulado, de que resultam dificuldades
de relacionamento com a mãe, Sonia, com cinco anos de idade, muda-se para São Petersburgo,
onde passará parte da sua infância, sob os cuidados de um tio materno, advogado,
do qual adopta o apelido Terk.
O ambiente cosmopolita da cidade não pode deixar de
a influenciar, como, afinal, a toda uma pleiade de jovens russos, que serão a elite
cultural da sua geração.
Surge então a decisiva vocação para a pintura e para
as artes decorativas em geral, encorajada por Max Libermann, amigo da família, pintor
expressionista que faleceria em Berlim em 1935.
Sonia não ficará, no entanto, confinada à sua terra
de origem. A apetência pelo estrangeiro toma conta de si, uma ânsia de cosmopolitismo
está presente em toda a vida cultural da capital da Rússia czarista.
Em 1903 estuda já na Alemanha, em Karlsruhe, sob a direção
de Schmidt-Reutter.
Mas haveria de ser Paris a cidade que a atrairia, como
a tantos outros da sua geração.
Em 1905 desloca-se para a capital francesa onde conhece
o crítico artístico Wilhelm Uhde, com quem contrai casamento em 1909 e de quem se
divorciará em 1910. Frequentava então a Academia La Palette. Só que a sua personalidade
acabaria por se impor na comunidade artística russa expatriada.
Familiarizada com os meios cubistas, serviu de elemento
de ligação aos artistas russos que procuravam estudar este movimento. Um dos casos
paradigmáticos desse seu relacionamento é com o pintor russo Yakulov.
A sua sentimentalidade acabaria, porém, por intrometer-se
com a sua carreira artística.
Nunca se sabe até que ponto os encontros e desencontros
amorosos marcam uma vida, geram um génio, reforçando-lhe o ânimo ou destroem uma
promessa, liquidando-lhe o entusiasmo.
É que Sonia conhece, entretanto, Robert Delaunay, que
por essa altura havia optado a tempo inteiro pela pintura e pelo desenho.
A sua ligação surge na relação artística, desenvolve-se
no campo dos afetos.
Casam-se em 1911 e dessa união surge um filho, baptizado
como Charles. Vivem então na Rue des Grands Augustins.
Robert é uma personagem fulgurante. Apresentado por
Elizabeth Epstein ao círculo Blaue Reiter
de Munich, a convite de Kandinsky, expõe ali o seu quadro “Tour Eiffel” [que será
destruído em 1945]. A sua pintura, representativa então do cubismo, escandaliza.
Os meios artísticos olham-no com expectativa.
Centrados no meio artístico, os Delaunay levam uma vida
social intensa.
Em 1912 o casal conhece então Guillaume Apollinaire,
que vive em sua casa, e o pintor português Amadeo de Souza-Cardoso, encontro que
vem a ser decisivo na sua passagem por Portugal.
Cardoso, oriundo de Manhufe, uma localidade na zona
de Amarante, encontrava-se em Paris desde os dezenove anos, no âmbito da sua formação
artística a que se aplicava com denodo. Amigo de Amadeo Modigliani, inspira-se largamente
no traço deste.
Graças ao relacionamento com os Delaunay, Amadeo, então
uma figura em ascensão, reforça os seus conhecimentos no milieu artístico parisiense.
A influência do casal acaba por marcar de modo indelével
a sua pintura.
Sonia levava então a cabo os primeiros trabalhos de
uma expressão artística a que chamará de arte
simultânea. Inicia-se no desenho de roupa.
Ilustrara nesse ano o poema de Blaise Cendrars, La prose du Transsibéiren et le petit Jehanne
de France.
Fruto do seu conhecimento e do intercâmbio artístico,
em 1913 os Delaunay e Amadeo expõem em Berlim, no Salão de Outono da prestigiada
galeria «Der Sturm», propriedade de Herwarth Walden.
Ainda nesse ano Souza-Cardoso expõe a sua obra nos Estados
Unidos da América, onde recolhe largo sucesso, que ainda hoje se simboliza.
No domínio das artes, os Delaunay são já uma referência,
projetando uma técnica e definindo um critério que outros seguirão. Paul Klee assume
então a influência artística do casal.
