A carta que Ernesto Sampaio,
Mário Cesariny e Virgílio Martinho escreveram em Abril de 1962 ao presidente da
Sociedade Portuguesa de Escritores, a antecedente da actual Associação Portuguesa
de Escritores (APE), pondo em causa o então Grande Prémio de Poesia, e que no final
deste texto transcrevemos, é pois um documento fundador da maior importância, numa
altura em que os prémios literários eram poucos e os seus processos distintos dos
de hoje – embora o seu fundamento fosse o mesmo, selecionar e hierarquizar o meio.
O documento partiu do grupo do Café Gelo – neste Café conheceu Cesariny os outros
dois subscritores por volta de 1956 e neste Café se continuavam a encontrar em Abril
de 1962 – e foi dirigido a uma instituição então tutelada por Joaquim Paço d’Arcos
e fundada uns anos antes, em 1956, por proposta inicial de Aquilino Ribeiro e Ferreira
de Castro. As razões aventadas para essa recusa são duas – a natureza do júri que
atribuía o prémio e depois o nome mesmo do prémio, se não o prémio em si, que fazia
equivaler literatura e corridas de cavalos. Nesta imagem incisiva das corridas de
hipódromo, que traduz todo um repúdio pela competição, é preciso ver o cruzamento
com um passo crucial (“os jockeys do Grand
Prix”) dum texto de Julien Gracq, La Littérature à l’estomac (1950), que Ernesto Sampaio acabava
então de traduzir e de publicar (Barca Solar, 1962). Este entrelaçamento leva-nos
a pensar que a iniciativa de escrever ao presidente da SPE partiu de Sampaio, que
pode até ter gizado o borrão da missiva, a que depois se associaram Cesariny e Martinho,
também leitores entusiastas de Gracq.
Quem foi o júri do “grande prémio
de poesia” de 1962, ano em que o galardão foi atribuído pela primeira vez? Embora
a SPE tenha desaparecido cedo, em 1965, vítima dum prémio de que ainda se falará,
e os seus arquivos se tenham perdido, ou sido destruídos, é possível saber pelos
jornais que o júri foi constituído pelos seguintes membros: Maria de Lourdes Belchior,
Álvaro Salema, Vitorino Nemésio, Eugénio de Andrade e Manuel da Fonseca. Foi este
o júri impugnado ou desautorizado pelos três subscritores. Estariam sobretudo em
causa os dois primeiros nomes – uma professora universitária da Faculdade de Letras
de Lisboa e um jornalista do Diário de Lisboa,
e que era conhecido no meio surrealista por escrever artigos à quinta-feira no suplemento
cultural a favor do neo-realismo e no resto da semana editoriais inofensivos para
com a situação. Na carta aberta ao presidente da SPE é, porém, todo o júri que é
posto em causa. Não se acredita na sua capacidade literária e considera-se mesmo
que ele, no seu conjunto, desqualifica qualquer concorrente vencedor. Embora Mário
Cesariny fosse já em 1962 um poeta reconhecido – acabara de publicar uma antologia
da sua obra, Poesia, numa editora comercial
– a carta ao presidente da SPE que se saiba não teve qualquer eco nos jornais e
só por iniciativa dos subscritores circulou em folha volante policopiada no meio
literário. O prémio foi dado sem grande surpresa ao livro Poesia III, publicado em 1961, de José Gomes Ferreira.
