quinta-feira, 4 de setembro de 2025

JOSÉ ANTONIO BARREIROS | Sonia Delaunay e Giovanni Papini – Os círculos enigmáticos e o homem infinito



1 Os círculos enigmáticos

No panorama da pintura europeia, o casal Delaunay é um nome de referência. A sua biografia tem a ver com Portugal. Aqui viveram momentos fundamentais da sua vida artística. Foi no nosso país e por via da luminosidade invulgar do mesmo, que o cromatismo típico da sua linguagem pictórica ganhou individualidade e intensidade. Mas foi aqui que se viram envolvidos numa história de espionagem, precisamente por causa da sua invulgar pintura. Um dia talvez a história dê livro. Assim eu tenha tempo.

Sonia Delaunay Terk nasceu a 14 de novembro de 1885 em Gradiesk, na Ucrânia, filha de Elia Stern e de Hanna Terk. No mesmo ano, a 12 de abril, em Paris, nasceria Robert Delaunay, seu companheiro de arte e futuro marido em segundas núpcias.

Casal de artistas, as suas biografias misturar-se-iam numa paleta de estilos e de vivências. Toda a sua vida será passada no estrangeiro; será, tal como seu marido, uma das muitas expatriadas que trazem a alma russa a marcar a sua condição de emigrante.

Tratar da sua biografia é abordar de modo indissociável a de Robert. Mas numa vida há sempre o reduto inexpugnável da individualidade, aquilo que sobeja a uma ligação conjugal ou mesmo familiar.

No caso de Sonia a primeira parte da sua vida decorre sob o signo da desagregação do lar que lhe deu origem.

Fruto de um casamento atribulado, de que resultam dificuldades de relacionamento com a mãe, Sonia, com cinco anos de idade, muda-se para São Petersburgo, onde passará parte da sua infância, sob os cuidados de um tio materno, advogado, do qual adopta o apelido Terk.

O ambiente cosmopolita da cidade não pode deixar de a influenciar, como, afinal, a toda uma pleiade de jovens russos, que serão a elite cultural da sua geração.

Surge então a decisiva vocação para a pintura e para as artes decorativas em geral, encorajada por Max Libermann, amigo da família, pintor expressionista que faleceria em Berlim em 1935.

Sonia não ficará, no entanto, confinada à sua terra de origem. A apetência pelo estrangeiro toma conta de si, uma ânsia de cosmopolitismo está presente em toda a vida cultural da capital da Rússia czarista.

Em 1903 estuda já na Alemanha, em Karlsruhe, sob a direção de Schmidt-Reutter.

Mas haveria de ser Paris a cidade que a atrairia, como a tantos outros da sua geração.

Em 1905 desloca-se para a capital francesa onde conhece o crítico artístico Wilhelm Uhde, com quem contrai casamento em 1909 e de quem se divorciará em 1910. Frequentava então a Academia La Palette. Só que a sua personalidade acabaria por se impor na comunidade artística russa expatriada.

Familiarizada com os meios cubistas, serviu de elemento de ligação aos artistas russos que procuravam estudar este movimento. Um dos casos paradigmáticos desse seu relacionamento é com o pintor russo Yakulov.

A sua sentimentalidade acabaria, porém, por intrometer-se com a sua carreira artística.

Nunca se sabe até que ponto os encontros e desencontros amorosos marcam uma vida, geram um génio, reforçando-lhe o ânimo ou destroem uma promessa, liquidando-lhe o entusiasmo.

É que Sonia conhece, entretanto, Robert Delaunay, que por essa altura havia optado a tempo inteiro pela pintura e pelo desenho.

A sua ligação surge na relação artística, desenvolve-se no campo dos afetos.

Casam-se em 1911 e dessa união surge um filho, baptizado como Charles. Vivem então na Rue des Grands Augustins.

Robert é uma personagem fulgurante. Apresentado por Elizabeth Epstein ao círculo Blaue Reiter de Munich, a convite de Kandinsky, expõe ali o seu quadro “Tour Eiffel” [que será destruído em 1945]. A sua pintura, representativa então do cubismo, escandaliza. Os meios artísticos olham-no com expectativa.

Centrados no meio artístico, os Delaunay levam uma vida social intensa.

Em 1912 o casal conhece então Guillaume Apollinaire, que vive em sua casa, e o pintor português Amadeo de Souza-Cardoso, encontro que vem a ser decisivo na sua passagem por Portugal.

