segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | O grupo do Café Gelo: do princípio ao fim

 


O nascimento do grupo do Café Gelo está registado em pelo menos dois depoimentos de Helder Macedo, talvez aquele que de forma regular e pertinente mais tem contribuído para historiar o grupo. O primeiro, o mais antigo, chamado “Ritos de Passagem”, publicado no catálogo KWY Paris 1958-68 (Centro Cultural de Belém/Assírio & Alvim, 2001), saído das mãos de oiro de Manuel Rosa, estabelece com precisão o momento do nascimento do café como espaço de convívio dum grupo de jovens, a partir do momento em que quatro pintores – René Bertholo, João Vieira, Gonçalo Duarte, José Escada, a que se junta Lourdes Castro – arranjaram uma oficina, no Rossio, em Lisboa, ao virar da esquina, de esguelha para a estação do Rossio, no sótão do prédio do Beira-Gare. Foram esses quatro jovens que, para a bica, escolheram, entre os muitos cafés e esplanadas que tinham à disposição na praça, o Gelo, talvez o mais neutro e próximo. João Vieira, segundo Macedo, foi o primeiro a adoptar o Gelo para bica e ponto de encontro. Aos quatro iniciais logo se juntaram os amigos mais próximos, aí se criando um grupo fixo, que se encontrava às tardes ou às noites. Helder Macedo não apresenta nesse texto uma data rigorosa para o evento, situando-o apenas cronologicamente nos anos de 1950, mais precisamente [a] segunda metade dessa década. No segundo texto sobre o assunto, “Raposa branca num campo de neve” (Relâmpago, n.º 26, abril de 2010), avança com um ano preciso, 1956, para o momento em que conheceu Mário Cesariny no café. Ora a chegada de Mário Cesariny ao grupo do Café Gelo, em 1956, quase ao virar da primeira para a segunda metade da década, foi temporão. Assim sendo, o início, ou pelo menos a primeira consolidação, do grupo pode ser fixado com algum rigor no ano de 1956.

Quem levou Cesariny ao café da quase esquina do Rossio? Não há indicação em Helder Macedo que aponte para uma resposta. Pela minha parte convenço-me que qualquer dos quatro podia conhecer Cesariny no momento do aluguer do sótão do prédio do Beira-Gare. Lourdes Castro, a mais velha, nascida em 1930, vinda do Funchal, entrara em 1950 na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, onde fechou a licenciatura em 1956. René Bertholo, nascido em 1935, frequentara as Belas Artes de Lisboa e casará com Lourdes Castro em 1957. Gonçalo Duarte, nascido também em 1935, frequenta o Pedro Nunes, a António Arroio e depois as Belas Artes, onde conhece Lourdes e Bertholo. José Escada, nascido em 1934, ingressou na mesma escola em 1950 e nela conheceu os amigos com quem viria a alugar o sótão. João Vieira, nascido no mesmo ano de Escada, teve idêntico percurso, chegando à Escola em 1951. Ora nesta altura ainda António Maria Lisboa, apenas dois anos mais velho do que Lourdes Castro, estava vivo e frequentava a oficina de Isabel Meyrelles na Travessa do Ferragial, onde foi tirada a fotografia dos telhados com Mário Henrique Leiria, Cesariny e Cruzeiro Seixas. Em todo o caso, a partir daquilo que conheço, é impossível dizer qual deles chamou para o meio do grupo Mário Cesariny, que logo se tornou, pelo ascendente da idade, pela obra editada desde 1950, pelas relações que tivera com António Maria Lisboa, pela presença em Paris em 1947 junto de André Breton, um centro magnético. Gonçalo Duarte, pela colaboração dada à Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito (1960), pelo entusiasmo com que aderiu ao surrealismo e citou Cesariny, é talvez uma hipótese forte, mas não segura, da chegada de Cesariny ao grupo.