A história dos prémios literários
em Portugal é ilustrativa. Ao invés do que se possa pensar, essa história é muito
recente. Só começou no séc. XX e com ele bem entrado. Antes do Estado Novo não há
prémios em Portugal – ou os que existem são pontuais, circunscritos a eventos especiais
e não têm qualquer expressão no meio literário. Só com a estabilização da ditadura
e a criação do Estado Novo surgem entre nós os primeiros prémios literários e artísticos
com clara dimensão social. A criação do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN)
no final de Outubro de 1933 determinou uma política cultural do Estado que até aí,
num regime mais liberal e onde a presença do Estado se pretendia fazer sentir menos,
não existia. O SPN era um organismo estatal destinado a divulgar o ideário do regime
salazarista e a enquadrar nos seus parâmetros a cultura em Portugal. Dinamizou mostras
de arte, como as Exposições de Arte Moderna, coordenou nas suas instalações os serviços
de censura e promoveu em larga escala prémios em variados domínios artísticos –
das artes plásticas às letras. Tinha à sua frente um simpatizante de Mussolini e
das ideias fascistas, António Ferro, que tivera contactos estreitos com o híper-modernismo
da geração futurista portuguesa, que fornecerá ao SPN um dos seus nomes mais ilustres,
Almada Negreiros, que trabalhou para o organismo, fez cartazes para o regime e arrecadou
galardões. Tudo isto corresponde a uma época em que o Estado e quem o governava
se queria confundir com a Nação e até com a sociedade, não deixando qualquer margem
para uma pluralidade de opiniões e de escolhas. Além duma autoridade forte, assente
em mecanismos repressivos imediatos, este Estado impunha-se como uma realidade totalitária
em todos os domínios da vida civil. Os prémios então instituídos incluem-se nesta
lógica de totalidade, atribuindo-se o Estado, através deles, o papel de árbitro
num campo em que até ali nunca ou pouco interferira. A sanção da qualidade duma
obra e dum autor estavam até aí entregues a outros mecanismos – crítica e história
da literatura e da arte, jornais e revistas, polémicas – que não os certames de
Estado. A atribuição de prémios pelo SPN veio mostrar que o Estado se passou a atribuir
o direito de consagrar uma obra e um autor – é a tese de João Pedro George no livro
O meio literário português (1960/1998)
(Difel, 2002) –, impondo-se como árbitro do valor artístico e literário. Também
aí o Estado se queria confundir e sobrepor à vida civil, instrumentalizando os prémios.
O SPN arranjou prémios literários
para todos os géneros de livros publicados – novelística, ensaio, poesia e teatro
– e ainda criou prémios para manuscritos (poesia e ficção), destinados a autores
que nunca tivessem publicado em livro. A política dos prémios foi talvez a de maior
urgência. Fundado no final de Outubro de 1933, já em Novembro se anunciavam no organismo
a constituição dos prémios literários, antes de mais o Prémio Antero de Quental,
para premiar anualmente uma obra de poesia. O prémio foi atribuído até 1973 e a
sua primeira atribuição contemplou excepcionalmente duas obras, Romaria de Vasco Reis e Mensagem de Fernando Pessoa, em duas categorias,
a principal e a secundária. Centenas e centenas de obras e de autores foram assim
premiados e mencionados nestes certames que duraram até 1973. Durante muitos anos
o único prémio que coexistiu com os do SPN, foi o Prémio Ricardo Malheiros atribuído
pela Academia das Ciências de Lisboa, a antiga Academia Real das Ciências ou Real
Academia, instituição criada em 1779 com o incentivo do poder real. Anual, destinado
a galardoar uma obra na área da ficção ou da poesia em língua portuguesa e subvencionada
(pelo menos a princípio) pelos fundos deixados pelo seu patrono, o primeiro galardão
foi atribuído em 1933 (Aquilino Ribeiro), mostrando-se mais maleável nas suas escolhas.
Embora tenha galardoado muitos escritores ligados ao regime (Antero de Figueiredo,
Samuel Maia, Mário Beirão, Vitorino Nemésio, Francisco Costa, Natércia Freire, António
Quadros, Agustina Bessa-Luís...) também premiou escritores ligados ao neo-realismo
(Alves Redol, Manuel Ferreira, Fernando Namora, Urbano Tavares Rodrigues). Estes
dois sectores – católicos que aceitavam o regime e neo-realistas alinhados na oposição
– distribuíam assim entre si este prémio, que estava longe de ter junto do público
a projecção dos do SPN, mais tarde, em 1945, rebaptizado Secretariado Nacional de
Informação (SNI).
