segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Breve nota sobre o combate cultural do nosso tempo surrealismo e crítica situacionista



A Internacional Situacionista teve o seu período de vida entre 1957 e 1972, num arco de 25 anos, legando uma inter­ven­ção reflexiva e prática que não mais deixou de interpelar as correntes críticas do actual modo de vida social – isto ao mesmo tempo que algumas das suas noções se banalizaram paradoxalmente no discurso jornalístico, perdendo por aí parte da sua solitária soberania. Júlio Henriques, que é desde a década de 70 do século passado, altura em que edi­tou a revista Subversão Internacional (1977-79), um dos mais empenhados divulgadores das ideias situacionistas em por­tuguês, além de tradu­tor experimentado da obra de Guy De­bord e da de Raoul Vaneigem, acaba de organizar uma an­tologia de sete textos da Internacional Si­tuacionista, to­cando três dos seus autores (Guy Debord, Gilles Ivain, Mus­tapha Khayati) e cobrindo o arco temporal que vai de 1957 até 1966, o período áureo da teorização situacionista, em­bora o célebre livro de Debord A sociedade do espectáculo só tivesse sido publicado, mas como convergência de muito la­bor anterior, em 1967.

A antologia de Júlio Henriques, intitulada Relatório sobre a constru­ção das situações e sobre as condições da organização e da acção da ten­dência situacionista internacional seguido de tex­tos do boletim Internati­onale Situationniste [trad., pref. e no­tas J. H., Lx., ed. Barco Bêbado, 2021, pp. 96 – ilustrações a cores (“desvios gráficos”): Francisco Re­bolo, João Massano, Juliana Julieta, Massimo Nota, Miguel Ângelo Marques, Nu­nes da Rocha], e que não é a primeira, escolhe com pre­cisão manual um conjunto significativo de textos, onde, num uni­verso mínimo de sete peças, três tão-só com três páginas, encontra­mos as ideias mais representativas do movimento. Edição pri­mo­rosa com grafismo pessoalizado e tiragem única de 300 exemplares, o vo­lume surge-nos assim como a ocasião de revisitar esta corrente de ideias, naquilo que mais pode interessar esta revista, as relações que ela mantém com o surrealismo, embora sem menosprezar outros pontos que possam ajudar ao entendimento da natureza, condição, si­tuação actual e possível destino futuro desta corrente de ideias.

Noutro lugar deste volume da revista A Ideia pode o leitor encon­trar um informado texto sobre as conexões entre situ­acionistas e anarquistas franceses, relações que também de sobremaneira nos interessam, mas que têm, por escassas e de superfície, muito menos relevância histórica que o rela­cionamento com o surrealismo. A for­mação de Debord fez-se dentro da leitura de Marx e dos seus co­mentadores mais argutos e desalinhados dos cursos dominantes da época, e se se fala da conexão entre si­tuacionistas e anarquistas foi porque estes receberam com simpatia – e logo à saída do primeiro número do boletim I.S. (Junho, 1958) a expressa­ram – algumas das teses situacionistas, em que viram, numa época estéril e hostil, em quase tu­do contrária à sensibili­dade libertária, sinais afins. É sabido que esses promissores botões iniciais não chegaram a florir e menos ainda a fruti­ficar e que as duas correntes deram entrada nos sucessos de 68 cada uma por si e sem vislumbre de junção mínima.

A questão do surrealismo é outra. A ligação entre as duas facções, situacionista e surrealista, é significativa, não se fi­cou em promessas iniciais e tem um demorado historial, por vezes entrançando as duas correntes em certeiros nós e cru­zamentos. Dos três afluentes que estão na origem da Inter­nacional Situacionista (letrismo, imagi­nismo, grupo COBRA) dois têm filiação no surrealismo ou numa dis­sidên­cia deste, o surrealismo revolucionário de 1947, que reagrupava gente que vinha do grupo surrealista La Main à Plume, activo em Paris na ocupação nazi, à qual resistiu com brio, e do surre­alismo belga, que reafirmava então perante o desagrado de André Breton a ligação do surrealismo ao marxismo-leni­nismo e ao partido comu­nista belga. Com dois manifestos e dois eixos, Paris e Bruxelas, foi do surrealismo revolucioná­rio que saíram o grupo COBRA (1948-53) e os imaginistas da Bahauss, depois activos na fundação da Internaci­onal Situ­acionista. Embora as duas correntes no momento da cria­ção da nova internacional estivessem já fundidas, preferimos aqui por razões de compreensibilidade manter a distinção. Não menos tocante foi o legado experimentalista que o grupo COBRA fez questão de firmar – o primeiro em arte a fazê-lo – e que tão decisivo se mos­trou para a teorética inicial situa­cionista, como aliás o foi depois para outras afirmações ex­perimentalistas da arte e da poesia da segunda metade do sé­culo XX.

Demais as relações directas entre a Internacional Letrista (1952-57), de que Debord é um dos promotores, e o grupo de Breton tiveram vários episódios, chegando os dois gru­pos a assinar, por ocasião do centenário do nascimento de Arthur Rimbaud, em 1954, uma decla­ração comum. O sur­realismo está presente em quase todos os escri­tos iniciais de Debord, e os antologiados por Júlio Henriques não fa­zem excepção, sendo por isso representativos duma sen­sibili­dade geral, extensiva ao grupo que deu corpo à crítica situacionista. A título de exemplo lembre-se que o primeiro número do boletim I.S., de Junho de 1958, que mostrou pela primeira vez ao público as ideia situacionistas, e do qual Jú­lio Henriques extrai nada menos que três textos dos sete que antologiou [um de Debord, um de Gilles Ivain (pseudó­nimo de Ivan Chtcheglov, 1934-1998, situacionista à dis­tância) e outro sem assinatura], abre com um texto não assinado, e por isso da autoria do director da publicação, G. Debord, em que o grupo se reconhece, intitulado “Amère victoire du surréalisme”, consagrado a um balanço crítico da situação do surrealismo. Tanto este movimento como o seu criador, André Breton, surgem assim como os grandes fantasmas do passado recente com que a crítica situacionista teve de se confrontar. Veremos como e com que sus­tentação.