Deve-se com certeza a Gonçalo Duarte a chegada ao grupo de dois dos seus amigos, Helder Macedo e Manuel de Castro, o primeiro antigo colega do liceu Pedro Nunes e o segundo visitante esporádico do mesmo liceu. O retrato que Macedo, no primeiro texto, faz de Manuel de Castro nesta época, os derradeiros semestres da década de 40, e neste liceu, Pedro Nunes, que classifica de improvável, é muito preciso e vale a pena ser transcrito: também apareceu a rondar por ali [Liceu Pedro Nunes] o Manuel de Castro, elegantíssimo e a ganhar sempre em todos os jogos enquanto proferia enigmas esotéricos. Andavam os três – Castro, Macedo, Duarte – por volta dos 15 anos. Aos três, junta-se ainda Fernando Gil, colega do mesmo liceu e que também terá passado pelo café Gelo. Manuel de Castro, nascido no mesmo ano de Escada e um ano mais velho do que os dois amigos do liceu, foi pois dos primeiros a chegar ao café. Chegou no ano de 1956 (ou no final de 1955) e foi um dos que lá permaneceu até ao fim, já no início da década de 60, quando o grupo que se reunia no café mudara e os iniciais, chegados do prédio do restaurante Beira-Gare, já haviam batido asa, deixando lá os amigos, a que se foram juntando os amigos dos amigos. Manuel de Castro atravessou pois, durante cerca de sete anos, de 1956 a 1962, todas as fases do grupo, tornando-se porventura pela obra em livro, editada em exclusivo nesse período, em 1958 e em 1960, a figura mais representativa do espírito do grupo.

A composição do conjunto que se reunia no café não tardou a mudar, pois Bertholo, Lourdes e Gonçalo Duarte partiram para Munique em 1957 e depois para Paris no ano seguinte, não mais regressando. Ainda em 1957, João Vieira partiu para Paris, onde ficou. Em 1959 Escada seguiu o mesmo caminho, juntando-se ao resto do grupo que, entretanto, com o alemão Jan Voss e o búlgaro Christo, desenvolvia em Paris a revista KWY, com tiragem de 12 números até 1963, e as edições com o mesmo nome, que se mantiveram até 1967. O grupo KWY, constituído em parte pelos que deram origem ao grupo do Gelo, está, porém, fora já deste conjunto, constituindo uma história à parte, a estudar em separado. Não quer isto dizer que os dois grupos, nascidos do mesmo fundo comum e com personagens que são por vezes as mesmas, não se tenham cruzado, como sucede na colaboração que Mário Cesariny, Manuel de Castro, Herberto Helder, Helder Macedo, José Manuel Simões ou Alfredo Margarido, todos eles ligados ao café Gelo, deram à revista editada em Paris. Não se pode dizer, todavia, que KWY seja uma publicação do grupo do café Gelo, mesmo que tenha sido feita pelos seus fundadores. Menos ainda se deverá dizer que se trata duma publicação surrealista, mesmo que alguns surrealistas, como Cesariny ou Manuel de Castro, por lá passem. Lourdes Castro e René Bertholo, os fundadores da KWY, no momento da saída do primeiro número, em maio de 1958, já estão em Paris, longe do Gelo e do grupo que nele convivia, mais interessados em fazer uma revista internacional, que possa significar o ponto de partida dum novo grupo, o KWY, do que em reatar contatos com os amigos portugueses. Só mais tarde, com a chegada de Gonçalo Duarte ao segundo número e de José Escada ao terceiro, se começam a perspectivar as pontes com o grupo remanescente do Gelo, que terá o ponto cimeiro na separata do quinto número, dezembro de 1959, em que Cesariny colabora porventura a convite de Manuel de Castro.


