segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

ALFREDO MARGARIDO | Surrealismo negro

 


Refletir hoje sobre o que foi ou pode ter sido a intervenção dos surrealistas e do surrealismo na Luanda e na Angola dos anos 1954-1958 não é encargo fácil, dadas as múltiplas implicações políticas e culturais que antes e depois daquele momento assinalaram o desenvolvimento do colonialismo português. Por outro lado, relendo hoje a parte substancial do que naquela época escreveu a imprensa angolana, percebe-se de forma clara que aquela intervenção, cujo centro foi a exposição de Artur Cruzeiro Seixas em janeiro de 1957, desempenhou um papel crucial como revelador dos fantasmas da sociedade colonialista portuguesa. Não me parece que todos estes fatos possam ser analisados em clave puramente estética, visto que eles, como de resto todas as propostas de criação e invenção da época, apresentavam um aspecto ético essencial. Daí a inevitável diferença entre o ético e o estético, e a necessidade de considerar no seu conjunto uma ação que desencadeou reações brutais na elite branca angolana. Mergulharemos assim numa estrutura social que, sendo vizinha no tempo, já hoje nos aparece como arcaica e ultrapassada, tendo já desaparecido as formas de relacionamento étnico que a caracterizavam e determinavam. Nem por isso deixam de ser menos úteis, algumas considerações sobre a intervenção surrealista que nela teve lugar; úteis e até reveladoras, pois que graças às reações que provocou, a fechada sociedade dos colonialistas brancos pôs a nu a relativa insegurança em que vivia e o precário equilíbrio da sua autoridade. Se a ação surrealista de que falamos não teve, no plano das decisões, o mínimo efeito prático, parece-me que da releitura dos fatos em causa se pode tirar uma proveitosa lição, que, posto que provisória, serve para fazer luz sobre a força de invenção nas sociedades onde por sistema é sufocada.

Pode talvez surpreender a violência da reação branca, mas também a mobilização de todos os meios de comunicação para comentarem aquela mostra, que se inseria, em plano mais limitado, no seio das atividades que o pequeno grupo surrealista havia realizado no meio luandense e mais largamente angolano. O grupo era formado por Artur Manuel do Cruzeiro Seixas, José Manuel Soares Guedes, Manuel António da Silva Júnior, Maria Manuela Margarido, de quem aqui assina e de Acácio Barradas, com intervenções mais ou menos localizados; à distância, porém, é necessário considerar também Alfredo Azevedo, Jorge Costa e um velho militante do Partido Comunista, que nos apoiou com teimosa persistência, o meu ex-camarada de prisão no Porto, Antero Moreira, que naquela época era contabilista em Luanda. O tempo não esclarece tudo, mas permite às vezes que os contornos se façam mais nítidos e que desapareça o cerrado véu que impede a leitura cristalina. A imprensa e a rádio não se mobilizaram apenas em torno da exposição de Cruzeiro Seixas e não responderam só às provocações surrealistas; defenderam, ademais, um conceito de hegemonia branca, inesperadamente atacada nos fundamentos por uma manifestação que não só transgredia os códigos estéticos vulgarmente praticados e aceites, como propunha a sua abolição, oferecendo em troca uma arte bárbara, apresentada como mais próxima da África do que da Europa. Esta posição aparecia então, e aparecerá ainda hoje a muitos, como inaceitável, já que alterava um dos pontos de referência do sistema: o belo não era branco mas negro. É fácil reconhecer aqui, embora talvez de forma involuntária, a vizinhança com certos segmentos da negritude: para nós, o essencial, porém, era romper o mais sistematicamente e coerentemente possível com o mundo de dominação dos brancos.

Se a nossa atividade anterior e a mostra de janeiro de 1957 pudessem ter deixado qualquer dúvida, algumas declarações ulteriores, as minhas em particular, se encarregaram de as eliminar. É verdade que elas hoje revelam claramente a falta dum claro enunciado político, que, mesmo nos momentos em que está presente, é muito confuso. E nenhuma surpresa há nisso: não havia naquela época em Portugal e menos ainda em Angola, tirando alguns minúsculos grupos africanos, quem tivesse um vocabulário político coerente. Demais, a censura era uma realidade e o grupo de censores em ação na Luanda do tempo cumpria com rigorosa e cega determinação a sua tarefa. Não vale a pena esmiuçar pormenores, mas numa sociedade branca extremamente minoritária e solidária, cada passo devia ser controlado: cautela compreensível do ponto de vista do aparelho repressivo. As nossas posições podiam ser também ingénuas, como ingénua seria a nossa ação, mas não por isso foram menos reveladoras.