Comecemos pelo primeiro texto, “Relatório sobre a cons­trução das situações e sobre as condições da organização e da acção da tendên­cia situacionista internacional”, que a partir de agora desig­nare­mos apenas por “Relatório” e que é o texto mais longo (pp. 11-40) e mais significativo deste sep­tenário antológico. Para bem dizer, o “Relató­rio” é o texto fundador da corrente situacionista, e por certo um dos mais importantes de Debord, onde se contêm em explosiva con­cen­tração as linhas que depois foram exaustivamente per­corridas. Anunciado no penúltimo numero de Potlatch (22-5-1957), a revista da Internacional Letrista, impresso na Bél­gica por Marcel Mariën e dis­tribuído em Junho de 1957 num círculo restrito e escolhido de pes­soas, o texto, que propu­nha num dos seus pontos a criação da Inter­nacional Situa­cionista, destinava-se a servir de documento de refle­xão aos mem­bros da Internacional Letrista (o grupo de Débord), aos do Movimento Internacional para uma Bahauss Imaginista (de Asger Jorn) e aos do Comité Psicogeográfico de Londres (de Ralph Rumney), propondo a fusão destes grupos numa nova Internacional, que funcionasse como plataforma de oposição e de unidade de ac­ção. No final de Julho, os seus membros encontraram-se na Ligúria, norte de Itália, unifi­cando-se na Internacional Situacionista, que nascia como “frente revolucionária na cultura”. Uma tal frente co­meçara já de resto a definir-se num encontro anterior, em Alba, Itá­lia, em Setembro de 1956, em que várias tendências artísti­cas expe­rimentais (letristas, imaginistas, experimentalistas e surrealistas re­volucionários) estiveram presentes.

O texto de Debord, mais “agregador” que fundador, já que retoma num todo contributos dispersos anteriores, aparece dividido em seis partes: “Revolução e contra-revolução na cultura moderna”, “A de­composição, estádio supremo do pensamento burguês”, “Papel das tendências minoritárias no período de refluxo”, “Plataforma de uma oposição pro­visória”, “Rumo a uma Internacional Situacionista”, “As nossas tarefas imediatas”. Trata-se no conjunto dum texto es­tratégico, que se posiciona com os tópicos clássicos dum movi­mento político revolucionário, embora o seu discurso resulte dum debate que assentava nos grupos que estavam na base da nova inter­nacional, cujas questões primaciais se colocavam no campo da arte e no rumo que esta tomara no pós-guerra com a fundação do le­trismo em 1945, do imagi­nismo de Malmö em 1946, do surrealismo revolucionário em 1947 e do movimento COBRA em 1948. Este último reunira já em si todas as tendências anteriores, em especial as que vi­nham do surrealismo revoluci­o­ná­rio, ele mesmo ponto de conver­gência de cursos vários [surrealismo belga do mani­festo Le sur­réalisme en plein soleil (1945), surrealismo francês do grupo La Main à Plume (1941-45), abstrait-surr de Cope­nhaga(1937-40)], só admitindo uma arte internacional – sem fronteiras externas ou internas, já que tudo era experimen­tação. O nome do grupo, COBRA, resultava da junção das pri­meiras letras de três cidades europeias – Copenhaga, Bru­xelas, Amesterdão, as três referên­cias geográficas dos fun­dado­res, Asger Jorn, Charles Dotremont, Apell e Constant, ligados todos ao surrealismo revolucionário, cuja última manifestação, em Novem­bro de 1948, foi a fundação do grupo COBRA. A diferença deste em relação ao surrealismo anterior, revolucionário ou não, foi acei­tar para lá do modelo mental próprio a todo o surrealismo uma expe­rimentação fí­sica e gestual que à época encontra correspondência invo­luntária na action paiting e no dripping de Jackson Pollock, tam­bém eles em dívida para com o surrealismo por via de Max Ernst então nos Estados Unidos. Talvez a novidade de Debord, aquilo mesmo que faz a di­ferença do texto de 1957 como um todo em relação à soma das suas partes, seja a contextualização política e o enqua­dramento estratégico que ele lhe imprime. Esta novidade atravessa todo o texto e manifesta-se com cintilante pre­sença logo nas páginas iniciais, se não mesmo na frase de abertura, “Pensamos antes de mais que é preciso mudar o mundo”. Tudo aquilo que fez depois a história da crítica si­tuacio­nista está já em expansiva latência neste texto e nas suas teses – al­gumas só circunstanciais, outras muito mais substanciais. O texto surge como um viveiro de sementes, a partir do qual e sem grandes novidades, se definem mais de 20 anos de his­tória das ideias; nas suas linhas lêem-se muitos dos sucessos que tiveram lugar nesse período que teve por epi­centro a tempestade estival de Maio de 68, mas tocou ao final acontecimentos tão vários como as mobiliza­ções contestatá­rias na Europa de leste, a contracultura americana e europeia, o auto­nomismo ita­liano, a revolução portuguesa dos cravos e o fim do franquismo.


O primeiro tópico ou a primeira tese que paga a pena des­tacar, e que constitui porventura a marca mais inconcutível do pensamento situacionista, um dos seus sentidos mais in­deléveis, é a dívida de Debord, e não apenas dele, para com uma tradição do pensamento revolucionário europeu e oci­dental, que tanto está presente na cor­rente libertária da pri­meira Internacional operária como na mar­xista, que via no desenvolvimento das forças produtivas trazidas pelo capita­lismo a base material indispensável para alcançar a socie­da­de de abundância – socialista e comunista. É isso que se afirma na aber­tura do “Relató­rio” quando se aponta para a “dominação racional das no­vas forças produtivas”, para a “base material indispensável da sociedade socialista”, para a “acção política revolucionária no desen­volvimento das possibilidades modernas de produção” e para outras se­quências que vão no mesmo sentido. Este ponto de Debord e da crítica situacionista, alinhado com toda a tradição re­volucionária operária anterior, fosse marxista ou comunista libertária, embora Debord o tenha recebido por aquela e menos por esta, e que será desenvolvido em força até pelo menos 1967, mantendo-se até ao mo­mento da dissolução da Internacional Situacionista, cujo imaginário gira sempre ao redor da “automatização geral da produção” para pôr fim ao trabalho, é hoje um dos tópicos que a nosso ver mais fragi­li­zam esta corrente de ideias, tornando-a irremediavel­mente uma etapa arrumada no passado, que no essencial pouco nos pode ajudar a entender o presente e a perspecti­var um projecto mobilizador de futuro.