Mais próxima do grupo do Gelo, e tão próxima que a podemos tomar como emanando dele, o que não sucede a KWY, está uma outra revista da época, Folhas de Poesia, que teve ligações diretas com membros do grupo e recebeu prestações surrealistas. Não creio, porém, que possa ser avaliada como órgão exclusivo do grupo e menos ainda como surrealista. A revista tirou quatro números (1957-1959), teve coordenação de António Salvado, contou com a ajuda de Herberto Helder e Helder Macedo, e chegou a ter colaboração gráfica do grupo de jovens pintores que tinham oficina por perto, então em trânsito para a Europa, mas ainda, no momento do arranque da publicação, por Lisboa. As capas foram todas assinadas por eles. O primeiro livro de Helder Macedo, Vesperal (1957), também com capa e arranjo dum deles, João Vieira, foi editado pela coleção “Folhas de Poesia”, que chegou a anunciar um livro de Alfredo Margarido, outro de Fernando Gil, outro ainda de Herberto Helder (Dicionário de Rimas). As folhas, cujo número final foi dedicado a Ângelo de Lima, merecem, pois, larga atenção quando se fala da geração do Gelo.

De todos os membros do grupo que deram colaboração à revista KWY o mais persistente, o mais regular, o de mais larga colaboração, foi Manuel de Castro. Enquanto Herberto, Margarido, Cesariny ou Helder Macedo apenas colaboram com a revista uma única vez, Manuel de Castro multiplicará as prestações. A separata do número cinco, de dezembro de 1959, do ponto de vista poético a melhor realização do grupo, com textos de Manuel de Castro, Mário Cesariny, José Manuel Simões, que prestou apoio a vários números, e António Ramos Rosa, é organizada por ele e por João Vieira. Foi essa plaquete, ou o extra-texto dela com poemas de Luiz de Macedo e Pedro Tamen, que motivou a crítica dura de Helder Macedo e que levou depois à carta de Manuel de Castro de 8/9 de fevereiro de 1960, que noutro lugar desta revista se dá a conhecer com o comentário do destinatário. O autor de Paralelo W volta a colaborar no número seis de KWY (Junho de 1960), com um texto de homenagem ao amigo do liceu, Gonçalo Duarte, “O Pintor de Monstros”, e no número oito (Outono de 1961), com um texto em francês.

Sabemos pelas cartas de Manuel de Castro a Helder Macedo, que este ainda no final de 1959 ou nas primeiras semanas de 1960 trocou Lisboa por Londres, passando pela África do Sul. O autor de Vesperal já estivera em Londres dois anos antes, entre novembro de 1957 e março de 1958; o poema que publicou no segundo número de KWY (agosto de 1958) aparece pois com a data de janeiro de 1958 (Londres). Também o poema de Manuel de Castro, “Notícia pessoal para um Amigo em Londres”, consagrado a Helder Macedo, é dessa época e surge no livro desse ano, Paralelo W. Manuel de Castro ficou em Lisboa e seguiu os desenvolvimentos do grupo do Gelo, que acabara de receber, em 1958, Carlos Loures e Máximo Lisboa, que organizarão a revista Pirâmide, de que sairão três números (dezembro de 1959; junho de 1960 e dezembro de 1960). Helder Macedo deixa de frequentar de forma definitiva o café no momento em que o grupo entra na fase da publicação de Pirâmide, na qual já não entra. A importância desta revista na existência do grupo do Gelo é grande. Quer pela qualidade dos textos e das imagens, quer pelas colaborações surgirem como maximamente representativas da vida do tempo e das figuras do grupo, quer ainda por poder ser considerada como uma das raras revistas, se não mesmo a única, que o surrealismo português deu a lume, a publicação pode ser tida como a voz mais autêntica da geração do Gelo. Sem ter a originalidade gráfica de KWY, nem de perto nem de longe, a revista compensa a inferioridade neste campo, com uma qualidade textual excepcional, deixando muito para trás a do grupo parisino. Basta apontar que para além de Cesariny, de Manuel de Castro, de Margarido ou de Herberto, que tanto colaboraram em KWY como em Pirâmide, nesta entram ainda António José Forte, Luiz Pacheco, Raul Leal, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Virgílio Martinho, José Carlos González, José Sebag e Ernesto Sampaio. Mesmo no restrito campo das imagens, registe-se a colaboração de D‘Assumpção, um habitual nas reuniões do Gelo, e que nunca entrou em KWY. Não é, pois, despropositado afirmar que o ponto alto da vida do grupo do Gelo se situa entre 1959 e 1960 e corresponde ao momento da feitura e da saída dos três números de Pirâmide, mesmo se nesta época os fundadores do grupo já por lá não estavam e nenhum deles tenha colaborado na publicação.