Chega, entretanto, o ano de 1914, o fatídico ano da
Primeira Grande Guerra.
Nesse Verão, após terem exposto no salão de independentes
“Les Prismes Électriques” [hoje Museu de Arte Moderna de Paris], os Delaunay, acompanhados
do pintor mexicano Zagara, deslocam-se para Espanha, em férias, ficando a viver
em Fontarrabía.
Com o advento da guerra o casal decide permanecer em
Espanha, mudando-se embora para Madrid.
Charles está gravemente doente, com febre tifoide, doença
então mortífera.
É, porém, curta a permanência em Espanha.
No ano seguinte, um inesperado evento surge nas suas
vidas: leem num jornal local um anúncio, gabando as belezas turísticas portuguesas.
Animado com o que leram, os Delaunay viajam até Lisboa.
O conselho de Amadeo Souza-Cardoso revelou-se decisivo.
Amigo do seu País, o pintor português recomenda-lhes que viajem até cá.
Para os Delaunay, Portugal é uma revelação: o ambiente
aqui parece fervilhar de espetaculares acontecimentos.
Em fevereiro de 1915 surgira, sob a direção de Luis
Montalvor, a Orfeu, com a capa de José
Pacheco e a colaboração, entre tantos, de Santa Rita, pintor do fantástico, e de
Fernando Pessoa, escriturário e poeta sombrio e de Álvaro de Campos, o seu heterónimo.
Editor da publicação: António Ferro, que mais tarde, à testa do Secretariado Nacional
de Propaganda Nacional, traria ao salazarismo o contributo desse escol da inteligência
nacional.
Na arte, os movimentos e as escolas florescem então
como cogumelos: cubismo, futurismo, modernismo, enfim, a vanguarda!
Os Delaunay rapidamente se familiarizam com os expoentes
modernistas de então.
O azul do Atlântico fica em frente. Mas é a luz, a tonalidade
da luminosidade solar que mais os impressiona. Robert Delaunay escreve a propósito:
les rayons de soleil plus humains, plus proches,
du Portugal.
É nesse local que pintam com denodo. Trabalham arduamente
no jardim, entre plantas exuberantes e passeiam-se à noite ao luar.
Cuidadosos com a técnica, fabricam eles próprios as
tintas que usam, visando o maior tempo de conservação dos quadros. Amistosos, enviam
para o próprio Amadeo o produto do seu fabrico artesanal.
É aqui que Sonia se entusiasma pela técnica da pintura
a cera, no que contagia o próprio Eduardo Viana, companhia constante no local. Muitos
dos seus quadros deste período evidenciam a ascendência da pintura dos Delaunay.
Amadeo, nutre profunda amizade por eles, visitando-os
amiúde, a partir da sua casa em Manhufe, onde se fixará, até à sua morte em Espinho
em 1918. Sam Halpert, velho amigo de Robert, fica até 1916.
No Natal desse ano, os Delaunay estão como em casa.
Amadeo surge-lhes com um bolo, evidência de uma amizade.
Sonia retribui, confeccionando para a mulher deste, Lucie Pecetto, um colar simultâneo.
Imersos numa ambiência estimulante, a produção sucede
a ritmo infrene.
Os seus quadros têm grandes dimensões, as telas são
pintadas em partes e cozidas para formar o conjunto. Como forma de resolução do
problema, utilizam a técnica renascentista de integrar as linhas de separação dos
pedaços de tela nas linhas de força do próprio quadro, o espectador não nota a diferença.
Tem-se a impressão
de viver num país de sonho, escreve Sonia
numa das suas cartas, fascinada pela luz exaltante
de todas as cores do país que lhe é dado observar. Congestionados pela natureza
circundante, podem gabar-se de que ali os
nossos olhos vão até ao sol.
Inseridos amistosamente na comunidade da cultura portuguesa,
o espírito gregário leva-os a implantar uma associação de artistas a que apõem o
nome de Corporation Nouvelle [Nova Corporação],
nela englobando os seus amigos portugueses, Amadeu Souza-Cardoso, Eduardo Viana,
Almada Negreiros, e estendendo a filiação, numa relação de distância, a D. Rossine
– uma pintora russa residente em Paris – e aos poetas Guillaume Apollinaire e Blaise
Cendrars.