Leia-se nesse sentido a aproximação crítica de Gianfranco Marelli ao situacionismo que damos a conhecer neste vo­lume d’ A Ideia. A importância estratégica deste ponto, a crença nas possibilidades mo­dernas de produção, no plano geral da crítica situacionista, a sua centralidade nas propos­tas avançadas por Debord, pelo menos do Debord que mais influiu nos sucessos sociais do seu tempo, não nos permi­tem encarar o situacionismo e os seus teóricos no mesmo plano de outras correntes dissidentes que tiveram como ponto de partida a crítica da base material e técnica do capi­talismo e do de­senvolvimento das suas forças produtivas. Um pensador de raiz cristã como Jacques Ellul, que se viu por isso impedido de aderir à Internacional Situacionista, e isto para não apontar os exemplos muito mais radicais de Gandhi ou Lanza del Vasto, percebeu com mais acuidade, na época em que Debord escrevia o “Relatório” e a Interna­cional Situacionista pela mão de Asger Jorn e de Constant se preparava para o desenvolver, que a base técnica do de­senvolvi­mento do capitalismo não podia servir um projecto que queria mu­dar de vida e transformar o mundo. En­quanto tal base existisse, mundo e vida teriam de ser iguais, condicionados que ficavam pelos mesmos objectos. O que importava era impugnar essa estrutura ma­terial técnica, descobrindo uma distinta que, sendo outra, tivesse em si uma nova potencialidade de relacionamento com o mundo e com a vida. Depois de Ellul ficámos cientes que para criar uma nova ma­neira de viver, mais justa, mais equilibrada, mais humana, menos infamante, não basta dar nova orien­tação ao que hoje existe – e uma tal proposta foi a caracte­rística do pensamento revolucionário e até reformista desde a primeira Internacional operária até à Internacio­nal Situa­cionista. Para criar um novo modo de viver é necessário des­fazermo-nos da estrutura material técnica que criou e de­senvol­veu o capitalismo e que está hoje, seja em países ori­entados para o “comunismo” como a China, seja em países que defendem em várias modalidades o capi­ta­lismo, a des­truir a Terra e a vida. O que unifica todos esses modelos na aparência distintos é o facto de todos assen­tarem em idên­ticos meios de produção. Não obstante as diferenças, pode pensar-se que esta base material os vai pouco a pouco uni­for­mizando, sendo previsível num ponto do futuro não muito distante a sua indistinção num híbrido único com poucas e insignificantes vari­antes.

 O texto de Debord e a crítica situacionista que se lhe se­guiu ao perceberem o inaudi­to desenvolvimento das forças de produção no início da segunda metade do século XX, sem termo de comparação anterior, perceberam também as modificações que estavam a nascer no plano da dominação e já não apenas no da exploração econó­mica, até porque esta beneficiou no momento, fruto de acelerada produ­ção e acumulação de riqueza, de lógicas distributi­vas e compen­sató­rias até aí desconhecidas. Um novo conjunto de meca­nismos ocul­tos, da publicidade ao urbanismo, do consumo ao lazer, todos inti­mamente ligados à mercantilização de no­vos aspectos da vida, os mais invioláveis até aí, invadiram o quotidia­no nas sociedades de­sen­vol­vi­das, resultado imedi­a­to do es­for­ço técnico de guerra e do desenvolvimento ace­lerado dos meios de produção que aquele pro­vocara, com o conse­quente aparecimento e acumulação de nova e desme­dida riqueza. Foi nesses meios de produção, típicos da so­cie­dade dita de consumo, capazes de gerar uma era de abundância nunca vista que Debord e os situacionistas vi­ram uma nova oportu­nidade para relançar a ideia duma revolução comunista, de tipo conselhista, que seria a finali­zação lógica do processo de cresci­mento a que se estava a assistir desde a segunda metade da década de 40 do século XX. Sabemos hoje o engano deste raciocínio e como ele re­presenta o erro capital do situacionismo – a crença enga­nosa de que a base material do capitalismo, a sua tecnologia mais carac­terística, pode servir, livre de condicionamentos congenitais, para construir um mundo novo.

Mas foi também essa mesma percepção do inesperado de­senvolvi­mento dos meios de produção, com a sequente acu­mulação duma desmedida riqueza que tinha de ser rapi­damente consumida, que levou Debord e os situacionistas a atentar na vida real, pondo em destaque as imensas, mas quase imperceptíveis, transformações que se estavam a dar no quotidiano. Instituíram desse modo uma crítica impie­dosa das novas modalidades de dominação que em tudo se re­velou inovadora, lúcida e corajosa e cujo legado é ainda hoje um dos legítimos motivos de vaidade do situacionismo. Numa intuição que vinha já dos grupos iniciais que funda­ram em 1957 a nova internaci­onal, foram assim os primeiros a fazer a leitura arrasadora do urba­nismo funcional, que, embora criado em período anterior, só na­quele momento procedia em extensão, arrasando o território e cri­ando um género de vida atomizado e angustiante que não conhecia paralelo no passado. Foram também eles os primeiros a per­ceber em profundidade os mecanismos espectacula­res da pu­blicidade – e daí a noção de espectáculo como fetichismo da mercadoria – e o poder mítico que ela detinha como simu­lacro vazio de vida, mas também como sinal compensatório, junto de populações cada vez mais pas­sivas e anestesiadas pelo consumo simbólico e pelo trabalho.