A violenta reação da população branca de Angola, através dos seus teóricos que eram os jornalistas, e a mobilização da imprensa para comentar um acontecimento essencialmente estético, mostram até que ponto a sociedade colonial se sentia comprometida não apenas com a exposição de 1957 como até pelos comentários que ela suscitava. A falta de humour era muita e eloquente. Na exposição foi colocada, atravessada numa porta, uma volumosa corrente de ferro, que havia pertencido a uma locomotiva, a qual foi batizada como corrente de ar. A instalação, que parecia ter como único objetivo impedir a passagem, criava a princípio perplexidade, e depois irritação, e já que não constava do catálogo, a pergunta fazia-se inevitável: o que é? Mais tarde, quando todos sabiam já que a exposição era um conjunto formado pelos objetos mais os seus símbolos, juntava-se: o que quer dizer? A resposta – nem fria nem provocatória – era a seguinte: não se vê mesmo que se trata duma corrente de ar? A deslocação daquele objeto pesado e reconhecível para um novo lugar, onde, permanecendo reconhecível, ganhava uma nova e inesperada categoria, irritava em alto grau os colonos de Luanda. Foram muito poucos os que responderam com um sorriso de cumplicidade; a maior parte protestou contra aquela mentira da inteligência destemida e exorbitante dos surrealistas.


Neste episódio sobressai já, com nitidez, aquilo que mais preocupava a população branca colonizadora; os objetos comuns, do dia-a-dia, facilmente identificados e reconhecíveis, tinham outras potencialidades e podiam, se usados com habilidade, assumir papéis diferentes. Ficava assim posta em evidência a polissemia do objeto, que se revelava como a forma mais autêntica de o abordar. Uma tal revelação não só tornava o mundo incómodo como continha de forma implícita, ou até mesmo francamente explícita, uma sugestão: o mundo não é como vocês julgam tê-lo organizado, estrutura-se afinal de modo autónomo, independentemente dos vossos desejos. Assim, se o mundo dos objetos do quotidiano podia ser transferido para um outro espaço, mais preocupante parecia ainda ser a deslocação dos homens. Também eles eram dominados, mas também eles podiam entrar depressa numa lenta deriva de sentido que os levasse a expulsar os brancos e o seu poder. A sociedade branca deu-se conta de forma acentuada, naquele princípio de 1957, que o seu domínio não era assim tão total como ela desejava e pensava.

Também a reação diante dum outro objeto é singularmente reveladora. Tratava-se dum tabuleiro de xadrez com uma caixa que continha as peças e da qual saía uma longa cabeleira negra que flutuava no espaço como uma alga ou uma nuvem. A relação entre o objeto geométrico e o carácter aparentemente livre dos cabelos criava surpresa, se bem que não fosse óbvia a intenção do objeto assim criado. O sentido oculto estava noutro ponto, e nas visitas demoradas, organizadas ou desorganizadas, era necessário esclarecer-lhe o sentido. As peças, a preto e branco, postulavam uma interpretação das cores: não podia existir tabuleiro e jogo se não se considerava a necessidade funda e constante de igualdade racial. Os espaços brancos e negros equilibravam-se alternadamente, e no confronto do jogo, entre peças brancas e negras, entre rei negro e rei branco, não havia uma prioridade de dominação, mas apenas a igualdade proposta e imposta pelo acaso. O nosso objeto desejava chamar a atenção sobre a estrutura que devia ser proposta a qualquer sociedade, em especial àquela em que vivíamos: a igualdade. O antropomorfismo subtilmente sugerido, ou até imposto pela cabeleira negra, servia como elemento revelador, para colocar ainda mais em evidência o sentido humano da nossa proposta.