Cardoso, oriundo de Manhufe, uma localidade na zona de Amarante, encontrava-se em Paris desde os dezenove anos, no âmbito da sua formação artística a que se aplicava com denodo. Amigo de Amadeo Modigliani, inspira-se largamente no traço deste.

Graças ao relacionamento com os Delaunay, Amadeo, então uma figura em ascensão, reforça os seus conhecimentos no milieu artístico parisiense.

A influência do casal acaba por marcar de modo indelével a sua pintura.

Sonia levava então a cabo os primeiros trabalhos de uma expressão artística a que chamará de arte simultânea. Inicia-se no desenho de roupa.

Ilustrara nesse ano o poema de Blaise Cendrars, La prose du Transsibéiren et le petit Jehanne de France.

Fruto do seu conhecimento e do intercâmbio artístico, em 1913 os Delaunay e Amadeo expõem em Berlim, no Salão de Outono da prestigiada galeria «Der Sturm», propriedade de Herwarth Walden.

Ainda nesse ano Souza-Cardoso expõe a sua obra nos Estados Unidos da América, onde recolhe largo sucesso, que ainda hoje se simboliza.

No domínio das artes, os Delaunay são já uma referência, projetando uma técnica e definindo um critério que outros seguirão. Paul Klee assume então a influência artística do casal.

Chega, entretanto, o ano de 1914, o fatídico ano da Primeira Grande Guerra.

Nesse Verão, após terem exposto no salão de independentes “Les Prismes Électriques” [hoje Museu de Arte Moderna de Paris], os Delaunay, acompanhados do pintor mexicano Zagara, deslocam-se para Espanha, em férias, ficando a viver em Fontarrabía.

Com o advento da guerra o casal decide permanecer em Espanha, mudando-se embora para Madrid.

Charles está gravemente doente, com febre tifoide, doença então mortífera.

É, porém, curta a permanência em Espanha.

No ano seguinte, um inesperado evento surge nas suas vidas: leem num jornal local um anúncio, gabando as belezas turísticas portuguesas.

Animado com o que leram, os Delaunay viajam até Lisboa.

O conselho de Amadeo Souza-Cardoso revelou-se decisivo. Amigo do seu País, o pintor português recomenda-lhes que viajem até cá.

Para os Delaunay, Portugal é uma revelação: o ambiente aqui parece fervilhar de espetaculares acontecimentos.

Em fevereiro de 1915 surgira, sob a direção de Luis Montalvor, a Orfeu, com a capa de José Pacheco e a colaboração, entre tantos, de Santa Rita, pintor do fantástico, e de Fernando Pessoa, escriturário e poeta sombrio e de Álvaro de Campos, o seu heterónimo. Editor da publicação: António Ferro, que mais tarde, à testa do Secretariado Nacional de Propaganda Nacional, traria ao salazarismo o contributo desse escol da inteligência nacional.

Na arte, os movimentos e as escolas florescem então como cogumelos: cubismo, futurismo, modernismo, enfim, a vanguarda!

Os Delaunay rapidamente se familiarizam com os expoentes modernistas de então.


Mas Lisboa é, porém, apenas um ponto da sua passagem por Portugal. Por sugestão de Eduardo Viana, optam por residirem em Vila do Conde, lugar para eles idílico, em cuja Rua Bento de Freitas, nº 7, a antiga Rua dos Banhos, encontram uma casa aprazível, numa ambiência inundada de luz e de mar, propícia à criação artística: inspirados no seu estilo artístico, cognominam a casa como a «Vila Simultânea». Ainda hoje ali se encontra, com uma lápide alusiva.

O azul do Atlântico fica em frente. Mas é a luz, a tonalidade da luminosidade solar que mais os impressiona. Robert Delaunay escreve a propósito: les rayons de soleil plus humains, plus proches, du Portugal.

É nesse local que pintam com denodo. Trabalham arduamente no jardim, entre plantas exuberantes e passeiam-se à noite ao luar.

Cuidadosos com a técnica, fabricam eles próprios as tintas que usam, visando o maior tempo de conservação dos quadros. Amistosos, enviam para o próprio Amadeo o produto do seu fabrico artesanal.

É aqui que Sonia se entusiasma pela técnica da pintura a cera, no que contagia o próprio Eduardo Viana, companhia constante no local. Muitos dos seus quadros deste período evidenciam a ascendência da pintura dos Delaunay.

