segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Manuel de Castro – Os versos de gelo

 


Entre as muitas leituras possíveis da pequena grande obra de Manuel de Castro, quase todas por apontar, o que é escandaloso, uma me parece digna de surgir em primeiro lugar – a capacidade que mostra em condensar símbolos coletivos geracionais, por aí se tornando uma das mais representativas da geração em que se insere, o grupo do Café Gelo. O nome de baptismo do grupo tem já um riquíssimo simbolismo. Referimo-nos menos ao lugar, já ele valioso, dada a tradição anarquista que Aquilino algures lhe deixa, e que vinha do século XIX, do que à palavra. Gelo! Aí está uma palavra, miúda, com quatro letras, que na década de 50 do século XX, em plena Guerra Fria, era capaz de dar conta da situação internacional, além da interna, mais imediata, mas não menos fria, a da ditadura salazarista. O alcance da palavra vai ainda mais longe, ou mais fundo, ou até para outro lado, abandonando o contexto histórico ou geracional. O dissílabo cobre a própria transpiração do verbo de Manuel de Castro. É com gelo que ele faz os versos. A poesia de Manuel de Castro é uma poesia líquida, feita de água, mas água sólida, alimentada pelo ardor máximo do frio, do frio que mata. É uma poesia fria e ardente, sólida e transparente.

Helder Macedo, no pequeno memorial que dedica ao grupo, “Raposa branca num campo de neve” (revista Relâmpago, n.º 26, 2010, p. 140) fala do congelador, acertada figuração de muitas coisas. Em primeiro lugar o café do lado ocidental do Rossio, que se chamava Gelo. Não podemos deixar de tomar esta coincidência por uma objetivação casual, isto em época em que M. Cesariny punha em cena o jovem mágico de Pena Capital (1957). Depois o gelo era o país estrangulado pela mão cínica dum homem de sacristia; depois ainda o mundo congelado pelo medo do pugilato atómico das duas potências. Por fim, mais do que todos os outros, mas em concordância com eles, fora do contexto, no centro desses círculos concêntricos, como núcleo, estão os versos do Poeta, feitos eles também com o fogo gelado do gelo. Não há o mínimo visco nos versos de Manuel de Castro. Os seus versos e a sua prosa transvasam um frio que incendeia e gela no mesmo passo. São versos hialinos e finos, incolores e límpidos, que cortam e ferem como o vidro. Glosando de forma diferente o que poeta António Barahona diz dos versos de Manuel de Castro noutra página desta revista, não nos parece haver em portuguesa língua versos tão ardentemente gelados como estes. Têm a transparência do vidro, a finura da lâmina, ao mesmo tempo que irradiam a repulsiva rigidez da morte.

Nenhum outro grupo da época em Portugal, entre todos os que surgiram nas décadas de 50 e de 60, assegura uma universalidade tão ampla e tão representativa como o grupo do Gelo. E talvez nenhum outro poeta do grupo, que os tem em bom número e de excelente qualidade, se tenha adiantado como ele, Manuel de Castro, a escrever uma poesia tão representativa da geração e do grupo. Na verdade, nenhum outro poeta do grupo escreveu como ele os versos com um pedaço de gelo. Há muito ardor em geral nos poetas que o rodeiam, ardor e fúria, e basta para isso pensar nos versos de Herberto Helder, nos de António José Forte ou nas linhas de Ernesto Sampaio ou até nas de Virgílio Martinho, mas todos eles tiram o ardor mais do fogo e menos do gelo. Os versos de Manuel de Castro são os únicos que vão buscar o estado de ardor ao gelo, à sua mortalha, e não ao fogo ou ao álcool.