A influência francesa é então omnipresente nesse sector
intelectual em ascensão.
Chega, entretanto, o fatídico mês de abril de 1916.
Robert tem de se deslocar a Vigo, para se sujeitar a uma junta de revisão, devido
à sua condição de reformado militar. A mulher acompanha-o.
Mas tem de regressar a Portugal. Está longe de imaginar
o que a espera: sem que de imediato se aperceba porquê Madame é retida, como prontamente informa Sousa-Cardoso, em carta expedida
para o marido, já instalado em Vigo.
A suspeita de espionagem acaba por surgir, penumbrosa
demais para a sua alma de pintora da luz.
Todos os ingredientes ajudavam a compor este quadro.
Uma denúncia teria dado azo à detenção.
Os fatores de dúvida acumulavam-se em torno de si.
Primeiro, a nacionalidade da denunciada, russa e como
tal na ocasião originária de um país que havia feito um odioso acordo de paz com
Berlim.
Depois, a sua vivência, esquiva e cosmopolita, estranha
numa ambiência provinciana, susceptível de gerar a maldade dos rumores e da suspeição
em relação ao que seriam os seus verdadeiros motivos e fins.
Além disso e sobretudo, a própria natureza e teor dos
quadros que a artista pintava, nomeadamente os célebres «discos simultâneos», em
que muitos viam a expressão típica de mensagens para os submarinos alemães que passavam
ao largo.
Finalmente os contatos que o casal manteria com artistas
alemães, entre os quais A. Macke, Franz Marc e Paul Klee.
Vítima de uma intriga, vê com mal contido espanto as
autoridades portuguesas confiscarem-lhe o passaporte, para logo em seguida ser informada
que a empregada doméstica, Beatriz Morais, havia sido presa na fronteira para Espanha.
Na sequência das investigações, conduzidas pela 2ª secção
da Polícia Judiciária, o próprio Eduardo Viana é, por sua vez, igualmente detido,
à ordem das autoridades administrativas e sob o pretexto das suas assíduas visitas
a casa dos Delaunay. Sonia Delaunay, por determinação das autoridades é colocada
sob o regime de residência fixa. Acusado de traidor
da Pátria e de conspirador, como se
lamentaria numa carta de 14 de abril, suportaria múltiplas humilhações no cárcere.
O pesadelo da situação mantém-se durante três semanas,
durante as quais o alerta é passado a todo o grupo de Lisboa, que, na medida do
possível a cada um move influências pessoais e políticas em favor do esclarecimento
do caso.
Na «Brasileira» não se fala em outra coisa.
Amadeo desloca-se ao Porto para tentar intervir junto
das autoridades no sentido de que esclareçam a situação. Em 20 de Abril de 1916
escreve a Robert Delaunay dando conta de que o responsável da referida denúncia
anónima seria um empregado do Consulado de França.
As redações dos jornais são postas ao corrente.
Finalmente verificada a natureza caluniosa da denúncia,
sob a sibilina alegação de se ter tratado de uma gaffe, os suspeitos são isentos de responsabilidades, mas estão crivados
de rancor, a resistência moral enfraquecida por esta insólita e abstrusa situação.
Numa carta, que Paulo Ferreira arquivaria numa coletânea
amigável saída em 1981, pela PUF, Eduardo Viana ainda acalentava esperanças, agora
que o assunto estava nas mãos de um advogado, que Sonia fosse largamente indemnizada
par ce cochon de consul de France, l’ auteur
de toute cette gaffe.
Viana é igualmente liberto, mas a prisão havia-o feito
adoecer. Durante as buscas policiais alguns dos seus quadros haviam sido danificados.
A passagem do tempo fez esquecer o episódio e desinteressou
os envolvidos de tentarem apurar quem seriam os responsáveis pelo evento.
Uns meses depois regressam a Portugal, para se fixarem
em Valença do Minho.
Para que o seu regresso fosse possível tiveram intervenção
o ministro das Finanças e o ministro do Interior.