Amadeo, nutre profunda amizade por eles, visitando-os amiúde, a partir da sua casa em Manhufe, onde se fixará, até à sua morte em Espinho em 1918. Sam Halpert, velho amigo de Robert, fica até 1916.

No Natal desse ano, os Delaunay estão como em casa.

Amadeo surge-lhes com um bolo, evidência de uma amizade. Sonia retribui, confeccionando para a mulher deste, Lucie Pecetto, um colar simultâneo.

Imersos numa ambiência estimulante, a produção sucede a ritmo infrene.

Os seus quadros têm grandes dimensões, as telas são pintadas em partes e cozidas para formar o conjunto. Como forma de resolução do problema, utilizam a técnica renascentista de integrar as linhas de separação dos pedaços de tela nas linhas de força do próprio quadro, o espectador não nota a diferença.

Tem-se a impressão de viver num país de sonho, escreve Sonia numa das suas cartas, fascinada pela luz exaltante de todas as cores do país que lhe é dado observar. Congestionados pela natureza circundante, podem gabar-se de que ali os nossos olhos vão até ao sol.

Inseridos amistosamente na comunidade da cultura portuguesa, o espírito gregário leva-os a implantar uma associação de artistas a que apõem o nome de Corporation Nouvelle [Nova Corporação], nela englobando os seus amigos portugueses, Amadeu Souza-Cardoso, Eduardo Viana, Almada Negreiros, e estendendo a filiação, numa relação de distância, a D. Rossine – uma pintora russa residente em Paris – e aos poetas Guillaume Apollinaire e Blaise Cendrars.

A influência francesa é então omnipresente nesse sector intelectual em ascensão.

Chega, entretanto, o fatídico mês de abril de 1916. Robert tem de se deslocar a Vigo, para se sujeitar a uma junta de revisão, devido à sua condição de reformado militar. A mulher acompanha-o.

Mas tem de regressar a Portugal. Está longe de imaginar o que a espera: sem que de imediato se aperceba porquê Madame é retida, como prontamente informa Sousa-Cardoso, em carta expedida para o marido, já instalado em Vigo.

A suspeita de espionagem acaba por surgir, penumbrosa demais para a sua alma de pintora da luz.

Todos os ingredientes ajudavam a compor este quadro.

Uma denúncia teria dado azo à detenção.

Os fatores de dúvida acumulavam-se em torno de si.

Primeiro, a nacionalidade da denunciada, russa e como tal na ocasião originária de um país que havia feito um odioso acordo de paz com Berlim.

Depois, a sua vivência, esquiva e cosmopolita, estranha numa ambiência provinciana, susceptível de gerar a maldade dos rumores e da suspeição em relação ao que seriam os seus verdadeiros motivos e fins.

Além disso e sobretudo, a própria natureza e teor dos quadros que a artista pintava, nomeadamente os célebres «discos simultâneos», em que muitos viam a expressão típica de mensagens para os submarinos alemães que passavam ao largo.

Finalmente os contatos que o casal manteria com artistas alemães, entre os quais A. Macke, Franz Marc e Paul Klee.

Vítima de uma intriga, vê com mal contido espanto as autoridades portuguesas confiscarem-lhe o passaporte, para logo em seguida ser informada que a empregada doméstica, Beatriz Morais, havia sido presa na fronteira para Espanha.

Na sequência das investigações, conduzidas pela 2ª secção da Polícia Judiciária, o próprio Eduardo Viana é, por sua vez, igualmente detido, à ordem das autoridades administrativas e sob o pretexto das suas assíduas visitas a casa dos Delaunay. Sonia Delaunay, por determinação das autoridades é colocada sob o regime de residência fixa. Acusado de traidor da Pátria e de conspirador, como se lamentaria numa carta de 14 de abril, suportaria múltiplas humilhações no cárcere.

O pesadelo da situação mantém-se durante três semanas, durante as quais o alerta é passado a todo o grupo de Lisboa, que, na medida do possível a cada um move influências pessoais e políticas em favor do esclarecimento do caso.

Na «Brasileira» não se fala em outra coisa.

Amadeo desloca-se ao Porto para tentar intervir junto das autoridades no sentido de que esclareçam a situação. Em 20 de Abril de 1916 escreve a Robert Delaunay dando conta de que o responsável da referida denúncia anónima seria um empregado do Consulado de França.