O afã de independência da associação
e as suas opções oposicionistas – embora com diversidade, a SPE arregimentava uma
maioria de escritores anti-salazaristas – acabaram por esbarrar na intolerância
do governo e do poder em 1965, levando à sua dissolução e com esta ao desaparecimento
dos prémios da SPE, sobrevivendo apenas aqueles que eram atribuídos pelo SNI. Foi
um prémio que fez estalar a crise. O presidente da SPE era Jacinto do Prado Coelho,
académico, professor da Faculdade de Letras e em geral membro do júri do Prémio
Ricardo Malheiros, e o júri do Grande Prémio de Novelística era constituído pelos
seguintes membros: João Gaspar Simões, Alexandre Pinheiro Torres, Manuel da Fonseca,
Fernanda Botelho e Augusto Abelaira. O prémio foi dado ao livro Luuanda de Luandino Vieira, que estava então
preso no Tarrafal por implicação nos movimentos de libertação de Angola. O regime
proibiu qualquer referência nos jornais ao prémio, dissolveu por decreto do Ministro
da Educação – era então ministro Inocêncio Galvão Teles – a SPE, cuja sede foi assaltada
e o seu material destruído, e mandou prender três membros do júri – Alexandre Pinheiro
Torres, Manuel da Fonseca e Augusto Abelaira. Adiante retomaremos os incidentes
deste prémio para tentar perceber o seu significado.
Só depois do afastamento de Salazar,
em 1968, foi permitido aos escritores voltarem a dispor duma associação sua e mesmo
assim foram preciso vários anos de tropeços burocráticos e impedimentos legais para
que a nova associação nascesse. A escritura da APE foi assinada a 13-4-1973 e só
em Junho desse ano foram eleitos os seus primeiros corpos gerentes, tendo José Gomes
Ferreira ficado como presidente. É possível que logo nessa altura se tenha pensado
numa política de prémios nos mesmos termos do que sucedera com a SPE – prémios sem
financiamento de Estado e que simetricamente se contrapunham aos do SNI. A revolução
de Abril de 1974 veio deitar por terra esta estratégia e criar outras prioridades
à associação, que se empenhou no processo revolucionário e fez o primeiro Congresso
dos Escritores Portugueses em Maio de 1975 com a presença de Vasco Gonçalves. Os
prémios foram esquecidos, deixaram de estar na ordem do dia e desapareceram de todo
até 1977. O próprio prémio Ricardo Malheiros conheceu uma suspensão temporária e
não foi atribuído em 1974. Uma época que questiona a dominação, que põe em causa
a exploração, que se bate por reconhecer aos mais esquecidos direitos, é naturalmente
uma época que procura uma reconfiguração social feita na base da solidariedade.
Afasta, pois, até onde pode qualquer instrumento que possa contribuir para a desigualdade
e a hierarquização. Por esse motivo, na Primavera de 1871, em Paris, numa altura
em que se procurava democratizar o poder e alargar as competências da República,
a Federação dos Artistas condenou a atribuição de prémios e sugeriu a invenção de
novos mecanismos mais solidários e equitativos que pudessem incentivar os criadores.
Com o golpe militar do 25 de
Novembro de 1975 e o fim da revolução, com um regime político centrado na entrega
do poder às grandes e impessoais máquinas partidárias, a APE procurou adaptar-se
ao novo tempo, antes de mais regressando à política de prémios que ficara suspensa.
Como quer que seja, há uma importante diferença entre os prémios atribuídos pela
SPE e os novos que a APE instituiu depois de 1977/8. Em poucos anos são recriados
os prémios de revelação para ficção, ensaio e poesia e um conjunto de grandes prémios,
onde sobressai o Grande Prémio de Romance e Novela, atribuído pela primeira vez
em 1982. Para estes prémios a APE não procurou o mecenato privado, como fizera a
SPE, mas os apoios de Estado. São feitas assim parcerias com os organismos da Cultura
oficial, do Ministério ou da Secretaria de Estado, que tutelam o livro e a leitura
– primeiro o Instituto Português do Livro (IPL) em 1980 e depois os seus sucedâneos
(IPLL, IBNL, DGLAB) – e que passaram assim a ser os financiadores dos prémios da
APE. Pela mesma época criam-se duas novas associações de escritores – o PEN Clube
Português em 1979 e o Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários
(AICL) em 1980 –, cuja política vai também privilegiar a criação de novos prémios
literários. O PEN institui prémios anuais para a poesia, a narrativa, o ensaio e
a tradução, a que juntará ainda um prémio para primeira obra. Por sua vez a AICL
criará o Prémio da Crítica e em 1984 o Prémio Jacinto do Prado Coelho, o primeiro
presidente do Centro Português da AICL e acabado então de falecer. Todos estes prémios
passaram também a ter financiamento do Estado através do Ministério ou da Secretaria
de Estado da Cultura.