Abro o livro de estreia de Manuel de Castro e leio o primeiro poema, Paralelo W, que dá nome ao livro, e nele encontro símbolos geracionais fortes, como a geração angélica e terrível. A locução é forte e aderente além de ardente. Apetece perguntar: que geração é esta? Reponde por um lado a história do Grupo do Gelo; por outro o poema. É a geração que se vai iniciar e ter um nome diferente e que surge no tempo em que morrem os Príncipes/ e se iniciam os ritos bárbaros da Grande Velocidade. Se os príncipes que morrem podem deixar a pairar no ar, em poesia tão pouco referencial, uma dúvida sobre quem são, já os ritos bárbaros da Grande Velocidade, com facilidade se captam a partir duma situação técnica, que, efeito ainda da guerra, se espalhou no dia-a-dia do Ocidente. É ela a névoa glacial do pesadelo gelado a que se chamou Guerra Fria. Ritos bárbaros da Grande Velocidade, diz ele. Eis um verso escrito com gelo, um verso que, não perdendo ardor e incêndio, gela e mata como veneno. Não se trata dum verso frio – como os do autor de Morte e Vida de Severina podem ser – mas dum verso gelado. Com a mesma matéria hialina se escreve a locução, belíssima de resto, a geração angélica e terrível, o mais direto e certeiro apodo que o grupo do Rossio lisboeta para si tomou, mas que não deixa de produzir um calafrio. Quer a Guerra Fria, quer os versos de Manuel de Castro concebem um inferno de gelo, não de fogo. O que queima, o que castiga, o que mata, não é a labareda mas o grau zero do frio. Inferno, inverno. Logo em vez da tristeza e do seu incêndio, rigidez hirta, sincelo, petrificação, que não é parnasiana ou ática. Há aqui uma transparência que só pode ser ligada à transcendência imanente, uma metáfora da morte abissal que toca o renascimento oculto. Nada pois de estatuária realista, mas poesia inspirada pelo real absoluto.

Para se saber o que é um rito bárbaro pense-se na facilidade com que se passou a ter nesse tempo uma máquina de lavar, um frigorífico, ou qualquer outro eletrodoméstico. O momento em que Manuel de Castro escreve é aquele em que as proezas técnicas entraram dum dia para o outro, como milagres, pelas humanas casas dentro. As aparências desses objetos metálicos e mortos são frias e inócuas. Ainda assim foram eles afinal o contraponto da corrida ao armamento desses anos, assentes que estavam na mesma base da bomba atómica, a fissão do átomo nas sinistras centrais nucleares que o pós-guerra trouxe à paisagem do mundo, e de que hoje Fukushima, depois de Chernobyl, nos dá a ver o lado de rito bárbaro, o estado de glaciação em que vida caiu. É o brilho cortante do aço fino, a cinza que o gelo tem. Tal brilho reverbera bem naquele emblemático lugar na esquina do Rossio que um acaso muito objetivo quis que fosse isso, mas com maiúscula universal – Gelo. É possível aqui cruzar duas gerações geograficamente distintas e até distantes, coincidentes, porém no tempo e no espírito, a que se desenvolveu em Times Square ou na Six Gallery de São Francisco e a que se acantonou na parte ocidental do Rossio lisboeta, no café Gelo. Tal cruzamento pode, porém, constituir uma das mais ricas linhas de leitura para entender a situação axiológica da geração portuguesa.


Idêntica força enunciativa se encontra em outro poema do mesmo livro, A Erc Josamu Jove. São de seguro efeito coletivo os dois versos de abertura do curto poema de doze versos, Nós os intocáveis, os imundos, recusamos/ nossa vida à condição comum. Substantivar os adjetivos, intocáveis e imundos, processo que se repete mais adiante, os derrotados e os impuros, é uma forma de traçar uma condição para o grupo em que o sujeito se insere. Será a invulgaridade que justifica o intraduzível título do poema, a erc josamu jove? É possível que sim. Mais imediata do que essa língua desconhecida, a remeter para a elaboração verbal de certos passos da poesia de António Maria Lisboa, é a situação espiritual duma geração coletiva. Que situação é essa? A da margem, como se percebe. Dito doutro modo: em vez do frio cortante do gelo, o seu ardor explosivo; em lugar do aço, a luz hiperbórea dos pólos. E que geração histórica? A que nasceu na década de 30 do século XX, ou pouco antes, quando se começou a formar o tufão catastrófico do segundo grande conflito mundial, e viveu os vinte anos na década de 50, quando, após a derrota das potências do eixo, em vez duma Primavera de paz e de liberdade, o mundo gelou de pânico no inverno glacial da guerra fria, com as gravíssimas ameaças mútuas de destruição nuclear das duas grandes potências, isto depois do mundo ter medido incrédulo as criminosas consequências de Hiroxima. Se atendermos a esta situação geral, capta-se melhor a recusa da condição comum, que tanto é no caso de Manuel de Castro a rejeição do mundo tal como está, o mundo que se precipitou na guerra e dela saiu para de novo nela mergulhar, como recusa de qualquer mundo sujeito às rígidas determinações da matéria ou às apertadas contingências da História. Não se repudia no seu verso apenas o mundo legado, o mundo deixado em herança pelos antepassados imediatos, mas também o mundo criado, o mundo modelado pelo criador original. O gelo dos seus versos não é apenas o duma situação internacional que congelou na guerra fria, mas o duma condição interna que não cede qualquer espécie de compromisso com a vida sensível. Frieza glacial da alma num vaso que não é seu. Viagem e contato mental com o real absoluto, que o surrealismo final dum Breton identificou ao mundo platónico das ideias e ligou ao oculto velado da gnose alquímica e cabalista. Tal como o vaso sensível, que não pertence ao real absoluto, se desfaz e putrefaz na lama terrena, também o gelo acaba mais tarde por se desfazer e liquefazer na água indiferenciada, que alimenta o princípio da vida terrena.