Se as explicações sobre a corrente de ar eram só provocadoras, ou desse modo podiam ser interpretadas, já que induziam um mal-estar que podia ser superado se o espectador considerasse que tudo aquilo pertencia ao domínio do irracional, a reação frente ao tabuleiro antropomorfizado não era do mesmo tipo, nem podia sê-lo, pois não existia aí a mínima ambiguidade interpretativa; nesse momento a simples hipótese duma paridade de grupos étnicos não se limitava a desgostar, mas repugnava. Creio que as nossas propostas e as reacções que suscitaram não podem ser compreendidas se não se tem em conta o contexto em que se situavam, onde a mais pequena invocação da simples igualdade jurídica ou constitucional dos direitos provocava a cólera dos colonos, que justificavam o seu privilégio social com a cor branca da pele, por vezes um branco mais teórico do que real, ou melhor ainda com a ausência, também só hipotética, duma única gota de sangue negro. É então óbvio que a nossa proposta de igualdade, simbólica por um lado, mas acompanhada por outro por novas manifestações e atitudes, se colocava como um desafio à maioria branca, presunçosa da sua missão civilizadora, ao ponto dum qualquer branco, privado de gosto e de cultura, se considerar superior a qualquer negro, desprezando, como se soubesse ajuizar com critério, as criações estéticas africanas.

Em conclusão a exposição tornou-se bem depressa o lugar onde eram postos em causa os valores sagrados daquele mundo colonial. Numa declaração que me foi pedida pelo jornalista Acácio Barradas, nosso cúmplice ativo na divulgação jornalística das nossas obras de denúncia dos vícios do colonialismo, quis expor os pontos que me pareciam mais significativos: o carácter da sociedade colonial inteiramente consagrada ao lucro a qualquer custo e a existência de outras hipóteses sociais. Para o primeiro ponto apoiei-me em Fernando Pessoa, que tinha denunciado os cadáveres adiados que procriam; quanto ao segundo, tentei demonstrar que apenas na sociedade negra, e porventura em alguns nichos campesinos, teria sido possível encontrar uma motivação suficiente para continuar a viver e sobretudo para transformar radicalmente o que existia. Foi a proverbial gota de água a mais, que fizeram explodir os insultos, como de resto era inevitável. Um comerciante sério, Jaime de Amorim, proprietário duma casa de ferragens na baixa da cidade, adiantou-se a sugerir em segredo coisas sórdidas contra nós, que teriam significado a nossa destruição, afirmando que ele e os seus colegas estavam na disposição de colocar as coisas no lugar. Com a violência, naturalmente: e nada disto é para admirar, já que a cidade de Luanda, como qualquer outra cidade africana onde uma minoria domina sobre uma maioria, respirava o medo, o pânico, talvez mesmo a morte.

Se as exposições e a atividade surrealista em Portugal, e em Lisboa mais do que em qualquer outro lugar, sempre suscitaram contra si a cólera dos bem pensantes e até daqueles que por si nada pensavam, um resultado ainda mais dramático foi obtido em Luanda, com a totalidade da população branca, a que se juntou uma importante parcela da mestiça, condenando-nos em nome da estética e sobretudo mostrando-se disposta a defender-se duma ameaça vaga, mas sentida como altamente perigosa. E se o contexto cultural de Lisboa ainda podia permitir alguma ilusão sobre a veemência da rejeição, em Luanda não existia tal contexto e as reações eram mais nuas e cruas. Não se pode, porém, esquecer que a exposição de Azevedo, Lemos e Vespeira, na Casa Jalco, em 1951, provocou uma exposição por parte dos comerciantes de Lisboa, pedindo que a mostra fosse encerrada, pois constituía um atentado à honestidade deles. Não obstante, podia-se invocar diante das autoridades, no campo da estética, os comentadores reconhecidos e toda a parafernália da cultura para defender uma atividade puramente criativa. Em Luanda não era possível, pela falta dum tecido cultural que permitisse defesa ou legitimação.

A falta deste tecido, que nos podia ter servido de escudo, provocou ainda outros efeitos reveladores. A população de Luanda, e uma parte significativa da população do resto de Angola, informada pela imprensa e pela rádio, sentiram a exposição de 1957 como uma manifestação de incrédula alucinação: a iniciativa partia de brancos que não hesitavam em colocar em cima da mesa a hipótese duma africanização da cultura. É preciso aqui ter consciência do carácter eminentemente racista da sociedade portuguesa, que nos trópicos se acentua ainda mais. Diz-se um pouco por todo o lado, e Gilberto Freyre muito contribuiu para consolidar esta tese, que o luso-tropical não tem o mesmo código de comportamento racial dos holandeses e dos ingleses. Todos sabemos que não é verdade: a sociedade portuguesa pratica o racismo dos hipócritas, dos que não ousam olhar de frente a questão, mas qualquer um se pode dar conta que a exclusão existe. Para o provar bastava então a topografia de Luanda, com um pequeno núcleo, a cidade baixa ou branca, e em volta a imensa cidade africana e negra, com os vários bairros ou aglomerados, de nomes bem expressivos (Cayatte, Prenda, Lixeira…).