A todos estes prémios literários
que nasceram na primeira década do novo regime saído da Revolução de Abril é preciso
hoje acrescentar inúmeros outros, anuais ou não, promovidos por Câmaras Municipais,
instituições privadas, universidades, jornais, editoras, fundações. O Prémio José
Saramago, cuja primeira edição foi em 1999, é uma organização do Círculo de Leitores;
o Prémio Vergílio Ferreira, que nasceu em 1995, é promovido pela Universidade de
Évora; o Prémio Fernando Namora, cuja primeira cerimónia data de 1989, é instituído
pela Sociedade Estoril Sol, que explora o Casino do Estoril; o Prémio Fernando Pessoa
data de 1987 e é gerido pelo jornal Expresso;
o Grande Prémio de Literatura dst é promovido pela Imobiliária Teixeira & Filhos;
o Prémio D. Dinis é da responsabilidade da Fundação Casa de Mateus, de Vila Real;
o Prémio Literário Manuel Alegre é dinamizado pela Associação Académica de Coimbra;
o Prémio Leya pertence a um grupo editorial que tem o mesmo nome. A estes e a muitos
outros, ainda há que somar os prémios da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e
todos os mais recentes que a APE criou, entre eles, o Grande Prémio de Conto Camilo
Castelo Branco, o Grande Prémio Vida Literária, o Grande Prémio de Poesia Teixeira
de Pascoaes, o Grande Prémio de Poesia Maria Amália de Carvalho, o Grande Prémio
de Ensaio Eduardo Prado Coelho, o Grande Prémio de Crónica, o Grande Prémio de Crónica
e Dispersos Literários, o Grande Prémio de Literatura Biográfica. Se a isto juntarmos
os prémios instituídos por Câmaras Municipais – a de Viseu tem o Prémio de Poesia
Judith Teixeira, a de Castelo Branco o Prémio Internacional António Salvado, a de
Amares o Prémio Literário Francisco de Sá de Miranda; a de Almada o Prémio Literário
Maria Rosa Colaço e o Prémio Literário Cidade de Almada; a de Peso da Régua o Prémio
Nacional de Conto João de Araújo Correia e por aí fora – a lista é infindável.
A grande maioria destes prémios
são pagos com dinheiro do Estado – Ministério da Cultura, autarquias, escolas e
universidades públicas – o que não quer dizer que estes prémios tenham hoje a mesma
função que tinham no tempo do Estado Novo. A lição de António Ferro não se pode
dizer que tenha sido esquecida, mas sofreu uma adaptação aos tempos da governação
dos partidos, do fim da censura oficial e da liberdade de opinião. Mesmo pagos pelo
Estado, esses prémios não são directamente atribuídos por ele, mas por instituições
da sociedade, APE, PEN, AICL, SPA, que se regem pela legislação das associações
culturais civis. Mais do que prémios de Estado, em que este aparece como juiz do
valor literário ou artístico das obras, estes são prémios financiados pelo Estado,
mas atribuídos por organismos independentes do meio artístico e literário. O Estado
recuou assim nas funções que antes se atribuía e passou apenas a ver-se como “mecenas”,
que fomenta as letras, mas nada exige em troca, deixando essas exigências para as
organizações representativas dos autores. São elas que elaboram os regulamentos,
que fornecem os conteúdos e que formam os júris. O Estado aparece apenas na retaguarda,
cumprindo o seu papel de “mecenas” – e de mecenas desinteressado, embora exija que
o seu nome figure também no prémio. Assim o Grande Prémio de Romance e Novela, talvez
o mais conhecido dos galardões portugueses, chama-se em boa verdade Grande Prémio
de Romance e Novela APE/DGLAB.