Debord e os situacionistas perceberam antes de ninguém como a era de abundância em que o capitalismo entrara es­tava a criar uma nova forma de “miséria” que substituía para pior a miséria conhe­cida. Se esta era de tipo material, agora, com o inusitado desenvol­vimento dos meios de produção, a acumulação de nova riqueza, os mecanismos distributivos e o tempo livre que a automatização cri­ava, a nova miséria abandonava a esfera do ter para se instalar como seta fatal envenenada no coração mesmo do ser. Daí a sua superior perigosidade em relação a todas as formas de empobreci­mento vivi­das no passado. Ao coloca­rem a crítica do capita­lismo no fetichismo da mercadoria e nos modos de con­sumo, deixando cair a crítica dos salários, das horas de tra­balho e de outros aspectos clássicos das rei­vindicações sin­dicais, o situacionismo pôde nascer como uma “frente revo­lucionária na cultura” – a expressão é de Debord – des­lo­cando o combate para o campo da cultura, entendida esta como o domínio das representações estéticas e os modos de vida e avali­ando-a assim como a esfera decisiva da luta social no novo patamar em que o capitalismo de consumo entrara com a colonização dos comportamentos. Também aqui o le­gado situacionista é ineludível. Embora a violência simbó­lica da sua linguagem pareça estéril, sinal dum nervosismo desnecessário, foram eles os primeiros a entender no campo da dissidência do pós-guerra que só a cul­tu­ra se tornou o terreno decisivo de qualquer acção revolucionária. Afasta­ram assim a tentação do vanguardismo armado con­tra pessoas, que foi o horror que de­pois tivemos de atravessar com as guerrilhas urbanas mar­xistas-leninistas, que tão frustrantemente desmobilizadoras foram para a dissidência em geral.

Algures, num texto da mesma época, Debord afirmava que se o capitalismo teve a argúcia de levar a sua lógica para a vida privada, mercantilizando o tempo de lazer e integrando de for­ma implacável a esfera do ser na lógica da expansão do capital, alienando assim os últimos redutos livres da vida, os da intimidade, cabia aos revoluci­onários desloca­rem com mestria e superior ousadia o combate da esfera do trabalho e das condições materiais, esfera que podia ser abandonada sem nostalgia, daí a célebre consigna debordi­ana ne tra­vaillez jamais, para o campo real das representa­ções culturais e sim­bólicas onde as novas lógicas se joga­vam. É aqui que o surrealis­mo se faz questão obrigatória, sem exoneração possível, para a crítica situacionista.


Movimento revolucionário que fez da arte e da cultura o seu domí­nio privilegiado de acção, o situacionismo foi obri­gado desde o mo­mento preparatório da sua fundação a con­frontar-se com as várias representações artísticas então mais activas. O “Relatório” de De­bord é também um balanço de todas as principais correntes artísti­cas e literárias que atra­vessaram a primeira metade do século XX e se estenderam depois para a segunda metade. Estão lá os movimen­tos de vanguarda, ou assim ditos, do início do século XX – futu­rismo, dadaísmo, surrealismo – e os que no seu rasto se de­senharam depois de 1945, e que são aqueles que estão na origem da fundação da Internacional Situacionista – o le­trismo, o grupo COBRA e o ima­ginismo do Movimento Inter­nacional da Bahauss Imaginista. São es­tas as correntes que mais podiam interpelar um autor que se preten­dia frontal­mente contra as novas lógicas de apropriação mercantil que então se impunham. Mas outros movimentos daquela época pas­saram também pelo crivo crítico de Debord – o realismo socialista de Jadnov enquanto restauracionismo dos valores artísticos oitocen­tistas; a literatura existencialista como caso publicitário; a nova lite­ratura de massas (Françoise Sagan), fenómeno sociológico da indús­tria cultural e sintoma dos novos modos do capitalismo.

De todos estes pontos aquele que merece mais atenção no “Relató­rio” é o surrealismo. Compreende-se que assim seja. Duas das cor­rentes que estiveram presentes em Julho de 1957 na fundação da In­ternacional Situacionista tinham ori­gem naquele movimento. Mesmo o letrismo internaciona­lista, a corrente de Debord e Gil Wol­man, sem descender do surrealismo ou de qualquer grupo seu, tinha contactos estreitos desde muito cedo com a corrente surrealista belga – a revista deste grupo, Les Lévres Nues (1953-1972), era dis­tri­buída pelos letristas internacionalistas em Paris – que descendia do surrealismo revolucionário da década ante­rior. Mais: o “Relatório” foi impresso em Bruxelas ao cui­dado de Marcel Mariën, um surrea­lista revolucionário belga, pouco mais velho que Debord e que foi até ao final director de Les Lèvres Nues. Só estas razões justificam a distinção que o “Relatório” se obriga a fazer entre duas correntes surrea­listas: a belga, surrealista revolucionária, ressalvada numa frase do texto de Debord como uma daquelas correntes mi­noritárias experimentais da qual tudo há a esperar (p. 25), e a surrealista pro­priamente dita, cuja atenção que merece ao longo de várias partes do texto contrasta com o exíguo es­paço de­di­cado ao futurismo (um parágrafo de 10 linhas) e ao dadaísmo (outro breve parágrafo). Embora concedendo que nos inícios teve papel de inegável valor, representando uma progressão so­bre os movimen­tos anteriores, o surrealismo é condenado em dois pontos irremissí­veis – a senilidade da sua situação presente, que se tornou manifesta no final da guerra e nas actividades ulteriores, mas cujos sinais se percebiam já na evolução da década anterior, e o seu erro capital, que ditou a sua ulterior decomposição e senilidade. Que erro foi este? A “ideia da riqueza infinita da imaginação inconsciente”, a ideia do inconsciente como a “grande força (...) da vida” (p. 16), que por sua vez permitia ao surrea­lismo posicionar-se como uma superior visão da totalidade da história humana.