As redações dos jornais são postas ao corrente.

Finalmente verificada a natureza caluniosa da denúncia, sob a sibilina alegação de se ter tratado de uma gaffe, os suspeitos são isentos de responsabilidades, mas estão crivados de rancor, a resistência moral enfraquecida por esta insólita e abstrusa situação.

Numa carta, que Paulo Ferreira arquivaria numa coletânea amigável saída em 1981, pela PUF, Eduardo Viana ainda acalentava esperanças, agora que o assunto estava nas mãos de um advogado, que Sonia fosse largamente indemnizada par ce cochon de consul de France, l’ auteur de toute cette gaffe.

Viana é igualmente liberto, mas a prisão havia-o feito adoecer. Durante as buscas policiais alguns dos seus quadros haviam sido danificados.

A passagem do tempo fez esquecer o episódio e desinteressou os envolvidos de tentarem apurar quem seriam os responsáveis pelo evento.

Uns meses depois regressam a Portugal, para se fixarem em Valença do Minho.

Para que o seu regresso fosse possível tiveram intervenção o ministro das Finanças e o ministro do Interior.

A população mais ilustrada local saúda a sua presença.

Animados, reacende o seu enamoramento pelo país.

O Convento jesuíta local, proporciona-lhes uma sala para que possam trabalhar com sossego e o mínimo de condições de conforto.

A Santa Casa da Misericórdia local encomenda-lhes um painel em azulejos para o Asilo Fonseca. Os Delaunay pintam-no, dando origem ao quadro “Hommage ai Donateur”.

A sua produção recrudesce.

Os Delaunay ficarão em Portugal até ao princípio de 1917.

Os últimos meses de vida em Portugal passam-nos no Asilo Fonseca em Valença, para o qual pintam um azulejo “L’hommage au donateur”.

Depois disso residirão em Espanha, até 1920. Um ano depois de terem partido, morre Amadeo, com trinta e um anos de idade.

Nesse ano a Revolução soviética priva-os dos bens e rendimentos que tinham na sua pátria de origem.

Confinados a terem de permanecer em Espanha, Sonia trabalha em decoração de interiores e em desenhos de moda em vestuário. Conhecem e trabalham com Manuel de Falla e Nijinsky.


A partir de então a notoriedade e o sucesso estão-lhes garantidos.

Gloria Swanson veste casacos desenhados por Sonia Delaunay, Mallet-Stevens usa os seus desenhos para o revestimento de sofás, o seu traço está presente no mobiliário. A cantora Fançoise Hardy surge vestida por Dior com um desin de Sonia Delaunay, em 1967 a Matra lança um carro com o seu «décor».

Ornando as roupas que as mulheres trazem, a pintura entra na rua.

O caso do suposto envolvimento dos Delaunay com a espionagem ficou como uma bizarria insólita que os tempos de então proporcionavam.

O mais interessante é que o próprio Almada Negreiros pudesse, afinal, ter tido um eventual papel, ainda que involuntário, no episódio.

Almada tinha pelos Delaunaly uma inflamada admiração. Ilustra-o, no seu estilo excessivo, uma carta sua para Sónia: amanhã dar-lhe-ei toda a minha alma epiléptica de admiração por vós.

Resulta isso das Conversas com Sarah Afonso editadas em 1982 por Maria José Almada Negreiros na Arcádia.

Afonso foi, como se sabe, a mulher do pintor, poeta e pensador José de Almada Negreiros. Maria José é a sua neta.

Segundo Sarah Afonso a prisão dos Delaunay ficara a dever-se involuntariamente a Almada.

Este havia escrito o conto “K4, quadrado azul”.

Até então inédito, o manuscrito havia sido então levado por Amadeu Souza-Cardoso, o qual se prontifica a fazê-lo imprimir no Porto, onde se encontrariam meios de tipografia mais acessíveis.

Passado o tempo, a impaciência do seu autor começa a não se compadecer com as delongas.

Dispara-lhe então um telegrama Dá notícias K4 quadrado azul.

Teria sido o alerta dos polícias. Ao Almada não disseram nada, não sei porquê, mas ao Amadeu foram perguntar o que era aquilo e depois todo o grupo foi interrogado, contaria Sarah a sua neta.