Outro fenómeno que se acentuou
nos últimos anos, e que merecia um estudo de pormenor, é o da natureza quase fantasmática
dos júris que atribuem os prémios literários. No documento fundador de Ernesto Sampaio,
Mário Cesariny e Virgílio Martinho já se apontava esta questão como muito problemática
e por isso se exigia, com ou sem ironia, um novo escrutínio. Não obstante, estavam
lá três poetas – Vitorino Nemésio, Eugénio de Andrade e Manuel da Fonseca. À medida
que os prémios se multiplicaram, a qualidade dos júris baixou ainda mais. É impossível
encontrar hoje qualquer júri que tenha a qualidade daquele que foi tão duramente
criticado em 1962. A maior parte dos júris é hoje formada por professores universitários
da área da literatura sem qualquer experiência significativa no domínio da criação.
Veja-se por exemplo o caso do júri do Prémio de Narrativa do PEN de 2020. O júri
teve como coordenadora Teresa Sousa de Almeida, uma professora de literatura aposentada
da faculdade de ciências sociais e humanas da universidade nova de Lisboa e como
membros António Apolinário Lourenço, professor de literatura da universidade de
Coimbra e Sérgio Guimarães de Sousa, professor de literatura da universidade do
Minho. A coordenadora-geral dos vários prémios do PEN, também presidente do centro
local, Teresa Martins Marques, está em idêntica situação. Fez ensino, manuais escolares,
formou professores, assessorou um grupo parlamentar na área da educação, além de
ter integrado muitos júris.
De feito, outro problema dos
júris, que merecia um estudo atento, é a forma como os seus membros se desdobram
e se repetem de prémio para prémio, de associação em associação, de corpos gerentes
em corpos gerentes. João Pedro George na primeira parte do livro O meio literário português (1960/1998) (2002:
54 e 64), a mais fecunda com os anexos, detectava um limitado conjunto de pessoas
que repetidamente exerciam o papel de jurados nos prémios literários – alguns atingiam
números surpreendentes, com perto de três dezenas de prémios entre 1979 e 1995.
Com a multiplicação ilimitada dos galardões, o problema complicou-se. São cada vez
menos os jurados e cada vez mais os prémios. Logo os jurados repetem-se mais e mais
e só se renovam à força de menos qualidade. Pescados nos muitos cursos de literatura
das muitas universidades, os novos membros são ainda mais insignificantes. Se em
1962 os subscritores da carta ao Presidente da SPE faziam notar a propósito do júri
a desqualificação que o mesmo representa para
os concorrentes, a questão hoje tornou-se muito mais gravosa. A literatura premiada
que hoje temos não é sancionada por criadores, como ainda sucedia em 1962, três
poetas em cinco jurados, mas por mestres-escolas. Isso que Julien Gracq na nota
final do seu panfleto de 1950 chamava “essa coisa impensável: uma literatura de
mestres-escolas”, e que era então só uma ameaça, embora séria, está hoje plenamente
concretizada nos prémios literários. Não obstante os vencedores destes olhem para
o lado, façam de conta que o assunto nada tem a ver com eles e embolsem o cheque,
nunca como hoje os prémios literários desclassificaram tanto quem os recebe.