Foi até num destes bairros que nos instalámos, numa casita da Circunvalação, isto numa noite em que decidimos, Cruzeiro Seixas e eu, pintá-la, depois de comprarmos na loja mais próxima todas as latas de tinta que havia. Pintura improvisada ao máximo, sem plano determinado, mas que procurava a adesão dos nossos vizinhos africanos, que tanto entravam para juntar um traço insólito, uma extravagância, uma sugestão. Uma casita que afinal provocou um conflito entre nós e o encarregado da ordem pública na cidade africana, o famoso Poeira, que não podia admitir a existência daquela ilhota africana, a qual não podia controlar com os mesmos meios despóticos que usava com os africanos. Só a nossa presença naquela zona era já um sintoma duma osmose profunda entre surrealistas e africanos: uma convivência e uma preferência que era preciso condenar peremptoriamente. Também as outras atividades por nós desenvolvidas não deixavam dúvidas quanto à loucura das propostas. Uma vez comprámos um grande automóvel, modelo de 1925, com estofos de veludo verde, e decidimos transportar nele uma gigantesca árvore de caju acabada de desenraizar para dar lugar a uma construção, com o fito de a replantar no nosso logradouro que não tinha árvores suficientes para o nosso gosto. Num domingo saiu à estrada toda a população branca da cidade para assistir à passagem daquele inesquecível cortejo, acompanhado ainda musicalmente por alguns amigos africanos que havíamos convidado. Lastimavelmente o caju não pegou e este fato é ainda hoje uma das minhas grandes tristezas luandinas.

Era necessário tomar também em mãos a reapropriação da natureza. Um grande número de objetos expostos foi montado a partir de restos abandonados por um mar generoso nas intermináveis praias dos arredores. E mais uma vez a sociedade branca era forçada a estabelecer uma conexão com esta natureza desprezada e sobretudo desfigurada. O crescimento de Luanda podia medir-se pelo número de embondeiros abatidos para dar lugar às casas dos brancos, ao capital branco, ao capitalismo branco. A relação direta entre o embondeiro e a população negra era destilada no texto de apresentação da exposição; através duma tradução de Lautréamont punha-se em relevo a qualidade mágica do embondeiro. Isto era uma outra forma de provocação, pois esta árvore, que fornecia frutos comestíveis, madeira para construções e até água, já que armazenava este líquido no momento das chuvas, assim se enraizando de forma incontornável na vida dos negros africanos, era tomada pelo homem europeu apenas como uma árvore exótica e por isso insignificante. De novo a visão que nós, surrealistas, tínhamos da África era diferente da concepção utilitarista da colónia branca.

A operação de recuperação dos detritos litorais funcionou às maravilhas no sentido desejado pelos surrealistas. Na natureza – e era isto que se procurava dar a entender – não há desperdícios; a natureza, em cada fase, apenas propõe formas novas, ao contrário de tudo o que acontece na sociedade branca e aos objetos que ela produz. Um albatroz morto pelos caçadores europeus, caído no mar e restituído às praias reduzido a esqueleto devido à voracidade dos peixes e dos crustáceos transformava-se logo num concentrado de propostas plásticas, que bastava deixar sedimentar para que pudessem ser usadas na reconstrução do universo. De forma improvisada o desperdício autonomizava-se, propunha-se como exemplo e incitava a criticar o gosto destrutivo da sociedade branca, incapaz de compreender a subtileza das proposições da natureza. Neste campo acontecia o nosso encontro com a sociedade africana: porque ao mesmo tempo que os brancos denunciavam sistematicamente a nossa ação, os africanos vinham visitar a exposição misturando-se com os brancos e encontrando nela motivos de adesão e de entusiasmo. Também nesta reação os africanos se opuseram ao snobismo dos brancos: ou aprovavam, compreendendo e amando, ou reprovavam, mas sem falsos argumentos intelectuais, privados de afeto.