O caso da coleção “A Antologia em 1958”, da responsabilidade de Mário Cesariny, que editou entre 1958 e 1963, é diferente de KWY e Folhas de Poesia. Não sendo uma revista, mas uma junção de livros, onde editaram Luiz Pacheco, António José Forte, Natália Correia, Virgílio Martinho, António Maria Lisboa e Mário Cesariny, a coleção pertence quer ao surrealismo, quer ao grupo do Gelo. Em termos de edição, é ela porventura a mais importante manifestação do grupo, donde mais uma vez estão ausentes os quatro ou cinco fundadores que tinham oficina na esquina. O seu período de vida coincide com o da última fase do grupo que se reuniu no Gelo. É a fase em que os iniciais já haviam desandado para Paris e posto em andamento a revista KWY, assim se autonomizando em sentido diferente; é também o momento em que Carlos Loures e Máximo Lisboa chegam ao grupo, coordenam os três números de Pirâmide e dão à geração do Gelo uma expressão que antes não tivera. A coleção orientada por Cesariny durou porém mais do que as reuniões do grupo no café, que tiveram o seu fecho em 1962, e mais do que os três números de Pirâmide, que se ficou entre 1959 e 1960.

Na sequência da atividade editorial desta coleção de opúsculos, orientados graficamente por Cesariny, sempre com idêntico enquadramento de capa, que em 1980 retomou no catálogo da Biblioteca Nacional dedicado a três poetas do surrealismo português (Oom, Lisboa, Leiria), é possível colocar outra empresa que surgiu por esta mesma época. Trata-se do volume antológico em torno do surreal-abjeccionismo, editado em 1963, com o título Surreal-Abjeccion-ismo, mas cujo trabalho de preparação vem de trás, arrastando-se com certeza ao longo dum bom par de anos. Muitos das matérias publicadas na coletânea são da segunda metade da década anterior e chegou a haver uma publicação de parte dos materiais antológicos um ano antes da saída do volume, no Jornal de Letras da época (n.º 16, 17-1-1962), em que Helder Macedo colabora com uma colagem enviada da África do Sul. Não veio, porém, a colaborar na edição em volume, o que também sucedeu a Carlos Loures, que surge na página do jornal, não figurando depois no volume, onde em contrapartida surge António Quadros, o poeta de Quybíricas, que também passou pelas mesas do café. O conceito do surreal-abjeccionismo é típico da fase do Gelo e foi por certo coado e desenvolvido à volta das mesas do café do Rossio, dando origem à coletânea de 1963 – assim como à entrevista de Pedro Oom ao Jornal de Letras, 6-3-1963, em que se teoriza pela primeira vez o abjeccionismo como movimento e se postula a sua autonomia, mas também a sua estreita proximidade, em relação ao surrealismo.