Os premiados replicam a mesma
nódoa dos júris. Já Mário Cesariny na entrevista que deu ao primeiro número do jornal
O Independente (20-5-1988) dizia que um
país que dava quatro prémios ao mesmo livro quase no mesmo ano – referia-se ao romance
Um amor feliz (1986) de David Mourão-Ferreira – era um país que
não se podia levar a sério. Se uma tal coisa acontecesse em França, dizia ele, dava
no mínimo cancelamento de passaporte. Ora este caso está longe de ser único – menos
ainda se atendermos a autores e não a livros. Veja-se o caso de Maria Velho da Costa
(1938-2020). Estreou-se em 1966 e recebeu pelo menos 13 prémios depois da Revolução
de Abril – antes teve um processo judicial pela publicação das Novas cartas portuguesas (1972), que acabou
em absolvição já depois da Revolução. Foi das primeiras premiadas, ou mesmo a primeira,
mal se deu a estabilização do jogo partidário. Começou em 1977 com o Prémio Cidade
de Lisboa, o primeiro a ser instituído pela APE, patrocinado pela Câmara de Lisboa
e atribuído pela primeira vez nesse ano. Pouco depois foi galardoada com o Prémio
D. Dinis (1983). Entre os restantes contam-se o Prémio Camões (2002), o Grande Prémio
Vida Literária (2013) e o Prémio Vergílio Ferreira (1997). Recebeu duas vezes
o Prémio de Novelística (ou de Narrativa) do PEN (1989 e 2009) e no mesmo ano, mas
não pelo mesmo livro, ganhou o Grande Prémio de Romance e Novela da APE e o Grande
Prémio de Teatro também da APE (2000). Um livro, Dores (1994), recebeu dois prémios – o Grande Prémio de Conto Camilo
Castelo Branco e o Prémio da Crítica da AICL. Além destas distinções, ainda recebeu
o Prémio Correntes de Escrita (2008), o Prémio Máxima de Literatura (2009), o Prémio
Literário Casino da Póvoa e o Grande Prémio da Literatura dst (2010). Foi ainda
distinguida com duas ordens honoríficas – a Ordem do Infante D. Henrique, criada
pelo Estado Novo em 1960, no grau de Grande Oficial (2003) e a Ordem da Liberdade,
criada pelo General Ramalho Eanes em 1976, no mesmo grau (2011). A bem dizer, Maria
Velho da Costa não dava passo, livro ou texto sem de imediato ser distinguida e
premiada. Uma tal tendência de acumulação não conhece limites nem barreiras. A consequência
desta largueza é fazer com que o meio literário, através dos membros dos júris das
várias associações, muitas vezes repetindo-se, se incline a premiar sem discriminação
e durante muitos anos as mesmas pessoas.
A questão decisiva, porém, nem
sequer é a dos júris e dos premiados – embora esta seja ilustrativa da incongruência
e do desajuste dos prémios. O que mais importa é a lógica mesma que preside aos
prémios, quer dizer, os seus valores e a natureza que apresentam. É costume dizer-se
que os prémios servem para destacar e consagrar os melhores, arrumando o meio literário
consoante a sua importância. É uma forma rápida e acessível de consagração. Quanto
mais distinções um escritor recebe, e quanto mais importantes elas são, mais o seu
valor no “mercado” literário sobe e o seu prestígio se fortalece. O limite só pode
ser o prémio Nobel e por isso José Saramago depois de o receber afirmou que nunca
mais aceitava qualquer distinção interna. Em última visão, os prémios fazem hoje
a história da literatura. Aceite-se por momentos que sim, que os prémios servem
para escolher os melhores, que o fazem de forma infalível e que inscrevem o nome
dos premiados num património indelével. Ainda assim, a lógica interna e a dinâmica
ética dos prémios seriam questionáveis. Os valores do mérito são os valores mesmos
da lógica empresarial que premeia os que mais conseguem e contabilizam, não importando
como. É uma lógica desumana, que tem na base uma noção perigosa, a de que os mais
fortes abafam os mais fracos. Dito doutro modo: os prémios literários tal como hoje
se praticam estão alicerçados e põem em prática no meio literário uma forma de darwinismo
social.
Não se trata, porém, apenas duma
lógica desumana – trata-se também dum articulado falso. Os prémios não premeiam
os melhores. Regresse-se ao caso de Maria Velho da Costa. Em 1997 foi distinguida
com o Prémio Virgílio Ferreira, na primeira edição do galardão, na qual tive intervenção
próxima, se não directa. O seu nome foi proposto por uma universidade exterior,
de Lisboa, enquanto a universidade de Évora propunha Luiz Pacheco. No debate entre
os jurados o nome deste foi afastado não por não ser o melhor – tinha tudo a seu
favor nos domínios do prémio, narrativa e ensaio, com o acrescento de ter sido um
dos primeiros editores de Vergílio Ferreira e ter uma longa carreira literária –
mas por não ser “premiável”. Foi a expressão usada – de resto vulgar na boca dos
jurados. Não são os melhores que fazem os prémios, mas os prémios que fabricam os
melhores. Maria Velho da Costa é a melhor
porque recebeu muitos prémios importantes – mas isso só aconteceu porque os melhores do que ela, os outros, os que ficaram
na sombra, não eram “premiáveis”. O que se passou na primeira edição do Prémio Antero
de Quental do SPN, em 1934, não anda assim tão longe, com Vasco Reis a ganhar o
prémio na categoria nobre e Fernando Pessoa a ser relegado para a secundária.