Esta recusa de conceder à imaginação inconsciente um papel de pri­meiro plano na criação, esta negação do inconsciente como força vital e esta rejeição de que toda a história da poesia e da civilização pudesse ser revisitada em função dessa nova descoberta, nasce em Guy Debord não por uma qualquer leitura do facto psicanalítico em si, mas pelos re­sultados que tem. Fazer do inconsciente o horizonte infinito da criação inesgotável, como o surrealismo queria, tinha por consequência re­conduzir a imaginação (p. 16) “aos antípo­das das condições modernas do imaginário: ao ocultismo tradicional.” É o que Debord chama o “estádio senil-ocul­tista” do “movimento surre­alista ortodoxo” (p. 18). Mais à frente precisa o que entende por tal estádio, dizendo que à excepção da Bélgica “todas as tendências sur­realistas dis­persas pelo mundo se juntam ao campo do idealismo mís­tico.” Fruto do seu ponto de partida, com o inconsciente tudo absorvendo, o imaginário surrealista está obrigado pa­ra Debord a reencontrar o ocultismo tradicional, desvincu­lando-se da situação moderna e inserindo-se nessa corrente de “idealismo místico” em que a alienação moderna é subs­tituída por formas anteriores e ar­caicas de alheamento. Para fugir às formas várias da alienação cristã que se impuseram na modernidade o surrealismo acabou por abra­çar – a ex­pressão é de Debord (p. 17) – “a alienação plenamente irra­cional das sociedades primitivas”. Daí que o surrealismo, no estado em que então estava, o do “ocultismo tradicional”, não podia ser para Debord uma alternativa válida de futuro. Como antídoto e res­posta à alienação moderna, o autor do “Relatório” não aceitava o re­curso à irracionalidade das so­ci­eda­des primitivas; exigia antes “ir mais longe e racionali­zar mais o mundo” (p. 17).

 É curiosíssima e muito significativa esta exigência de raci­onalizar mais o mundo. É porventura o ponto nevrálgico do “Relatório”, onde se decide quer o destino crítico que ele dá ao surrealismo, vendo-o como alheado de tudo o que é o futuro, quer o que dá à crítica situ­acionista nascente, como movimento que nada deve ao primitivo e se posiciona na es­fera da modernidade e da sua racionalidade, à qual exige mesmo novo avanço. É aqui que podemos cruzar a crítica do surrealismo tal como Debord a vê com aquele ponto que atrás ob­servámos – a base material técnica que o capitalismo de consumo cria é a própria base do comunismo que virá – e que surge como constitutivo do novo movimento. A crítica situacionista nascia como consciência da ne­ces­sidade de ra­cionalizar o mundo racional mo­derno, orientando em sen­tido ainda mais racional o produto dessa primeira racionali­zação, enquanto o surrealismo com o erro que es­tava na sua raiz, a expansão do inconsciente e da sua irracionalidade, se divorciara de qualquer aspecto da racionalidade, por aí se conde­nando em termos de futuro. Para o Debord do “Rela­tório” a racio­nalização do mun­do moderno era insu­fi­ci­ente, visto que a ori­enta­ção que o capitalismo dava à sua base ma­terial era con­tra­dito­ria­mente irracional. Esta irracionali­da­de que subsistia na racionalidade moderna só a crítica situ­acionista, pela demissão surrealista, estava em condições de superar. A irracionalidade que fora o ponto de ar­ranque do programa surrealista fazia com que este movimento pu­desse ainda ser posto ao serviço da irracionalidade que subsistia no sistema social. A vitória do surrealismo, a sua progressiva a­cei­tação nos circuitos críticos e mediáticos, a sua comerci­alização e a sua rá­pida internacionalização, explicavam-se destarte pe­la apropriação que a sociedade fazia do movi­mento, vendo nele um artefacto ino­fensivo, que podia até ser aproveitado a seu favor.

O “Relatório” de 1957 contém assim todos os grandes tópi­cos da crítica situacionista ao surrealismo. O número de es­treia da revista da I.S. (Junho, 1958) confirma isto mes­mo. Logo na nota de abertura, “Amère victoire du surré­alisme”, retoma-se a matéria do “Relatório”, insistindo no en­ve­lhe­cimento do surrealismo e no desvio que a so­ciedade actual dele faz. Daí “a aparência surrealista do mundo mo­derno” e daí a amarga vitória do movimento. Mas porventura mais si­gni­ficativa que essa nota, seja a reflexão de Asger Jorn nesse mesmo número de estreia, “Os situacionistas e a automati­zação”. Não que Jorn pela prática que tinha do surrealismo, a partir do qual se formou e e­vo­luiu, junte algo diferente ao que Debord dissera, mas porque explicita o já dito naquele tópico tão característico da crítica situacionista – a necessi­dade de atender às potencialidades liberta­doras da máquina e da base técnica criada pelo capitalismo. Mos­trando uma ilimitada con­fi­ança na tecnologia, exigindo que se leve esta às últimas consequências, pedindo que o ser humano seja o “se­nhor” e não o “escravo” da automatização, Jorn vê neste tópico o ponto diferenciador da crítica situacionista em re­lação ao surrea­lismo. Enquanto este ficara prisioneiro duma dimensão mágica da arte, que lhe vedava a entrada no mundo moderno, e daí a sua ob­solescência, a crítica situa­cio­nista, ao reconhecer a importância da técnica e da auto­matização na produção de bens, tinha ao invés con­sigo uma chave capaz de potenciar de forma superior o mundo mo­derno.