A população mais ilustrada local saúda a sua presença.
Animados, reacende o seu enamoramento pelo país.
O Convento jesuíta local, proporciona-lhes uma sala
para que possam trabalhar com sossego e o mínimo de condições de conforto.
A Santa Casa da Misericórdia local encomenda-lhes um
painel em azulejos para o Asilo Fonseca. Os Delaunay pintam-no, dando origem ao
quadro “Hommage ai Donateur”.
A sua produção recrudesce.
Os Delaunay ficarão em Portugal até ao princípio de
1917.
Os últimos meses de vida em Portugal passam-nos no Asilo
Fonseca em Valença, para o qual pintam um azulejo “L’hommage au donateur”.
Depois disso residirão em Espanha, até 1920. Um ano
depois de terem partido, morre Amadeo, com trinta e um anos de idade.
Nesse ano a Revolução soviética priva-os dos bens e
rendimentos que tinham na sua pátria de origem.
Confinados a terem de permanecer em Espanha, Sonia trabalha
em decoração de interiores e em desenhos de moda em vestuário. Conhecem e trabalham
com Manuel de Falla e Nijinsky.
Gloria Swanson veste casacos desenhados por Sonia Delaunay,
Mallet-Stevens usa os seus desenhos para o revestimento de sofás, o seu traço está
presente no mobiliário. A cantora Fançoise Hardy surge vestida por Dior com um desin de Sonia Delaunay, em 1967 a Matra
lança um carro com o seu «décor».
Ornando as roupas que as mulheres trazem, a pintura
entra na rua.
O caso do suposto envolvimento dos Delaunay com a espionagem
ficou como uma bizarria insólita que os tempos de então proporcionavam.
O mais interessante é que o próprio Almada Negreiros
pudesse, afinal, ter tido um eventual papel, ainda que involuntário, no episódio.
Almada tinha pelos Delaunaly uma inflamada admiração.
Ilustra-o, no seu estilo excessivo, uma carta sua para Sónia: amanhã dar-lhe-ei toda a minha alma epiléptica
de admiração por vós.
Resulta isso das Conversas com Sarah Afonso editadas em 1982 por Maria José Almada Negreiros
na Arcádia.
Afonso foi, como se sabe, a mulher do pintor, poeta
e pensador José de Almada Negreiros. Maria José é a sua neta.
Segundo Sarah Afonso a prisão dos Delaunay ficara a
dever-se involuntariamente a Almada.
Este havia escrito o conto “K4, quadrado azul”.
Até então inédito, o manuscrito havia sido então levado
por Amadeu Souza-Cardoso, o qual se prontifica a fazê-lo imprimir no Porto, onde
se encontrariam meios de tipografia mais acessíveis.
Passado o tempo, a impaciência do seu autor começa a
não se compadecer com as delongas.
Dispara-lhe então um telegrama Dá notícias K4 quadrado azul.
Teria sido o alerta dos polícias. Ao Almada não disseram nada, não sei porquê,
mas ao Amadeu foram perguntar o que era aquilo e depois todo o grupo foi interrogado,
contaria Sarah a sua neta.
2 O homem infinito
São algumas notas de leitura do que me foi dado refletir
sobre um extraordinário escritor italiano, omnívoro como já o qualificaram, torrencial
na sua estilística, possuído por uma intranquilidade fazedora, incessante, mesmo
na mais rude adversidade: Giovanni Papini [1881-1956].
Trago-as aqui, aos leitores da revista Athena, num súbito impulso de regressar
onde com gentileza a Júlia Moura Lopes acolheu um meu primeiro escrito sobre a pintora
ucraniana Sonia Delaunay.
E trago-as quando estou a ler, no tempo possível que
invento, o seu monumental Diário, na versão original, publicada pelo seu amigo e editor
Attilio Valecchi [1880-1946].
Se os dedicasse, estes dispersos apontamentos, seria
a João Bigotte Chorão, autor de magníficas páginas de análise da sua obra e de compreensão
humana da sua pessoa.
Suponho que o primeiro
livro seu que li foi na Coleção
Unibolso e intitulava-se O
Diabo, tendo como subtítulo, mais expressivo Apontamentos para uma Futura Diabologia.