Daqui se pode inferir que as
duas razões evocadas pelos três subscritores da carta ao presidente da SPE em 1962
são ainda hoje mais válidas, pois os problemas que aí impugnavam júris e prémios
são hoje muito mais graves. Quer isto dizer que os prémios literários devem desaparecer?
A história dos prémios literários em Portugal, de que aqui fizemos uma breve resenha,
não abona a seu favor. Criados em força no quadro dum regime em que o Estado se
arrogava o direito de arbitrar a qualidade literária das obras e dos autores, os
prémios nasceram mortos. Eram propaganda vazia. O seu destino ulterior confirma
a inanidade da sua nascença. O conformismo vegetativo e anémico em que se encontra
o meio literário português, anestesiado por uma proliferação incontrolada de prémios
soporíferos de que ninguém sabe o nome, sem um grito de alerta para os problemas
sociais que hoje urgem, é a melhor prova a favor do que dizemos. O prémio atribuído
a Luandino Vieira em 1965 merece, porém, figurar como uma nobre excepção numa história
sem grandeza. Nem Luandino concorreu ao prémio – foi um jurado que propôs o seu
livro – nem o recebeu. Esse prémio foi no seu tempo um acto corajoso, que contrariou
convenção dos prémios. Qual? Sempre a dos “recomendáveis”. Luandino era o contrário
dum “premiável”. A coragem de lhe dar o prémio teve um preço altíssimo – o fim da
instituição que o atribuía e a prisão de três membros do júri – mas dignificou como
em nenhum outro caso a atribuição dum prémio literário. Esse prémio inverteu a convenção
e foi entregue a quem, merecendo-o, não podia recebê-lo. Momento único na história
dos galardões, ele foi uma absoluta excepção. Os prémios foram sempre dados em Portugal
a quem os podia receber, aos inócuos, aos “premiáveis”, mesmo que não fossem inter pares quem mais os merecia receber.
É esse o motivo de nem sabermos hoje quem é Vasco Reis nem lermos o seu livro Romaria. Nesse pecado fundador de todos os
prémios literários lusitanos, reside afinal o supérfluo da sua essência.
Não se pense que a história geral
dos prémios literários mundiais é mais elevada e generosa do que a que se conta
para Portugal. Não é. Basta pensar que o prémio Nobel foi instituído com o dinheiro
que resultou da invenção da dinamite e da multiplicação das guerras. Atribuído pela
primeira vez em 1901 contemplou escritores anódinos como Sully Prudhomme, José Echegaray
e outros, de que ninguém hoje recorda o nome, deixando por premiar outros como Zola,
que saía duma encarniçada luta com o Estado francês, e Tolstoi, que defendia e punha
em prática ideias sociais assustadoras. Foi ainda o dispositivo dos “recomendáveis”,
não dos melhores, que ganhou. Outro prémio que é origem de muitos outros, que começou
a ser atribuído em 1903 e é hoje o mais prestigiado e vetusto galardão literário
francês, o Goncourt, tem na sua origem o testamento do escritor Edmond de Goncourt,
o mesmo que escrevia no seu diário no momento em que Mac-Mahon e Gallifet tomavam
de assalto Paris no final de Maio de 1871: “É excelente que não haja nem conciliação
nem negociação [...] uma tal purga, chacinando a parte combativa da população, adia
a próxima revolução pelo menos uma geração.” E concluía odiosamente: “Uf! São 20
anos de repouso que a antiga sociedade tem diante dela – isto se o governo arriscar
tudo o que pode ambicionar neste momento.” Que sorte teve Céline em 1932 ao perder
o Goncourt para Guy Mazeline! E que sublime razão teve Julien Gracq ao recusar o
prémio que lhe queriam dar em 1951 pelo seu romance Le rivage des Syrtes!