A nossa mostra, e fora dela de toda a nossa atividade criativa e provocatória, não prescindia, é verdade, de construção intelectual, mas exigia também uma dimensão afetiva, dimensão esta quase inexistente no mundo branco, absorto de todo na procura do lucro. Na verdade, a denúncia do espírito comercial de Luanda continha a denúncia de todo o sistema baseado na venda da força de trabalho e na venda da terra. A África de expressão portuguesa, como as outras regiões do continente, havia sido vítima desta transformação essencial da economia liberal. Assalariados submetidos ao código urbano, os africanos estavam excluídos da natureza e todavia entendiam a essência da nossa proposta, que refutava antes de mais os elementos urbanos puros. Não alinhando por inteiro com a denúncia da cidade que havia sido feita pelos expressionistas alemães ou por alguns poetas portugueses, como Gomes Leal e Teixeira de Pascoaes, não podíamos ainda assim aceitar a topografia de Luanda, rigidamente dividida num espaço branco e num espaço negro. Nisto os surrealistas eram mais coerentes que a oposição política, já que denunciavam o desfasamento existencial entre a proposta europeia e a qualidade da vida, enquanto os segundos não iam além dum discurso formal que elogiava os valores duma oposição política formalmente vaga, promovida de resto por homens que pertenciam ao escol dominante e controlavam alavancas essenciais da economia angolana. Ao invés os surrealistas apresentavam-se sem suportes oficiais ou oficiosos e não se serviam das instituições para encontrarem uma razão deles, que de resto não queriam alcançar, nem elaborar, nem programar, admitindo deste modo uma a-razão e sobretudo uma não-razão, isto é a possibilidade de construir formas livres dos modos razoáveis em que se estruturava o mundo português e europeu no seu conspecto.


É necessário desde já desfazer qualquer engano: os surrealistas não fizeram tudo aquilo que devia ou podia ser feito. Ainda assim, para se entender a importância da sua ação, e fora de qualquer intenção de canonização hagiográfica, que está longe dos meus propósitos, bastará refletir no fato de, num ambiente no qual os brancos calavam entre si as discórdias para fazerem frente comum contra os negros, terem aparecido alguns brancos que não só desertavam do bloco português como afirmavam a radical superioridade dos valores africanos sobre a miséria dos projetos europeus. A sociedade branca foi forçada a interrogar-se, ainda que pouco e por pouco. Tratou-se, é claro, duma autocrítica difícil, para não dizer impossível, porque teria comportado um mal-estar que obrigaria a pôr em causa o próprio colonialismo. Por esse motivo a reação da imprensa foi tão violenta e fechada a qualquer tipo de diálogo: se um branco se afasta, pouco ou muito, dos modelos da sociedade colonial, deve ser de imediato condenado e marginalizado, se não mesmo erradicado e expulso.

E se a sociedade colonial aceitava os casos de africanização de brancos isolados na floresta que adoptavam usos e costumes africanos, era porque se tratavam de casos esporádicos, sem contato com o mundo urbano e dizendo respeito a indivíduos de estratos sociais modestos, desprovidos da bagagem cultural indispensável para resistir com eficácia à pressão do contexto social. Tais acidentes, condenáveis em si, tinham, porém, uma larga utilidade, já que serviam de pretexto para impor normas severas de comportamento, em especial aos africanos, que deviam resguardar-se nos seus espaços, preservando a sociedade europeia de qualquer contaminação. Ora os surrealistas podiam ser culpabilizados de tudo ou de quase tudo, mas nunca podiam ser acusados de analfabetismo e de irresponsabilidade no plano cultural e social. As suas atividades profissionais, os seus percursos académicos não deixavam qualquer espaço para este género de argumentos. A africanização que eles propunham não só era inédita como a sua exposição, a sua teorização impunha argumentos diversos, que os ideólogos do colonialismo não eram capazes de contraditar. Por esse motivo viram-se constrangidos a recorrer à repressão.

 