 

2 O homem infinito

São algumas notas de leitura do que me foi dado refletir sobre um extraordinário escritor italiano, omnívoro como já o qualificaram, torrencial na sua estilística, possuído por uma intranquilidade fazedora, incessante, mesmo na mais rude adversidade: Giovanni Papini [1881-1956].

Trago-as aqui, aos leitores da revista Athena, num súbito impulso de regressar onde com gentileza a Júlia Moura Lopes acolheu um meu primeiro escrito sobre a pintora ucraniana Sonia Delaunay.

E trago-as quando estou a ler, no tempo possível que invento, o seu monumental Diário, na versão original, publicada pelo seu amigo e editor Attilio Valecchi [1880-1946].

Se os dedicasse, estes dispersos apontamentos, seria a João Bigotte Chorão, autor de magníficas páginas de análise da sua obra e de compreensão humana da sua pessoa.

Suponho que o primeiro livro seu que li foi na Coleção Unibolso e intitulava-se O Diabo, tendo como subtítulo, mais expressivo Apontamentos para uma Futura Diabologia.

Traduzido por Fernando Amaro, a capa da pequena obra é, curiosamente, de José Régio, o mesmo que escreveu em 1925 Poemas de Deus e do Diabo.

Tratava-se de uma tentativa de inversão teológica, convergente com o meu intento na ocasião, menos preocupado com a demonologia antropológica ou sociológica, sim com toda aquela corte de anjos caídos e príncipes das trevas, porque trabalhava para a escrita de um livro, dos muitos que ficaram inacabados e cujo tema era a malignidade. Livro a que talvez volte.

Do que para ele estudei pouco ficou, exceto o mais importante, o espanto ante a escrita e a imensa curiosidade ante a personalidade do seu autor.

Perseguir-me-iam o resto da vida, até hoje, o tempo em que vivo o resto que há para viver. Fui paulatinamente juntando o que me foi possível encontrar da sua obra.

De todos os muitos livros a que deu vida, parte infinitesimal de quantos projetou, em constante irrequietismo criador, houve um que me marcou de modo indelével, vincando-me a sensibilidade com um rasgão próximo da identidade. O seu nome original L’Uomo Finito tornou-se na tradução portuguesa de Alberto Morais, de 1948, como na que li, de Fernando Amaro, publicada pelos Livros do Brasil em 1960, em Um Homem Liquidado, quando poderia ter ou a tradução literal ou uma outra, mais próxima da semântica que julgo quis ser a do autor, O Homem Acabado.

Biografia do que foi uma vida de profundo envolvimento com as mais variadas e desvairadas correntes filosóficas do seu tempo, é uma obra em que, renegados todos esses erráticos caminhos, Papini lança no final, à juventude do seu tempo, o repto que é a antítese do que o título do livro proclama: não! Giovanni Papini não está acabado, agora, sim, é que começa.

Na altura da segunda leitura do mesmo livro, daqueles que nunca poderemos considerar definitivamente lidos, confiei a um dos blogs que dedico às notas de leitura este breve apontamento:

Terminei-o, fim em dia de Páscoa, e que sentido faz esta coincidência, tudo visto, ante o epílogo desta escrita torrencial, o que dá título ao livro, o clímax de uma epopeia em busca do Absoluto, viagem e salto, afogamento e salvação, a história de um Homem que, anunciando-se morto, nega a possibilidade e proclama ao Destino e a todos os outros que não está acabado, agora que começa.

Livro magnífico, livro que tomaria comigo se tivesse de escolher muito poucos para levar e não mais, livro que me recorda tanto de Friedrich Nietzsche, outro desgraçado, o do super-Homem e do Humano demasiado Humano, mais o da Gaia Ciência, mas tudo num livro só, cozinhado em sofrimento, escrito sem perder nunca o fôlego, confissão de revolta e de amor, desprezo e despojamento, sobretudo, obra de intrínseca e humilde verdade, jogando-se nu até nos seus defeitos rascas e na vanglória do seu excesso de virtudes.

Li-o todo, linha a linha, depois de o ter lido, sem ter lido, em tempos.

Revisto hoje, esse apontamento, ele surge pobre, sobretudo quando cotejado com o que foi o conhecimento que só alcancei muito mais tarde, quando me foi possível confrontar a edição publicada, em 2016, pela Oscar Mondadori, na qual encontro, em nota editorial, que houve uma primeira edição, escrita em 1913, aquela ali republicada e uma outra, revista, quando em 1932 o autor se converteu ao catolicismo e entendeu rever algumas das expressões mais agrestes relativamente à religião que agora professara.