Como não ligar este gelo a outra das grandes representações geracionais do grupo do Gelo, o abjeccionismo? De todos os companheiros de geração ou de grupo, ao menos entre os que escreviam, talvez o Luiz Pacheco da mendicidade e da abjecção, o Pacheco como encarnação do anjo da queda, seja aquele que mais próximo está do autor de Paralelo W e da autodestruição sistemática a que se entregou. Só esse Pacheco parece ter escrito algumas das suas linhas com o mesmo gelo infernal, o mesmo gelo envenenado, de Manuel de Castro. Aquilo que lhe sobra em miséria, em frieza, em cinza e até em transparência, tão nítida, falta-lhe, porém, em ardor, esse que tanto chispa, e até em irisada policromia fabulosa, no verso do companheiro de geração, a quem de resto prestou sempre comovida homenagem.

Um outro poema significativo de Manuel de Castro é “Equidistante e Neutro”, do mesmo livro, enunciado em registo distanciado, mas coletivo, com recurso à terceira pessoa do plural, o mesmo que se encontra no poema que abre o livro, Paralelo W. O poema abre com uma imagem forte e enigmática, os jovens loucos transformaram a meta, e prossegue com uma atmosfera veemente de rejeição e repulsa, o planeta se confundirá em nojo ou o puzzle vai ser reconstituído/ com a caveira dos nossos pais, a concordar por inteiro com aquilo que se lê no curto poema antes comentado. Primeiro a identidade do poema com uma situação histórica geral, que tanto é a do salazarismo como a da Guerra Fria, como ainda a situação familiar mais restrita, mas não menos catastrófica do poeta, órfão duma mãe com a qual podia ter tido infinitas afinidades e a cargo dum pai que era funcionário da administração salazarista, além de católico praticante, e com o qual não sentia qualquer empatia. Os pais tanto são os pais do mundo, como os pais do país, como os pais duma geração – incompreendida, primeiro, traída e maltratada, logo depois – como os pais de Manuel de Castro. Variante para tanto pai: os governantes da guerra, os ditadores do bafio, os progenitores da hipocrisia, os professores de Coimbra. Acercamo-nos aqui da condição interior da alma, pela qual o poeta é e não é o mundo. Por um lado, a frieza duma alma pura que congelou num vaso de terra que lhe repugna – e daí os imundos, os impuros; por outro os últimos habitantes da Terra, os que coroam jardins e impérios, não porque estes existam mas porque há quem os sonhe no ardor duma alma gelada mas não corrompida. Eis então a labareda do sonho como presença dum lugar de fuga à condição comum, ao nojo, à caveira, ao mundo tal como ele foi legado pela geração anterior, por todas as gerações anteriores, até ao Criador inicial de todas elas e onde reside a primeira culpa da corrupção – a caveira arquetípica dos nossos pais – a que só uma frenologia da abjecção poderá dar o devido destaque.