Traduzido por Fernando
Amaro, a capa da pequena obra é, curiosamente, de José Régio, o mesmo que escreveu
em 1925 Poemas de Deus e do
Diabo.
Tratava-se de uma tentativa
de inversão teológica, convergente com o meu intento na ocasião, menos preocupado
com a demonologia antropológica ou sociológica, sim com toda aquela corte de anjos
caídos e príncipes das trevas, porque trabalhava para a escrita de um livro, dos
muitos que ficaram inacabados e cujo tema era a malignidade. Livro a que talvez
volte.
Do que para ele estudei
pouco ficou, exceto o mais importante, o espanto ante a escrita e a imensa curiosidade
ante a personalidade do seu autor.
Perseguir-me-iam o resto
da vida, até hoje, o tempo em que vivo o resto que há para viver. Fui paulatinamente
juntando o que me foi possível encontrar da sua obra.
De todos os muitos livros
a que deu vida, parte infinitesimal de quantos projetou, em constante irrequietismo
criador, houve um que me marcou de modo indelével, vincando-me a sensibilidade com
um rasgão próximo da identidade. O seu nome original L’Uomo Finito tornou-se na
tradução portuguesa de Alberto Morais, de 1948, como na que li, de Fernando Amaro,
publicada pelos Livros do Brasil
em 1960, em Um Homem Liquidado,
quando poderia ter ou a tradução literal ou uma outra, mais próxima da semântica
que julgo quis ser a do autor, O
Homem Acabado.
Biografia do que foi
uma vida de profundo envolvimento com as mais variadas e desvairadas correntes filosóficas
do seu tempo, é uma obra em que, renegados todos esses erráticos caminhos, Papini
lança no final, à juventude do seu tempo, o repto que é a antítese do que o título
do livro proclama: não! Giovanni Papini não está acabado, agora, sim, é que começa.
Na altura da segunda
leitura do mesmo livro, daqueles que nunca poderemos considerar definitivamente
lidos, confiei a um dos blogs que dedico às notas de leitura este breve apontamento:
Terminei-o, fim em dia
de Páscoa, e que sentido faz esta coincidência, tudo visto, ante o epílogo desta
escrita torrencial, o que dá título ao livro, o clímax de uma epopeia em busca do
Absoluto, viagem e salto, afogamento e salvação, a história de um Homem que, anunciando-se
morto, nega a possibilidade e proclama ao Destino e a todos os outros que não está
acabado, agora que começa.
Livro magnífico, livro
que tomaria comigo se tivesse de escolher muito poucos para levar e não mais, livro
que me recorda tanto de Friedrich Nietzsche, outro desgraçado, o do super-Homem
e do Humano demasiado Humano, mais o da Gaia Ciência, mas tudo num livro só, cozinhado
em sofrimento, escrito sem perder nunca o fôlego, confissão de revolta e de amor,
desprezo e despojamento, sobretudo, obra de intrínseca e humilde verdade, jogando-se
nu até nos seus defeitos rascas e na vanglória do seu excesso de virtudes.
Li-o todo, linha a linha,
depois de o ter lido, sem ter lido, em tempos.
Revisto hoje, esse apontamento,
ele surge pobre, sobretudo quando cotejado com o que foi o conhecimento que só alcancei
muito mais tarde, quando me foi possível confrontar a edição publicada, em 2016,
pela Oscar Mondadori,
na qual encontro, em nota editorial, que houve uma primeira edição, escrita em 1913,
aquela ali republicada e uma outra, revista, quando em 1932 o autor se converteu
ao catolicismo e entendeu rever algumas das expressões mais agrestes relativamente
à religião que agora professara.
Tratou-se de uma conversão
cujo percurso levou a livro, em que trabalhou desde 1923 e que li na segunda edição
italiana, intitulado La Seconda
Nascita, publicada em 1959.