Tratou-se de uma conversão cujo percurso levou a livro, em que trabalhou desde 1923 e que li na segunda edição italiana, intitulado La Seconda Nascita, publicada em 1959.

De entre tanto o que escreveu o autor do monumental Juízo Universal, de que me chegou há pouco a versão original italiana, e do que, se aqui desse notícia, esgotaria toda a revista só comigo e mais ainda, trago também o que reencontrei como notas que tomara quando li, em pleno confinamento epidémico, a obra Palavras e Sangue:

O privilégio de ter um livro, ainda que amarelecido, encarquilhadas as folhas, desbotadas quando não manchadas, a capa, porém, ainda a resistir. Um daqueles livros em que os cadernos iam cosidos antes de a capa ser colada aos folios já batidos, mas em que a guilhotina se ausentava, deixando o corte dianteiro rugoso e imperfeito.

Livro destinado a ter de se abrir com uma faca e ter uma faca adestrada a cortar papel, tudo relíquias de um tempo que parece já tão sumido no tempo, livro indiscreto, a denunciar não ter sido folheado sequer ante os maços por abrir.

Livro assinado pelo que antes o teve como seu, no caso em 1957, ano desta edição, identificado com um ex-libris e que na biblioteca pessoal teve número de ordem manuscrito na folha de guarda.


Livro com orelhas, a esquerda de resumo da própria obra, a direita a anunciar a próxima da coleção, assim fidelizando o leitor.

Livro com capa do pintor Bernardo Marques, que tanto trouxe à ilustração editorial com o seu traço em que pressentimos um Almada Negreiros ou um Mário Eloy.

Ter um livro cuja tradução se prenunciaria fraca, por ter sido isso infelizmente o que sucedeu na editora, mas que é notável porque afinal do poeta brasileiro Mário Quintana, sendo este o seu primeiro trabalho de tradução para a Editora Globo, versão revista para português de Portugal pelo açoriano Agostinho Vieira d’Areia.

Ter a oportunidade de o livro, buscado à estante, ser de Giovanni Papini, essa portentosa figura do panorama literário italiano, de quem tento juntar quanto posso e ler tudo o que escreveu.

Livro de breves contos, publicado no original em 1912, precisamente no ano em que o autor parecia esgotado com o seu Un Uomo Finito, ano prolífico em que traria a lume mais três obras, este, Palavras e Sangue, traz-nos a escrita paradoxal, a equação do tempo com o seu espaço e todo um referencial onírico de desdobramento do eu em um mundo que é o seu próprio espelho.

Difícil escolher em tantas das narrativas qual a que melhor figuraria neste apontamento. Logo o primeiro em que um pescador estendeu as suas redes e de dispôs a enganar também naquele dia os ridículos peixes, em que o vento soprava ainda mais forte, encolerizado com a preguiça das nuvens; ou aquele a que chamou “Sem Razão Alguma”, para cujo personagem, a insónia era o seu excitante e as obras por escrever alinhavam-se, noite a noite, na sua memória, como sonhos artificialmente conservados.

Pena faz que talvez já não haja leitores para quem todo este presente não é mais do que um prefácio, sensibilidades comuns de alguém encerrado como uma mônada, secreto como uma célula, mudo com um noturno felino, seres para os quais a quinta essência da subtileza filosófica consiste em descobrir a diferença entre iguais.

Fico por aqui. Mundos pequenos: um dos pseudónimos de Giovanni Papini foi “Gian Falco”, o mesmo como se iniciou na escrita a nossa Irene Lisboa, a quem dediquei um blog, há tanto tempo por visitar.

Quanto nos irmanamos com ele, enquanto vemos quão reles e liliputiana é a vidinha de que curamos e à qual hipotecamos o mais precioso de todos os bens, o inegociável Tempo, o pouquíssimo tempo que nos é dado.

Quanto nos torna diminutos ante aquele combate demoníaco e salvífico com todos os deuses, pela Razão e pela irracionalidade que a nega, com a Humanidade e ao arrepio dela.

É de norma que se escreva e cite do que se escreveu para provar o que se afirma ou se mobilize o leitor. Impossível é fazê-lo aqui: uma só palavra citada destruiria a magia de todo o conjunto, reduziria a grandeza do escrito, anularia o sentimento do lido.