Sobrepõe o poeta ao mundo da matéria, ao mundo do pai, um plano impalpável, intemporal, sobre-humano, sobre-material, que diz respeito ao espírito. Que domínio é esse? O da poesia; ou como ele disse algures (revista Pirâmide, n.º 3): a poesia é a existência no plano do espírito. É o plano do ardor explosivo, do fogo, da luz sólida, da policromia irisada, que há no gelo. Daí a rosa intemporal, a asa branca, o significado oculto, a terra de ninguém que aparece no curto poema “A Erc Josamu Jove”, que Cesariny recolheu na coletânea Surreal-abjecion-ismo (1963); daí ainda o ponto cardial equidistante e neutro, a muralha impalpável que surge em “Equidistante e Neutro”. Num texto quase final, “Prolegómenos a uma história de animais”, publicado no número único de Grifo (1970), em interlocução com Mathilde Pross, que começa com uma pergunta, sabes o que é uma cidade, depois reiterada várias vezes ao longo dos parágrafos, e que nos lembra os textos de Artaud mais veementes e destrutivos, como a “Anarquia Social da Arte” (El Nacional, México, 18-8-1936), voltamos a encontrar a capacidade de traduzir situações coletivas, neste caso menos através dos símbolos que aparecem na sua poesia em verso e mais por uma atmosfera criada e que traduz em frieza cínica, sem esconder todavia o desespero extremo, o que há de medíocre numa cidade como Lisboa. Uma tal insensibilidade constitui uma das linhas fortes, com o abjeccionismo de Pacheco, daquela rejeição do mundo sensível que atrás indicámos.


A questão da repulsa visceral pelo mundo material que se encontra na poesia em verso de Manuel de Castro, e que se repete no texto de 1970, merece atenção cuidada. Por um lado, ela faz causa comum com todo um segmento da criação geracional do Grupo do Gelo, a começar no Luiz Pacheco já referido, mas que se continua e desenvolve em outros autores como António José Forte e Virgílio Martinho, onde o desgosto, a náusea, a rejeição do mundo, não é menor. Ainda assim não é com gelo que o primeiro escreve os seus versos e o segundo as suas linhas. O primeiro tem consigo uma faca ou um ácido corrosivo, e não apenas um pedaço ardente de gelo; o segundo, tem com ele o poder incendiário do álcool puro. Por outro lado, a repulsa de Manuel de Castro, em conjunto com a sua necessidade de trocar o mundo sensível pelo real absoluto, que não é do plano dos sentidos, parece dar a medida da situação pessoal desta poesia.

A definição de dois patamares em confronto, tal como os encontrámos em poemas como Paralelo W ou “A Erc Josamu Erc”, leva-nos a pensar nos dois planos conhecidos, o do real sensível e o do real absoluto, o do real do dia-a-dia e o do real autêntico, o da experiência e o da inocência, para usar aqui os termos dum antigo poeta inglês que apontou this heavy chain/ that freeze my bones around (W. Blake, “Earth’s Answer”, Songs of Experience), e ainda a colocar para uma obra assim dualista, entre o branco e o negro, as trevas e a luz, o real e o surreal, na linha de outras de idêntica tradição, a questão da espiritualidade gnóstica, tal como foi vivida por dentro da filosofia operativa de Pitágoras a Proclus e Plotino ou nas margens das religiões reveladas. Que a poesia de Manuel de Castro não passa sem uma atenção cuidada às fontes religiosas, parece-me seguro para quem escreveu o poema “Imunidade” de Paralelo W e até para quem responde, na carta de 17 de Maio a Helder Macedo, à questão do budismo de forma tão decidida e ao mesmo tempo tão evasiva, como se dissesse não sou mas sou. Fala aí duma situação espiritual minha, presente no livro A Estrela Rutilante, que convirá ligar à prospecção gnóstica que numa outra carta, desta vez a António Barahona, ele faz equivaler à Poesia, com maiúscula, enquanto estilo de vida (v. Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea, Lisboa, Averno, 2011, p. 209). Estilo de vida? Sim, por certo. Assim se entenderá melhor o último verso de Paralelo W iniciar-se e ter um nome diferente como sinal vivido duma passagem ritualística e secreta na direção do plano que o poeta sobrepõe ao mundo material do Pai. Assim o Sul de que se fala nesse poema, ou o Oriente que cintila em outros de A Estrela Rutilante, não são para ser tomados à letra, mas como figuras desse outro mundo absoluto e autêntico, não corrompido, senhor de todos os poderes originais, em cuja descoberta o poeta digno desse nome deve empenhar vida e talento.