A história do epílogo do grupo do Gelo, ou ao menos das reuniões no café, é contada por Luiz Pacheco. É um passo importante em que se fica a saber com pormenor os sucessos que levaram a que o café deixasse de ser centro das reuniões do grupo. Esses encontros, que haviam começado em 1956 (ou 1955), fecharam no princípio do mês de maio de 1962. Não vale a pena parafrasear Luiz Pacheco; prefiro passar-lhe a palavra. Conta ele assim (O crocodilo que voa, 2008): Lembro-me do dia 1 de maio. Havia uma manifestação muito grande em Lisboa… havia greve, talvez… ó pá, houve mortos e tudo, houve polícias que foram parar dentro do lago do Rossio… aquilo foi a sério… foi a primeira manifestação a sério que houve em Lisboa … depois no dia 8 houve segunda… foi a primeira vez que apareceram carros de água com metilene para marcar as pessoas, tinta que não saía… eles aí apanharam muita porrada, na Rua da Madalena, no Largo da Anunciada… então a malta do Gelo, estava lá o Virgílio Martinho, que disse: o que é que a gente veio cá fazer? Respondi-lhe: então a gente veio cá mostrar o casaco… dar porrada? O que é que se pode vir fazer… E de facto estivemos no dia 1 de maio muito sossegados. Eu sentei-me num cantinho, tinha ao meu lado o pai da Fernanda Alves, que era o funcionário do DN, por isso é que o genro aparece no DN, ele estava ao meu lado, também muito choné, e mostra-me a arma que era um canivete com uma coisa deste tamanho… também devia estar o Ernesto Sampaio, o João Rodrigues… ao lado do Gelo havia uma pensão residencial e acho que uma estrangeira qualquer, americana ou inglesa, saiu da pensão para a rua, sabia lá o que se passava, e os gajos vieram atrás da mulher, pareciam verdadeiras feras, ela vinha assarapantada, vieram a sacudir a mulher… disseram: ninguém se levanta daqui, ninguém sai! O João Rodrigues tinha ido mijar ao primeiro andar, vinha a descer a escada, disseram, ei você… E a malta disse: É daqui! É daqui! É daqui deste grupo que está aqui sentado… Quando os gajos iam a sair, já de costas voltadas, não sei por que carga de água começámos uhuhuhuhuhuh. Quando a malta faz o uhuhuhuhuhuh os gajos regressam e começam a dar porrada à maluca… eu estou no canto, vem um gajo distribuir cacetadas… eu aponto para os óculos e fizemos um passo assim de dança, ele para um lado eu para outro, depois começou a dar porrada num gajo que estava sentado e eu pirei-me, pirei-me para outro canto… nós não podíamos sair… Havia uns açucareiros de metal, que eram assim uma meia esfera de metal, cheios de açúcar, aquilo era chato, os açucareiros voaram, estava um gajo com a pinha toda partida, cheia de sangue e de açúcar… havia lá um gajo que era careca, diziam que era bufo, levou porrada dos polícias. O gerente, que era um gajo chamado Sequeira, um gajo muito simpático, foi chamado à esquadra nacional e perguntaram-lhe: quem são esses gajos? Ah, aquilo é malta, estudantes, artistas, pintores, poetas… Não quero lá esses gajos. De maneira que quando lá voltámos, 3 ou 4 de maio, o gerente disse; Vocês não podem estar aqui. Fomos expulsos do Gelo. Foi quando a malta se passou para o Café Nacional, um café enorme, que agora já não há, que era lá ao fundo, na Rua 1.º de Dezembro, do lado direito… Foi pois com uma batalha campal que tiveram fim as reuniões do grupo no café Gelo, que se passou para a rua 1.º de Dezembro e depois para os cafés da zona do Saldanha, sobretudo o Monte Carlo, onde o grupo se encontra no momento da feitura da coletânea Grifo (1970), onde parte da geração do Gelo se volta a encontrar numa publicação coletiva.