De entre tanto o que
escreveu o autor do monumental Juízo
Universal, de que me chegou há pouco a versão original italiana, e do
que, se aqui desse notícia, esgotaria toda a revista só comigo e mais ainda, trago
também o que reencontrei como notas que tomara quando li, em pleno confinamento
epidémico, a obra Palavras
e Sangue:
O privilégio de ter
um livro, ainda que amarelecido, encarquilhadas as folhas, desbotadas quando não
manchadas, a capa, porém, ainda a resistir. Um daqueles livros em que os cadernos
iam cosidos antes de a capa ser colada aos folios já batidos, mas em que a guilhotina
se ausentava, deixando o corte dianteiro rugoso e imperfeito.
Livro destinado a ter
de se abrir com uma faca e ter uma faca adestrada a cortar papel, tudo relíquias
de um tempo que parece já tão sumido no tempo, livro indiscreto, a denunciar não
ter sido folheado sequer ante os maços por abrir.
Livro assinado pelo
que antes o teve como seu, no caso em 1957, ano desta edição, identificado com um
ex-libris e que na biblioteca pessoal teve número de ordem manuscrito na folha de
guarda.
Livro com capa do pintor
Bernardo Marques, que tanto trouxe à ilustração editorial com o seu traço em que
pressentimos um Almada Negreiros ou um Mário Eloy.
Ter um livro cuja tradução
se prenunciaria fraca, por ter sido isso infelizmente o que sucedeu na editora,
mas que é notável porque afinal do poeta brasileiro Mário Quintana, sendo este o
seu primeiro trabalho de tradução para a Editora Globo, versão revista para português
de Portugal pelo açoriano Agostinho Vieira d’Areia.
Ter a oportunidade de
o livro, buscado à estante, ser de Giovanni Papini, essa portentosa figura do panorama
literário italiano, de quem tento juntar quanto posso e ler tudo o que escreveu.
Livro de breves contos,
publicado no original em 1912, precisamente no ano em que o autor parecia esgotado
com o seu Un Uomo Finito, ano prolífico
em que traria a lume mais três obras, este, Palavras
e Sangue, traz-nos a escrita paradoxal, a equação do tempo com o seu espaço
e todo um referencial onírico de desdobramento do eu em um mundo que é o seu próprio
espelho.
Difícil escolher em
tantas das narrativas qual a que melhor figuraria neste apontamento. Logo o primeiro
em que um pescador estendeu as suas redes
e de dispôs a enganar também naquele dia os ridículos peixes, em que o vento soprava ainda mais forte, encolerizado
com a preguiça das nuvens; ou aquele a que chamou “Sem Razão Alguma”, para cujo
personagem, a insónia era o seu excitante
e as obras por escrever alinhavam-se, noite a noite, na sua memória, como sonhos
artificialmente conservados.
Pena faz que talvez
já não haja leitores para quem todo este presente
não é mais do que um prefácio, sensibilidades comuns de alguém encerrado como uma mônada, secreto como uma célula,
mudo com um noturno felino, seres para os quais a quinta essência da subtileza filosófica consiste em descobrir a diferença
entre iguais.
Fico por aqui. Mundos
pequenos: um dos pseudónimos de Giovanni Papini foi “Gian Falco”, o mesmo como se
iniciou na escrita a nossa Irene Lisboa, a quem dediquei um blog, há tanto tempo
por visitar.
Quanto nos irmanamos
com ele, enquanto vemos quão reles e liliputiana é a vidinha de que curamos e à
qual hipotecamos o mais precioso de todos os bens, o inegociável Tempo, o pouquíssimo
tempo que nos é dado.
Quanto nos torna diminutos
ante aquele combate demoníaco e salvífico com todos os deuses, pela Razão e pela
irracionalidade que a nega, com a Humanidade e ao arrepio dela.
É de norma que se escreva
e cite do que se escreveu para provar o que se afirma ou se mobilize o leitor. Impossível
é fazê-lo aqui: uma só palavra citada destruiria a magia de todo o conjunto, reduziria
a grandeza do escrito, anularia o sentimento do lido.
Dir-se-á que neste período
de clausura se devem ler superficialidades reconfortantes. Nego, repudio, combato!
Siga-se o exemplo dos grandes solitários, as almas que no deserto do confinamento
buscaram as suas entranhas e escrutinaram os círculos do Céu: há que procurar mais
alto, escavar mais fundo.