Constant, que colaborava com Jorn desde o final da guerra, criara o primeiro grupo experimental de arte (Reflex, 1948), seguira com in­teresse o surrealismo revolucionário, fora um dos fundadores do grupo COBRA e o primeiro a for­mular as concepções do urbanismo unitário, além de ter dado adesão à Bahauss imaginista e ter estado presente no congresso de Alba no Verão de 1956, regressa no se­gundo número da revista (Dezembro, 1958) ao tópico da automati­za­ção para enfatizar que só a técnica permite uma relação nova com o mundo, só ela pode ser a base material da nova sociedade, só ela pode satisfazer as necessidades humanas, só ela é experimental e só ela faculta ao artista os instru­mentos nómadas que ele necessita. A arte, ou a sua supera­ção, só se concretiza através da técnica. Cabe ao artista in­ventar as novas técnicas em todos os domínios possíveis, unindo-as depois numa actividade convergente, que por sua vez gera uma arte de viver tridimensional – o urbanismo unitário. Opondo-se ao funcionalismo urbano, no qual vê uma colonização arrasadora da vida, o urbanismo uni­tário de Constant, resultante duma síntese convergente de to­das as artes, torna-se uma forma de vida e é para o seu autor distinto do urbanismo novo de Chtcheglov, também cha­mado psicogeografia, avaliado por Constant como quimérico.

Depois de conhecermos os textos de Jorn e de Constant, e o se­gundo leva mais longe o primeiro, esclarecendo pontos que pare­ciam ter ficado retraídos, compreende-se porque motivo uma das correntes fundadoras da Internacional Si­tuacionista, a da Bahauss imaginista, a mais significativa, já que nela se inseriam as experiên­cias da importante secção italiana (Giuseppe Pinot-Gallizio, Piero Simondo, Elena Ver­rone, Walter Olmo...) e o lastro do grupo COBRA, advo­gava uma arte industrial, que, ao lado das novas técnicas de cri­ação, desenvolvesse novos modos de produção. De resto, o encontro de Alba em 1956, tão importante para a fundação no ano seguinte do plano situacionista, foi todo dedicado ao uso da tecnologia em arte, encarado por todos como o dado mais relevante e promissor do ex­perimentalismo. Na se­quência dos debates, Gallizio, farmacêutico, químico, ho­mem de ciência, inventou a “pintura industrial”, que mar­cou as pesquisas do grupo italiano organizado em torno do La­boratório Experimental de Alba, e Walter Olmo, então a caminho dos 20 anos, iniciou experiências com instrumen­tos musicais basea­dos na tecnologia de ponta, que se torna­ram uma das fontes da van­guarda musical electrónica e até da poesia visual cibernética.

Retomemos o ponto inicial de abordagem ao “Relatório”. A princi­pal característica com que a crítica situacionista se apresenta é a crença de que a base material criada pelo capi­talismo, os meios pro­dutivos que nele se geram e desenvol­vem, são o alicerce indispensá­vel da nova sociedade comu­nista. Essa crítica não soube assim des­prender-se do pro­dutivismo – ao menos da sua base técnica. O interesse desmedido que o pensamento situacionista votou à tecno­logia, dedicando-lhe tanto espaço de discussão, acabando até por ver nela a chave da solução do problema social, re­side tão-só neste prin­cípio de base, de resto um tópico tradicional do pensamento que vinha das correntes operá­rias do século XIX, todas subsidiárias do voluntarismo hu­mano em dominar a natureza e de que o situaci­onismo não se soube desfazer. É também por aí que se percebe a impor­tância da técnica no nicho artístico experimentalista donde saiu a crítica situacionista, com recurso a uma pintura in­dustrial e a instrumentos musicais que decorriam da tecno­logia mais avançada. Mas é ainda por aí que se entende a crítica de Debord e dos situaci­onistas ao surrealismo – pelo menos naquela parte, que é afinal ponto decisivo, em que estabelecem de forma crítica a proximidade do imaginário surrealista ao imaginário mágico primitivo. A ligação do imaginário surrealista ao do mundo mágico primitivo re­sulta da sua adesão à lógica fundadora do inconsciente, apa­recendo por aí mesmo a sua desvinculação dos fundamen­tos da moder­ni­dade. O tópico da senilidade do surrealismo, que se encontra nesta época em Debord, Jorn e Constant, e que terá depois ainda algum fôlego para chegar ao livro de Vaneigem (em nome de Jules-François Du­puis), Histoire désinvolte du surréalisme (1977), só por aqui tem livre curso e só aqui encontra justificação. Quando Constant no n.º 2 do boletim I.S. tece as suas con­sidera­ções sobre o lugar da técnica e o papel da automatiza­ção, sobre a insuficiência do urbanismo de Chtcheglov, não deixa de apontar o excessivo protagonismo que o número de estreia da nova publicação dedica ao surrealismo, dando-lhe honra de nota de abertu­ra e dei­xando subentendido que o movimento criado por Breton se está a tornar no fantasma desnecessário da crítica situacionista. Debord responde que é preciso confrontar para diferenciar e volta a repetir o tó­pico da utopia idealista do surrealismo por oposição ao ex­peri­mentalismo revolucionário da crítica situacionista. Na única alusão ao surrealismo no livro A sociedade de espectá­culo (cap. VIII, ¶ 191), afirmando que ele realizou a arte sem a suprimir, não faz senão dizer de outro modo, mais enxuto, a mesma coisa. Com raízes no dife­rendo de 1954, a diferenci­ação que se fez no “Relatório” entre os dois movimentos foi depois repetida para não mais ser esquecida.