Regresso aos textos de Helder Macedo e ao momento da fundação do grupo do café Gelo. No segundo testemunho, não resisto a transcrever um passo, em que se encontram elementos para a caracterização do café no quadro dos outros que por perto havia, isto numa época em que o Rossio era uma praça de cafés e esplanadas, uns ao lado dos outros, e ainda os valores que orientaram a geração que por lá se começou a reunir e donde saíram depois as várias publicações que atrás se comentaram, Folhas de Poesia, “A Antologia em 1958”, Pirâmide e até KWY. Mesmo se esta já pertence a um lugar diferente, foi ainda feita pela mesma geração. Dou-lhe a palavra (Relâmpago, 2010): Conheci o Mário Cesariny julgo que em 1956, no café Gelo, no Rossio, um café tradicionalmente frequentado por pacatos comerciantes imunes às intelectualidades institucionais da Brasileira do Chiado e aos esforçados suores estudantis na cave do café Martinho que então havia para os lados do Teatro Nacional. O Gelo tornara-se num conveniente local de encontro de alguns aspirantes a poetas com alguns aspirantes a pintores que partilhavam um parco atelier nas águas furtadas do prédio ao virar da esquina. Os jovens pintores, futuramente associados ao exílio parisiense do grupo KWY, atraíram outros pintores, e os jovens poetas atraíram outros poetas já exilados em si próprios. O Mário Cesariny, mais velho do que nós e por todos nós admirado, foi um deles. O que todos nós, os jovens do Café Gelo, tínhamos em comum era uma atitude de recusa, uma partilhada vontade de quebrar amarras, um só sabermos o que não queríamos para podermos deixar um espaço livre para o que pudéssemos talvez querer. A recusa de normas estabelecidas era a nossa única norma. O questionamento de valores impostos o nosso único valor.


Uma última nota para as relações do KWY com o surrealismo. Já se sabe que a revista do grupo de Paris foi sobretudo animada pelo núcleo que iniciou as reuniões no café Gelo. Foi por certo alguém deste primeiro núcleo que chamou ao café Mário Cesariny. Este, numa época em que António Maria Lisboa já partira para a grande ausência e o seu grupo, “Os Surrealistas”, dispersara pelo mundo, adoptou o café como centro de ação, aí ativando os opúsculos de A Antologia em 1958, organizando para Pirâmide alguns dos seus materiais mais significativos e concebendo a coletânea do surreal-abjeccionismo que veria a luz em 1963. Faz pois sentido perceber as relações do KWY, sobretudo através da revista que com este nome publicou, com o surrealismo. Cesariny fecha o texto “Para uma cronologia do surrealismo em português” (1973), capital do ponto de vista da historiografia do movimento entre nós, integrando três membros do grupo KWY, Gonçalo Duarte, Lourdes Castro e René Bertholo, no surrealismo. Tanto basta para se perceber a importante ligação do grupo com o movimento.

Não me parece fácil olhar hoje, mais de 40 anos depois do texto de 1973, a obra de Lourdes Castro ou a de René Bertholo do ponto de vista do que mais caro é ao surrealismo, e que não é do domínio da estética ou da sociologia, onde estes artistas se parecem posicionar nas obras mais representativas que deixaram. Não creio que estes dois criadores se tomem hoje por surrealistas. O mesmo diria para Costa Pinheiro e, com mais dúvidas, para João Vieira. Já o caso de Gonçalo Duarte me parece outro. Tem ele uma dimensão maldita e simbólica, tão viva na sua “Batalha de Alcácer Quibir” (1973), e até no percurso da sua vida, que chegou ao termo em Paris no ano de 1986, que em algo, ou até em muito, me parece coincidente com aquilo que o surrealismo pediu da atividade pictórica. Está ele para o domínio das formas como Manuel de Castro está para o das ideias. São os dois gémeos da geração do café Gelo, um desaparecido aos 36 anos e outro aos 50, em idênticos naufrágios. A melhor e a mais sentida homenagem pictórica a Manuel de Castro é porém de João Vieira (“Manuel”, 1963), numa létrica escura, terrosa, labiríntica, onde o fio do oiro desponta num relâmpago. O caso de José Escada é também distinto, e porventura de forma ainda mais expressiva e radical, merecendo o melhor cuidado. José Escada foi o primeiro do grupo KWY a largar para a viagem sem retorno, aos quarenta e seis anos, em 1980. Escada, que muito frequentou nos últimos quatro anos de vida a oficina de Lagoa Henriques e de Carlos Amado, em Pedrouços, aí deixando algumas das derradeiras telas, legou uma obra que é uma pura alquimia da cor, desprovida de qualquer intenção exotérica, toda ela centrada nas metamorfoses do cadinho interior da alma. Nela se encontram, com uma pureza rara e uma fidelidade difícil de seguir, todos os grandes traços duma arte mágica primitiva ou primordial, que só os grandes criadores do surrealismo tocaram.