NOTA FINAL

O texto de Alfredo Margarido (1928-2010) que aqui se apresenta por gentileza de Isabel de Castro Henriques, a quem muito se agradece, foi publicado pela primeira vez em língua italiana, Surrealismo in Colonia (Quaderni Portoghesi, Pisa, Giardini Editori, Primavera de 1978, pp. 53-64), com separata. No mesmo número, Jorge de Sena publicou o texto “Notas acerca do surrealismo em Portugal”, datado de Santa Bárbara, 16 de abril de 1978, por certo um dos derradeiros que escreveu, se não mesmo o último, visto que morria muito pouco tempo depois. Na reedição do texto em livro, em Estudos de Literatura Portuguesa – III (1988), a organizadora do volume, Mécia de Sena, em nota bibliográfica final, esclarece que o texto foi solicitado por Luciana Stegagno-Picchio e levado por esta ao italiano. O mesmo por certo sucedeu com o de Alfredo Margarido, cuja versão original, em língua portuguesa, hoje se desconhece. Optei, pois, por uma tradução a partir do italiano, com título livre, mas próximo do texto, dando a conhecer pela primeira vez, tanto quanto sei, o conjunto em português. Tendo sido um dos protagonistas da ação surrealista em Luanda, Margarido, que acabou expulso de Angola por causa dela, pagando caro o atrevimento, deixa nestas linhas um contributo de monta para se começar a entender um segmento quase desconhecido do surrealismo em Portugal, a intervenção que ele teve na Luanda colonial da década de 50 do século passado. No livro A Intervenção Surrealista (1966), Mário Cesariny recolheu a propósito desta extensão alguns trechos jornalísticos, centrados todos nas duas exposições de Cruzeiro Seixas na cidade, a primeira em novembro de 1953, a segunda em janeiro de 1957, esta largamente tratada no trabalho de Margarido. Entre os extratos relativos à segunda mostra, Cesariny recolhe um do jornal O Comércio de Angola (23-1-57), da autoria de Jaime de Amorim, referido por Margarido como um dos contraditores da exposição. Cito passo, que dá a ver a medida do escândalo que a mostra provocou na sociedade branca angolana: Também eu, depois de engolir um sapo, cobrei ânimo para ir até o antigo covil dos ladrões, ver uma coisa a que impropriamente chamaram exposição de pintura… Fui evidentemente logrado, porque ali não há pintura, não há cor; há cheiro… fétido. (…) Não vi pintura, mas vi lixo; não vi arte, mas vi imundície; não vi originalidade, mas sim… ! Um dos interesses do texto de Margarido está em fornecer elementos sobre a existência dum grupo surrealista organizado em Luanda na segunda metade da década de 50 e que terá acabado por causa da dispersão dos seus membros – Cruzeiro Seixas regressou a Lisboa no início da década seguinte e Margarido foi expulso de Angola, pelo governador-geral, ainda em 1957, e proibido de aí regressar, tendo-se exilado em Paris no início da década seguinte, não sem antes passar pelas mesas do café Gelo, vindo a colaborar nas mais importantes publicações desta geração, Folhas de Poesia, Pirâmide e KWY. [ACF]




ALFREDO MARGARIDO (Portugal, 1928-2010). Escritor, ensaísta, investigador, professor universitário, poeta e pintor. Na área jornalística colaborou nas publicações periódicas: 57 (1957-1962) e na revista Pirâmide (1959-1960), tendo publicado com alguma regularidade no Jornal de Letras, até 1964. Na revista portuguesa de vanguarda KWY, editada em Paris entre 1958 e 1964 por René Bertholo e Lourdes Castro, com outros artistas portugueses e estrangeiros, Alfredo Margarido marcou presença com o ensaio «Deformação e desagregação na pintura contemporânea», publicado no número 6 da mesma série, em junho de 1960. Neste texto, o escritor e poeta desenvolve uma análise original da obra de arte e do fazer da arte na época contemporânea, à luz das ideias de Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre e Adorno. Alfredo Margarido estudou na Escola de Belas-Artes do Porto e expôs obras de cerâmica no Porto e em Lisboa, em 1954, bem como esculturas em Luanda, Angola, em 1956. Após alguns anos em África, onde trabalhou na produção agrícola em São Tomé e Príncipe, transferiu-se para Angola, onde foi responsável pelo Fundo das Casas Económicas, corporação que pretendia resolver o problema de habitação da classe média ascendente. Todavia a sua intervenção na imprensa provocou uma reação violenta do Governador-geral, Horácio José de Sá Viana Rebelo, que ordenou a sua expulsão. A partir de 1964 instala-se em Paris, com o apoio de uma bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo-se integrado nos movimentos de extrema-esquerda. Criou e co-dirigiu a revista Cadernos de Circunstância. Ensinou em Paris I (CRA), Paris II (Lógica matemática), Paris VII (Jussieu), Paris VIII (Vincennes, mais tarde St. Denis). Tendo ensinado também na Universidade Júlio Verne e no Institut d’Art, ambas em Amiens. No Brasil ensinou nas Universidades de S. Paulo (USP), Campinas, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade da Paraíba do Sul (João Pessoa). Dedicou-se especialmente à sociologia da literatura e aos problemas africanos. Poeta cuja obra apresenta elementos surrealizantes, bem como ensaísta e ficcionista, foi um dos introdutores do nouveau roman francês em Portugal.




FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

  



Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA  REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)

Artista convidado:  Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)

Editores:

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