No mundo das coisas
práticas em que nos tornámos pelas circunstâncias atuais, parece que tudo afinal
encontrou o caminho do trivial para enfrentar a seriedade. Enquanto isso suceder,
o Homem prossegue o Reino da Quantidade, tendo passado pelas dificuldades, apenas
do muito ao muito pouco.
Talvez não exista a
alma, há, porém, o espírito, o de cada pessoa e o Espírito Cósmico, do qual somos
centelha provisória jogados no infinito ao sabor da lei da gravitação universal.
Ao ler Giovanni Papini senti a esperança depois de ter chegado à agonia do desespero,
o sentido pascal, afinal, do renascer.
Tanto mais poderia dizer,
retirando das notas soltas, que um dia terei de reunir.
Um dos seus textos mais
pungentes, intitulado Le Felicità
dell’Infelice, são excertos, aparas lhe chamou [schegge em italiano], já no momento final
da vida, perdido o uso dos braços e das pernas, enfim, cego, quase sem poder falar,
ditadas em murmúrio a uma sua sobrinha Anna Paskowski e, no entanto, voz de um espasmo
final, gritado ao mundo, a proclamar a superioridade do espírito sobre o corpo,
o final da luta cruel de quem preferiu o martírio
à imbecilidade.
Morrendo em cada dia,
escrevia, por interposta mão, e assim vivia. O melhor da sua alma, assim o disse
o seu amigo e biógrafo, Roberto Ridolfi, esteve ali, até ao fim.
No momento final, ao receber a extrema unção, o velho guerrilheiro literário, que assumira em 1943 profissão de fé na Ordem Terceira de São Francisco, impacientou-se ao ser chamado pelo seu nome próprio, encerrou em paz o seu espírito angustiado, ante o nome religioso que adoptara: Bonaventura. Tendo vivido tanto e por tantas formas, tornara-se, enfim, aquele outro.
JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS é advogado. Tem-se dedicado à escrita jurídica e ao ensaio histórico, como a apresentação de O Príncipe de Maquiavel e nomeadamente no sector dos estudos sobre a guerra secreta em Portugal nos anos 1939-1945. Publicou os livros A Lusitânia dos Espiões, coletânea de artigos; O Homem das Cartas de Londres, biografia de Rogério de Menezes, agente do Eixo; Uma Agente Dupla em Lisboa, biografia de Nathalie Sergueiew, do XX Committee; O 13º Passageiro, sobre a fatídica viagem do ator Leslie Howard a Lisboa e Traição a Salazar, sobre atuação do SOE em Portugal. Traduziu e prefaciou a narrativa histórica Eu roubei o Santa Maria de Jorge Soutomaior. Na área da ficção, é autor de Contos do Desaforo e do romance Não se Brinca com Facas.
ARIADNA PINEDA (México, 1980). Estudió la Licenciatura en Artes Visuales en la Facultad de Bellas Artes de la UMSNH, así como Diseño de moda en Instituto INMODART en la ciudad de Morelia, Michoacán. Su experiencia profesional se ha forjado creando pintura, escenografía teatral, diseño de vestuario teatral y dancístico, escultura, fotografía, ilustración y muralismo. Sus exposiciones individuales han girado la mayoría en torno al arte con técnicas experimentales realizando obras arte háptico-senso-perceptual para personas con discapacidad visual, otras exposiciones de arte fumage y pintura al óleo, todas con su particular estilo surrealista. A la fecha son 13 sus exposiciones individuales desde el 2011. Participa en exposiciones colectivas desde 1996 dando un total de 38 colectivos. Algunas de sus obras se encuentran en Italia, Canadá, EU, en manos de coleccionistas privados. Ariadna en su creación encontró un nuevo camino con precedencia a partir de años de exploración, experimentación y especialización en la pintura al óleo y el arte fumage, encontrando su propio lenguaje, hoy busca dar a conocer con luz propia su obra surrealista más reciente para tomar con mayor fuerza los caminos de la creación. Ariadna Pineda es la artista invitada de esta edición especial de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 06 – ATHENA (PORTUGAL)
Artista convidada: Ariadna Pineda (México, 1980)
Editores:
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