 


Só que aquilo que constituía a diferenciação real da crítica situa­cionista, a sua moder­ni­dade, por contraste com o pri­miti­vismo do imaginário surrealista, não abona hoje senão este último. A subor­dinação da arte à técnica, por muito moderna que seja, não é senão, ao menos no caso dos situ­acionistas, o sinal da sua incapacidade de perceber as carac­terísticas arrasadoras em termos humanos do sis­tema téc­nico. Bastam hoje as leituras dum Lewis Mumford, que nada têm de irracionalidade, para percebermos os embriões totali­tários que se escondem nos meios e nos processos com que os gran­des empreendimentos técnicos históricos reali­zaram e continuam a realizar os seus fins. Tais embriões têm uma auto­nomia própria, não dependem do exterior e da vontade de qualquer ditador, mas apenas da eficácia interna do próprio sistema que os gera. Estes comportamentos agra­varam-se muito, antes de mais pela sua multiplicação, na moderna sociedade industrial, toda ela arregimentada para viver ex­clusiva­mente em função da técnica e do seu sistema de mobilização to­tal. Daí a impressão que temos que a maior parte das tarefas das nossas sociedades sobredimensionadas são perigosas e inúteis, não trazem qualquer bem-estar real, e não se destinam senão a perpetuar um sistema que já ga­nhou uma rotação interna imparável. Estão nesse caso os transportes automobilizados, a agroindústria, a produ­ção de energia, a indústria farmacêutica e a de armamento, a cons­trução urbana e tantos outros sectores vitais do nosso modo de vida que geraram um modelo social de vida que, tra­zendo cada vez menos benefícios e cada vez mais incómodos e prejuízos, além de não apre­sentar senão uma muito ténue esperança de futuro para a vida na Terra, não é capaz de se impor a si mesmo restrições. Trata-se duma eficácia cega, imparável, autofágica e que ainda assim não quer deixar qualquer outra alternativa de escolha. A presente substituição massiva de automóveis a combustí­vel fóssil por uma nova e ainda maior frota de automóveis eléc­tricos é um exemplo da lógica fáustica do sistema téc­nico.

A melhor forma de assegurar um futuro seguro e dura­douro na Terra, garantindo ao mesmo tempo a qualquer ser humano as suas necessidades essenciais (alimentação, sa­úde, educação, habitação), parece passar pela edificação duma sociedade camponesa, de abundância frugal, baseada numa agricultura ecológica, sem recurso aos agroquímicos, que favoreça a biodiversidade e a autono­mia das comunida­des locais, assente em pequena unidades de produção que traba­lhem com métodos duráveis e seja capaz de instituir uma soli­dariedade geral e uma organização social sem desi­gualdades. Em­bora teoricamente todos possamos aceitar que esta é a melhor forma de garantir a vida no planeta du­rante muitos milénios, assegurando ao mesmo tem­po a cada humano um quinhão de felicidade, uma tal sociedade pa­rece muito difícil de implementar não tanto pela ausên­cia de reconhecimento dos seus benefícios e da sua superiori­dade em relação ao actual modelo, que tem escasso e difícil tempo de vida diante de si, mas porque o sistema técnico do presente nos pa­ralisa os movimentos e nos deixa sem es­colha, impondo-nos as suas opções e prendendo-nos na teia da sua lógica. Resume-se esta assim: para problemas técni­cos, só são possíveis e admissíveis soluções ainda mais téc­nicas. Assim se justifica, em nome dum problema real, a descarbonização, a produção massiva de mais automóveis, desta vez eléctricos, exigindo um desmedido gasto de recur­sos fini­tos e uma corrida demencial à energia, em lugar de pensarmos adap­tar a nossa noção de mobilidade no espaço, a uma muito maior vul­garização da bicicleta e das desloca­ções pedestres. Não será com cer­teza substituindo a Merce­des pela Tesla, nem trocando a corrida aos combustíveis fósseis pela corrida ao lítio das gigantescas baterias eléctri­cas dos novos automóveis, que vamos resolver os problemas ambientais do planeta. Apenas os transferimos para um pa­tamar su­perior, que em breve se revelará ainda mais grave e largo.

Ao invés do que se passou com a crítica situacionista, que foi não só incapaz de fazer a desmontagem da base material da pro­du­ção mecânica como se acabou por render a ela, de­senvolvendo por isso os subprodutos artísticos que atrás re­ferimos (pintura industrial, música electrónica, poesia ci­bernética), o surrealismo percebeu, ou foi percebendo após 1945, na época mesma em que a crítica de De­bord se prepa­rava para o “liquidar”, que a base material do capita­lismo, então já na sua nova e mais destrutiva fase, a nuclear, tinha de ser posta de lado e trocada por experiências mais modes­tas e me­nos espectaculares, que surgissem desvinculadas do horizonte fáus­tico para onde a sociedade industrial já então se preci­pitava, arrastando com ela o res­to do mundo, e que fossem capazes de recuperar a memória de outro tempo humano mais lim­po e sábio, em que o risco de des­truição mútua e de a­ni­qui­la­mento natural dei­xassem de ser um perigo tão real e tão permanente.

 Foi ele, o surrealismo, que se mostrou em condições de deixar cair a ideia que o papel do ser humano na Terra é 0 de dominar e explo­rar a natureza – noção que a crítica situ­acionista, ao conviver de forma tão acrítica com a tecnologia industrial, nunca se mostrou em condições de superar. Foi ele ainda que percebeu que a superação da arte – o mesmo é dizer o que há de crucial no combate cultural – nunca po­dia chegar por meio da técnica ou de qualquer tecnologia de ponta, já que isso é apenas e sempre o reforço do mundo mesmo que hoje existe.

Quando Constant defende que só a técnica pode ser a base material da nova sociedade, que só ela pode satisfazer as ne­cessidades humanas, que só ela fa­culta ao artista o nomadismo que lhe é vital, ou quando Jorn defende que o ser humano deve ser o “senhor” da técnica e Debord fala da acção política revolucionária no desenvolvi­mento das possibilidades modernas de produção, eles não estão mais do que a reforçar o suporte ideológico da socie­dade actual. Isso ajuda a explicar o que no início apontámos – a facilidade com que parte da crítica situacionista, aquela que diz respeito ao espectáculo, pôde ser integrada no dis­curso dominante. Aceitando o princípio ordenador do presente, adaptando-se à sua orientação ba­silar, não pondo em causa a sua determinação essencial, qualquer crítica da mercado­ria fetichista se torna inofensiva. O crescimento económico, e com ele toda a eco­nomia, não existe hoje senão como cor­rida cega ao crescimento técnico.