Pergunto-me se terá sido esta peculiar situação espiritual da poesia de Manuel de Castro, muito tocada pela concepção gnóstica do mundo, que o terá levado a escolher Camilo Pessanha como o seu mais directo progenitor poético, o único mesmo a quem ele rende tributo. Todos os restantes, de Pascoaes a Pessoa, de Antero a Régio, são deliberadamente afastados. É difícil não reparar na manifesta apropriação por Manuel de Castro das imagens do Camilo Pessanha de poemas como “Ao longe os barcos de flores” e “Viola chinesa”. Tais imagens aparecem refeitas ou rarefeitas, com maestria admirável, de forma quase irreconhecível, em poemas como “O pesquisador de luas”, “Marinha” ou “Adeus”. Em tal filiação se pode ver um propósito de suspensão do mundo e do tempo, vizinho aliás, quer no processo, quer na intenção, daquilo que se encontra em alguns poemas finais do Pessoa ortônimo, também ele muito devedor das imagens visuais de Pessanha. Não podemos deixar de ligar este segmento da poesia de Manuel de Castro a um dos passos da segunda carta que ele escreve a Helder Macedo, março de 1960, que contém o poema “Balada”, também tocado ao rés da água pelo efeito deliquescente do filtro da clepsidra, se não do ópio. O trânsito entre os dois mundos tanto se faz no sonho do fumador de ópio, aí através dum agente exterior, como através do poema, nesse caso através dum impulso próprio da alma. Nesse sentido vale a pena aproximar o ópio do gelo. Se o gelo pára a vida, o ópio suspende o tempo; se o gelo amortece os sentidos, o ópio calcina o corpo. Os versos de Pessanha foram escritos com o ópio da China; os de Manuel de Castro foram escritos com o gelo da alma êxul, e logo depois com o gelo do mundo, um gelo suicidário e apocalíptico. Há um vaso de secreta comunicação entre os dois círculos. A apropriação que Castro faz dos motivos de Pessanha é para ser vista como explicitação deste vaso e não como necessidade de suprir uma deficiência expressiva própria, que está fora de questão em escritor de imaginação ardente e de tão exímio domínio linguístico. Os versos do gelo são vizinhos dos versos do ópio. Há uma combustão no gelo, um delírio caleidoscópio de cores, um ardor aceso, uma irisação alucinatória, como há no consumo do ópio uma geleira, uma massa glaciar estática e extática, um movimento imóvel, que à sua passagem tudo petrifica.


Na segunda carta a Helder Macedo, adianta-se a hipótese de uma longa viagem à Ásia, talvez Macau, talvez a Índia, que nunca chegou a acontecer, deixando de lado os anos que Manuel de Castro passou na infância, antes da morte da mãe, em Goa e em Moçambique. É suficiente, porém, a hipótese, junto àquela outra afirmação na terceira carta, de 7 de abril de 1960, de que bem sabes que na Europa já não há lugar para a aventura, a não ser a pequena aventura de torna-viagem, para lhe prestarmos atenção. Também a afirmação, na carta final, de 17 de maio de 1960, de que não é budista mas vive uma situação espiritual singular, ajuda a esclarecer a condição geral em que estes poemas frios foram criados. Por fim o solene, enigmático poema de A Estrela Rutilante, “Regresso a Oriente”, que pode ser encarado no itinerário dos seus sinais como a verdadeira viagem que o poeta fez ao frio e negro ponto da noite em que a Luz rompe.

Manuel de Castro dá um rosto ao Gelo, ao gelo do seu tempo, ao gelo internacional, ao gelo da Guerra Fria, ao gelo da técnica apocalíptica, ao gelo da sua geração lisboeta e portuguesa, ao gelo do seu drama pessoal, marcado por desastres trágicos e funestos, ao gelo da sua alma atormentada e magoada por uma condição metafísica que ultrapassa a História, qualquer História pessoal ou geral, e se vê desde e para sempre como éon expulso do Paraíso, expiando sem memória sensível da sua criação primeva o duro e escuro exílio da Terra, que segundo o poeta inglês gela os ossos. Eis aqui o poeta da geração angélica e terrível, o poeta que escreveu como nenhum outro os versos do gelo.




ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO (Portugal, 1956). Ensaísta e historiador. É igualmente diretor da revista A Ideia. Fez um doutoramento em Literatura Portuguesa e uma agregação em Cultura Portuguesa. Os seus escritos sobre a História de Portugal tomam como ponto de partida os cruzamentos ou as parecenças entre a História e a Lenda. Reclama para a História, na linha de Fiama Hasse Pais Brandão, o direito à alucinação, pois uma História sem a teatralidade do imaginário não está viva nem é real. Estudioso da obra de Teixeira de Pascoaes. Poeta com uma vasta obra publicada, dedicou-se também ao romance histórico (9 títulos publicados), e é autor de duas biografias publicadas pela Quetzal – sobre Agostinho da Silva e Mário Cesariny.




FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

  



Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA  REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)

Artista convidado:  Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)

Editores:

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