Dir-se-á que neste período de clausura se devem ler superficialidades reconfortantes. Nego, repudio, combato! Siga-se o exemplo dos grandes solitários, as almas que no deserto do confinamento buscaram as suas entranhas e escrutinaram os círculos do Céu: há que procurar mais alto, escavar mais fundo.

No mundo das coisas práticas em que nos tornámos pelas circunstâncias atuais, parece que tudo afinal encontrou o caminho do trivial para enfrentar a seriedade. Enquanto isso suceder, o Homem prossegue o Reino da Quantidade, tendo passado pelas dificuldades, apenas do muito ao muito pouco.

Talvez não exista a alma, há, porém, o espírito, o de cada pessoa e o Espírito Cósmico, do qual somos centelha provisória jogados no infinito ao sabor da lei da gravitação universal. Ao ler Giovanni Papini senti a esperança depois de ter chegado à agonia do desespero, o sentido pascal, afinal, do renascer.

Tanto mais poderia dizer, retirando das notas soltas, que um dia terei de reunir.

Um dos seus textos mais pungentes, intitulado Le Felicità dell’Infelice, são excertos, aparas lhe chamou [schegge em italiano], já no momento final da vida, perdido o uso dos braços e das pernas, enfim, cego, quase sem poder falar, ditadas em murmúrio a uma sua sobrinha Anna Paskowski e, no entanto, voz de um espasmo final, gritado ao mundo, a proclamar a superioridade do espírito sobre o corpo, o final da luta cruel de quem preferiu o martírio à imbecilidade.

Morrendo em cada dia, escrevia, por interposta mão, e assim vivia. O melhor da sua alma, assim o disse o seu amigo e biógrafo, Roberto Ridolfi, esteve ali, até ao fim.

No momento final, ao receber a extrema unção, o velho guerrilheiro literário, que assumira em 1943 profissão de fé na Ordem Terceira de São Francisco, impacientou-se ao ser chamado pelo seu nome próprio, encerrou em paz o seu espírito angustiado, ante o nome religioso que adoptara: Bonaventura. Tendo vivido tanto e por tantas formas, tornara-se, enfim, aquele outro. 

 


JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS é advogado. Tem-se dedicado à escrita jurídica e ao ensaio histórico, como a apresentação de O Príncipe de Maquiavel e nomeadamente no sector dos estudos sobre a guerra secreta em Portugal nos anos 1939-1945. Publicou os livros A Lusitânia dos Espiões, coletânea de artigos; O Homem das Cartas de Londres, biografia de Rogério de Menezes, agente do Eixo; Uma Agente Dupla em Lisboa, biografia de Nathalie Sergueiew, do XX Committee; O 13º Passageiro, sobre a fatídica viagem do ator Leslie Howard a Lisboa e Traição a Salazar, sobre atuação do SOE em Portugal. Traduziu e prefaciou a narrativa histórica Eu roubei o Santa Maria de Jorge Soutomaior. Na área da ficção, é autor de Contos do Desaforo e do romance Não se Brinca com Facas.




ARIADNA PINEDA (México, 1980). Estudió la Licenciatura en Artes Visuales en la Facultad de Bellas Artes de la UMSNH, así como Diseño de moda en Instituto INMODART en la ciudad de Morelia, Michoacán. Su experiencia profesional se ha forjado creando pintura, escenografía teatral, diseño de vestuario teatral y dancístico, escultura, fotografía, ilustración y muralismo. Sus exposiciones individuales han girado la mayoría en torno al arte con técnicas experimentales realizando obras arte háptico-senso-perceptual para personas con discapacidad visual, otras exposiciones de arte fumage y pintura al óleo, todas con su particular estilo surrealista. A la fecha son 13 sus exposiciones individuales desde el 2011. Participa en exposiciones colectivas desde 1996 dando un total de 38 colectivos. Algunas de sus obras se encuentran en Italia, Canadá, EU, en manos de coleccionistas privados. Ariadna en su creación encontró un nuevo camino con precedencia a partir de años de exploración, experimentación y especialización en la pintura al óleo y el arte fumage, encontrando su propio lenguaje, hoy busca dar a conocer con luz propia su obra surrealista más reciente para tomar con mayor fuerza los caminos de la creación. Ariadna Pineda es la artista invitada de esta edición especial de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 06 – ATHENA (PORTUGAL)

Artista convidada: Ariadna Pineda (México, 1980)

Editores:

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