Volta-se a perguntar: os prémios
literários devem desaparecer? Tal como estão, tal como existem e respiram, são uma
tralha que envergonha poetas e escritores e da qual nada se pode esperar. Amoleceram
o nervo das associações da classe, desvitalizaram o seu impulso de confronto, sonegaram
aos escritores a sua consciência, contribuíram para uma hierarquia abjecta entre
eles – os grandes, os médios e os pequenos – baseada no prestígio pecuniário dos
galardões, “canonizaram” os socialmente respeitáveis, deixando de lado os incómodos.
Nada se perde se alguém tiver a ousadia de os deitar para o lixo. Mesmo que sem
eles não seja possível restituir em toda a linha o antigo esplendor de rebeldia
com que escritor surgia em público há dois séculos, ainda ficará ao menos a beleza
das ruínas, o espaço da sua ausência, onde algo mais belo e mais viçoso pode brotar.
Por esse motivo é preferível fazer a pergunta doutro modo: são os prémios reformáveis? Talvez. Uma condição, porém, se exige – e essa indispensável: inverter a sua lógica interna. Em vez de “fabricar” os melhores – é essa, no quadro da meritocracia, a sua função – devem servir de verdadeiro incentivo à criação. Assim os únicos “grandes prémios” que ainda fazem sentido hoje são aqueles que se preocupem em procurar o escritor esquecido, o escritor relegado, o escritor omitido, o escritor negligenciado, o escritor silenciado, o escritor humilhado, o escritor marginalizado, o escritor não-premiável, que preserva e insiste na sombra. No meio literário é esse que necessita de atenção e incentivo – é esse o único que requer o conforto dalguma luz e dalguma publicidade. Resgatar o esquecido e o marginalizado, retirá-lo da sua maldição e reconhecê-lo um inteiro, um irmão que se cumpre ou se esforça por se cumprir é hoje a única possível função nobilitante dum prémio literário. Tudo o resto é produto duma época sórdida, rendida aos valores da vaidade, da ambição, da ganância e da predação humana – imoral, desenfreada, suicida.
NOTA
FINAL
A carta que referimos no início do segundo parágrafo
deste texto vai de seguida transcrita: Lisboa,
2 de Abril de 1962 / Senhor Presidente / da Direcção da Sociedade Portuguesa de
Escritores /Os escritores abaixo assinados, confiados no elevado espírito responsável
pela boa formação da S.P.E., a propósito do júri eleito para a atribuição do “Grande
Prémio de Poesia”, vêm por este meio impor um voto de desconfiança a essa eleição,
e pedem que se proceda a novo escrutínio. / Os abaixo-assinados: / Acusam a incapacidade
literária, nalguns casos tocando a indigência mental, do dito júri: / Fazem notar
a desqualificação que o mesmo representa para os concorrentes; / Discordam do título
com que já se levou ao público ledor a proposta distinção, assim aparentada à gritaria
em torno das corridas de cavalos; /Reservam o direito, em nome da modernidade, de
dar pública forma a este documento. / aa) Ernesto Sampayo /Mário Cesariny de Vasconcelos
/ Virgílio Martinho
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO (Portugal, 1956). Ensaísta e historiador. É igualmente diretor da revista A Ideia. Fez um doutoramento em Literatura Portuguesa e uma agregação em Cultura Portuguesa. Os seus escritos sobre a História de Portugal tomam como ponto de partida os cruzamentos ou as parecenças entre a História e a Lenda. Reclama para a História, na linha de Fiama Hasse Pais Brandão, o direito à alucinação, pois uma História sem a teatralidade do imaginário não está viva nem é real. Estudioso da obra de Teixeira de Pascoaes. Poeta com uma vasta obra publicada, dedicou-se também ao romance histórico (9 títulos publicados), e é autor de duas biografias publicadas pela Quetzal – sobre Agostinho da Silva e Mário Cesariny.
FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA – REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)
Artista convidado: Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)
Editores:
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