As análises de Constant, Jorn e Debord mostram pois co­mo o mo­delo crítico situacionista é hoje uma velharia – cha­mar-lhe assim não é uma ofensa, mas apenas a constatação da sua inutilidade. O com­bate do nosso tempo está muito longe de poder conviver com qual­quer acrítica idolatria pela técnica. O que hoje interessa é denunciar as determinações sufocantes do sistema que envolve essa mesma téc­nica e não nos deixam alternativa de escolha.

Cabe ao combate cul­tu­ral mais decisivo dos dias de hoje procurar as vias que possam ga­rantir duradouramente a vida na Terra e o bem-estar es­sencial para cada ser humano. Isso não passa por qualquer condescendência, menos ainda por qualquer reforço, dum meio estrangulador, com uma lógica interna autofágica, que se justifica a si mesmo fora de qualquer resultado prá­tico. Ao invés, precisamos de aceitar que muitas das experi­ências pré-industriais e pré-mecânicas, essas para quem a crítica situacionista só teve palavras de menosprezo, relati­vas a um outro modo de produção e vida, podem ser reto­madas sem qualquer vergonha. Nem sempre a evolução é linear e progressiva. Por vezes é preciso regressar ao pas­sado para exumar segmentos que ficaram esquecidos, mas cujo interesse merece ser reavaliado, aca­bando alguns deles por se mostrar mais adequados ao futuro do que algumas ou mesmo muitas experiências do presente. Basta o exem­plo da agricultura para percebermos como os saberes tradi­cionais podem ser muito superiores aos que foram e estão a ser desenvolvi­dos na modernidade pela técnica industrial.

Precisamos sempre de pensar que o modo de vida que hoje temos, e que evoluiu a partir dum ponto de partida que se situa no final do século XVIII e início do sé­culo XIX, com a primeira exploração dum combustível fós­sil, o carvão de pedra, e o seu aproveitamento para formas mecâ­nicas de produção de bens e transporte, representa só uma ínfima parte da história da nossa espécie sobre a Terra, qualquer coisa como 0,25 %. Não é pois de estra­nhar que muito do modo de vida que foi tentado nos últi­mos dois séculos, sobretudo aquele que fez depender de forma quase sacralizada do sistema técnico a reso­lução de todos os males humanos e naturais, se mostre uma encruzilhada, ou mesmo um beco sem saída, que é necessário abandonar em função de experiências mais duradouras do pas­sado pré-industrial e pré-mecânico, que provaram ser soluções muito mais sólidas e seguras para o futuro da vida na Terra.

 Atento à dimensão abissal e intemporal do inconsciente, desvin­culado do vazio do presente, no qual via uma existên­cia abjecta que coartava aos seres humanos o voo livre, ca­paz de conviver no mesmo plano da presença com o passado e com o futuro, o surrealismo per­cebeu ainda que a realiza­ção da filosofia e a superação da arte, os dois desi­deratos situacionistas, só podiam chegar através dum ima­ginário descolonizado em que palavra, poema e dese­nho re­assumissem a efemeridade, a permanência e a força do sen­tido da sua condição natural – essas que o traço rupestre dum índio e o dum pré-histórico tinham, quando, no meio de forças sem sentido e até adversas, eram inscritos na areia e na pedra com o propósito sim­ples, mas decisivo, de falar respeitosamente com a natureza.

Não poderá haver realização da filosofia e superação da arte sem desvinculação do sistema técnico, já que este é a fonte mesma da filosofia e da arte tal como nasceram e tal como hoje as entendemos. A noção de arte mágica formulada pelo surrealismo na época em que Debord publicava o “Relató­rio” – data de 1957 o livro L’Art Magique de André Breton – parece dar assim uma resposta muito mais ade­quada e pro­missora aos problemas do combate cultural da nossa época do que a crítica situacionista, já que esta ficou paralisada na teia tecnológica dum presente cego e no contributo in­vo­luntário que deu à “arte contemporânea”, que do­mi­nada pelos aparelhos téc­nicos, pela repro­du­ção mecânica exacer­bada e pela produção em massa não podia ter outro destino senão servir de referencial ao mer­cado financeiro mundial.

O espectáculo parece não deixar outra saída a todos os que têm a inteligência de o desmontar senão o próprio espectá­culo. Superar a arte através da sua mercantilização absoluta e realizar o pensamento através da sua circulação mediática parece ter sido assim a pouca fortuna que coube àqueles que, conquanto exigentes, não quiseram ou souberam perceber as potenci­alidades emancipadoras de certas experiências do passado, remetendo-as acriticamente para o domínio da aliena­ção pri­mi­tiva. Como se isso não fosse já bastante, carreando uma crítica que se mostra hoje datada, ainda recusaram encarar os malefícios do sistema téc­nico do seu tempo, vendo nele uma virtualidade liberta­dora onde afinal só existia uma das mais danosas e sinistras prisões de sempre.



NOTA FINAL

Antes desta antologia que aqui comentamos e acabada de surgir em 2021, Júlio Henriques traduziu e organizou sobre a crítica situacionista o se­guinte volume (onde se encontra o texto de Asger Jorn sobre a automatização da produção de bens publicado no n.º 1 do boletim da IS): Internacional Situaci­onista – Antologia, Lisboa, An­tígona, 1997. [ACF]



ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO (Portugal, 1956). Ensaísta e historiador. É igualmente diretor da revista A Ideia. Fez um doutoramento em Literatura Portuguesa e uma agregação em Cultura Portuguesa. Os seus escritos sobre a História de Portugal tomam como ponto de partida os cruzamentos ou as parecenças entre a História e a Lenda. Reclama para a História, na linha de Fiama Hasse Pais Brandão, o direito à alucinação, pois uma História sem a teatralidade do imaginário não está viva nem é real. Estudioso da obra de Teixeira de Pascoaes. Poeta com uma vasta obra publicada, dedicou-se também ao romance histórico (9 títulos publicados), e é autor de duas biografias publicadas pela Quetzal – sobre Agostinho da Silva e Mário Cesariny.



FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

  



Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA  REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)

Artista convidado:  Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

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