NOTA FINAL

Este texto foi dado a ler a Helder Macedo, um dos primeiros protagonistas do grupo do café Gelo e seu estudioso. No seguimento, recebemos dele uma carta, de que aqui deixamos alguns extratos, que nos parecem contribuir para um melhor entendimento do grupo. Meu caro António: (…). Uma pequena correção factual: o Gonçalo e eu, nos tempos do improvável Pedro Nunes, estaríamos por volta dos 16 anos (e não dos 15). O Manuel era um pouco mais velho. Quanto à sua perspectiva, é obviamente defensável considerar que o Gelo se tornou mais Gelo quando se identificou mais com o surrealismo. Mas a perspectiva oposta também seria legítima. Ou seja, que perdeu algo da sua originalidade quando, como bem diz, o núcleo fundador se dispersou pelas Europas. O período 1959-60 teria sido de facto o momento cimeiro? Nesse período, o Gelo nuclear continuou a exercer-se sobretudo em Paris (o café Old Navy era o local de encontro equivalente) mas também em Munique e em Londres. O José Manuel Simões (de quem o Cotrim vai publicar as Sobras Completas) é um nome que não deve ser esquecido. As associações de alguns ex-Gelo com o Ruedo Iberico (sobretudo por intermédio do Simões) manifesta uma politização digna de nota. Que aliás já tinha tido precedentes em Portugal durante e no seguimento da campanha eleitoral do General Delgado (o Herberto Helder, eu e, mais como acompanhante do que ativo, o João Rodrigues). O Manuel de Castro, tal como o João Rodrigues e o próprio Herberto, também esteve fora de Portugal e foi ativo no “Gelo-lá-fora”. Bem como os pintores associados ao Gelo (e não apenas ao KWY). De que Gelo se está a falar, portanto? Preferencialmente do surrealista ou daquele que integrou, com uma originalidade própria, o surrealismo que o precedeu? A Pirâmide foi, concordo, bem mais importante do que as Folhas de Poesia. E por isso também contribuiu para o (parcial) equívoco de se considerar como mais do Gelo os mais ortodoxamente surrealistas do que aqueles que não se encaixavam na escola. (…) Ah, o aparecimento do Mário Cesariny no Gelo. De fato, não me lembro exatamente das circunstâncias, mas talvez tenha sido por intermédio do Alfredo Margarido, que eu conhecera em São Tomé, e que também me aproximou do Mário Henrique Leiria.




ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO (Portugal, 1956). Ensaísta e historiador. É igualmente diretor da revista A Ideia. Fez um doutoramento em Literatura Portuguesa e uma agregação em Cultura Portuguesa. Os seus escritos sobre a História de Portugal tomam como ponto de partida os cruzamentos ou as parecenças entre a História e a Lenda. Reclama para a História, na linha de Fiama Hasse Pais Brandão, o direito à alucinação, pois uma História sem a teatralidade do imaginário não está viva nem é real. Estudioso da obra de Teixeira de Pascoaes. Poeta com uma vasta obra publicada, dedicou-se também ao romance histórico (9 títulos publicados), e é autor de duas biografias publicadas pela Quetzal – sobre Agostinho da Silva e Mário Cesariny.




FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

  



Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA  REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)

Artista convidado:  Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025




∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 




 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário