ACF | A revista foi fundada no início de 1974, em Paris, por um desertor da
Marinha portuguesa – João Freire, nascido em 1942 e ainda hoje felizmente vivo.
Chegou a Paris em Abril de 1968, envolvendo-se no início da década seguinte, no
rescaldo do Maio de 68, com as ideias libertárias. O primeiro número da revista
saiu, pois, em Paris, em Abril de 1974, mesmo em cima da Revolução dos Cravos –
o 25 de Abril. A primeira distribuição foi feita na grande manifestação do 1 de
Maio, em Lisboa. Trata-se de um simples desdobrável, que se destinava a ser
afixado na parede e distribuído mão a mão como panfleto. Começou a ser
preparado no final do ano anterior e foi impresso numa tipografia de um
companheiro espanhol no exílio. Tinha como diretor legal um amigo francês,
Germain Parès, mas quem a projectou, concebeu, realizou e assinou o editorial –
sem lá colocar porém o nome – e quem suportou os custos foi o seu fundador.
Mais novo 14 anos do que o João, só vim a conhecer a revista por volta de 1977,
aderindo pouco depois ao grupo que se formara em torno do seu fundador.
FM | Como vês a evolução da
revista ao longo deste meio século?
ACF | Distinguiria na revista três
grandes fases, embora a terceira se possa subdividir em duas distintas. A
primeira vai da fundação até 1980. É nesse período uma publicação artesanal,
dactilografada, em caderno agrafado e que corresponde a um momento de
militância activa. Uma segunda, com um salto gráfico qualitativo, que se inicia
em 1980 e que fecha em 1992 com a dissolução da cooperativa Sementeira. É com
certeza o período marcante da vida da revista, com inúmeros debates e colóquios
(um deles internacional, em 1987), a constituição duma cooperativa com cerca de
três dezenas de sócios, a edição duma revista trimestral ou quadrimestral com
muitas dezenas de páginas e muito voltada para a cultura mais dinâmica e para a
arte mais criativa, um variadíssimo número de colaboradores e um grafismo
apurado. Foi nessa época que o Mário Cesariny, trazido pelo Nicolau Saião,
colaborou connosco. É ainda um período marcado por um convívio quase permanente
entre os membros do grupo e a edição de vários livros. Depois dum interregno
entre 1992 e 2001, em que a publicação tirou apenas um número anual de
reduzidas dimensões – em geral um único texto – que se destinava a assegurar a
existência legal do título, a revista em papel reapareceu em 2001 (n.º 56) para
uma segunda série e um terceiro período da sua vida que dura até hoje. Esta
terceira fase pode dividir-se num primeiro subperíodo que vai de 2001 até 2012
(n.º 70), em que a direcção legal da publicação é assegurada pelo João Freire,
o seu fundador, e um segundo, que vai de 2013 até hoje, em que acabou de sair o
n.º triplo 104/106 e em que a direcção legal é assumida por mim. Em termos de ideário, a revista teve algumas
oscilações, naturais num movimento tão poliédrico como o libertário, mas pode
dizer-se que a clivagem mais acentuada se sente entre 1989 e 1992 no rescaldo
do fim do chamado “socialismo real”. O debate foi então sobretudo protagonizado
internamente pelo João Freire e pelo Miguel Serras Pereira (director legal da
revista nesse período final da primeira série), este mais interessado em
afirmar as potencialidades revolucionárias do pensamento libertário e aquele
mais descrente, mas ambos muito interessados na dimensão cultural criativa.
FM | Traçando paralelas,
linhas que contemplam a época de criação com este número mais recente, pensando
em reconhecimento, crítica, colaboradores, tudo o que integra a vida de uma
publicação periódica, como essas linhas (passado, presente) se tocam?
ACF | Embora muito pequeno, o
primeiro número da revista, logo em Abril de 1974, trazia em bom destaque um
texto de Murray Bookchin (traduzido do livro Post-Scarcity anarchism, livro marcante para o fundador da revista). Murray Bookchin, que se tornou um pensador
ecológico e municipalista mundialmente incontornável, isto no final do século
XX e no início do século XXI, é um nome que acompanha a revista até hoje.
Aberto à renovação do anarquismo por via da tradição municipalista que vem das
cidades gregas, e que acabou por instilar muitas das ideias que hoje o
Curdistão Democrático, no Norte da Síria, tenta pôr em prática (diga-se que num
contexto nada favorável), Bookchin é um bom exemplo daquilo que permanece na
revista desde a origem até aos dias de hoje.
ACF | Reunir à volta da revista um pequeno grupo de colaboradores e de ativistas
que sentem o beco sem saída do modo de vida atual. A mudança climática e os
cataclismos que lhe estão associados, dos grandes incêndios às secas e
inundações, são apenas a ponta de um iceberg. Somos no presente um pequeno
laboratório de ideias e de modos de vida que permitam, junto a muitas outras
gotas de água, fazer face às gigantescas convulsões que se perspectivam para os
próximos anos.
FM | Em tua “Breve nota
sobre o 25 de Abril – da revolução ao colapso”, observas que cinquenta anos depois, parece hoje claro que
a assembleia civil que resultou das eleições de 1975 não esteve à altura da
expectativa da grande maioria do país e não soube produzir uma lei fundamental
capaz de lhe dar expressão. Se considerarmos balanços dessa mesma proporção
em diversos países no Ocidente veremos que as circunstâncias se irmanam, com
pouquíssimas distinções. Em grande parte, a matriz é a mesma, o que nos vale a
crítica de Simone Weil, de que um partido político é uma pequena igreja profana armada com a ameaça de excomunhão. Claro
que a situação se agrava hoje com a entrada em campo, uma perversão tornada
possível graças à tecnologia, de um desdobramento do que no passado se chamada
de contraespionagem, a estratégia
criminal de deturpação dos fatos, que já quase chega ao limite da erradicação
dos mesmos. Poderias nos falar mais a respeito?
ACF | Vivemos uma situação trágica.
Aquilo que a princípio parecia uma libertação – a web – acabou por se tornar
num instrumento de dependência e de falsificação sem termo de comparação no
passado. Nem o carro nem a televisão tiveram consequências tão nefastas. A
tragédia do Ocidente, pelo menos desde a Revolução Americana, e logo depois da
Francesa, tem sido a incapacidade de aproveitar as ocasiões extraordinárias que
nos são dadas, e a Revolução dos Cravos foi apenas mais uma, para criar formas
conviviais e equilibradas de sociedade humana. Mas o mais trágico nem sequer é
essa incapacidade; a verdadeira tragédia é antes a facilidade como no Ocidente,
e depois no mundo, transformámos situações que são oportunidades excepcionais –
pense-se na Rússia no ano de 1917 – em perversões e pesadelos totalitários de
tipo político ou tecnológico.
FM | Entre outros temas de
nosso interesse que se espalham pelas páginas de A Ideia e que neste número de
aniversário se soma às comemorações de um centenário é o Surrealismo, e
percebo, folheando festejos distintos em diversos países que se repete uma
sensação de multiplicidade não compartilhada no que diz respeito às inúmeras
formas de manifestação do movimento, o que me leva a indagar: quantos
surrealismo existem no mundo?
ACF | Existem tantos surrealismos quantas as tonalidades que existem no
arco-íris. Ou existem tantos surrealismos quantos os homens e as mulheres que o
traduzem e quantos os mundos que existem no universo. O surrealismo é um só mas
as suas manifestações são infinitas e todas distintas.
ACF | Continua a parecer-me que a
prática surrealista, verbal ou plástica, não requer nenhum talento especial.
Quem quer que seja está apto para ela. A pedra de toque dessa prática não é
estética, não tem a ver com a beleza e a harmonia das formas, mas antes com a
revelação do inconsciente. A Arte Bruta, a arte infantil ou mesmo um simples
sonho ou devaneio são bons exemplos do que digo. É no entanto possível apreciar
e avaliar estas criações do ponto de vista do talento e hierarquizá-las segundo
uma escala estética. Se assim for, teremos dentro da literatura e da pintura
como arte, por um lado pintores e poetas esquecidos, e muitos são, e por outro
poetas e pintores que como aqueles que citas, Char e Césaire, sobrevivem na
memória das gerações e no mercado da edição de livros e da venda de quadros. Em
todo o caso, esta “sobrevivência” parece-me muito pouco, ou mesmo irrelevante,
quando comparada com a experiência pessoal de autoconhecimento que a prática
surrealista permite, ainda quando é menor do ponto de vista do talento
artístico. O nosso amigo Cruzeiro Seixas, ele que tinha um talento excepcional,
mas também como bem sabes nenhum gosto pelo comércio, fazia questão de repetir
que o surrealismo era sobretudo uma ética comportamental.
FM | Sempre houve centralismo
europeu em relação ao resto do mundo. Portugal jamais fugiu à regra. Indago
acerca de relações que acaso buscaram esses 50 anos de A Ideia com relação ao
continente americano, e de que forma pretendem dar início ou ampliar (qualquer
que seja o caso) tais cumplicidades?
ACF | O
pensamento ameríndio, ou nativamente africano, ou ainda aborígene,
interessa-nos muito. Mais que um pensamento, é um modo de vida, uma solução
prática, um exemplo de como resolver alguns dos impasses civilizacionais e pessoais
em que estamos. Há muito que se percebeu que as formações sociais e económicas
do passado mais recuado, anteriores à existência do Estado e do capitalismo,
têm um potencial transformador imenso e fazem muita falta ao nosso imaginário
social. Constituem um reservatório espantoso de ideias, de valores, de
comportamentos e de modelos para fazer diferente. Nesse sentido, acompanhamos
hoje com muito interesse e muita atenção o movimento de auto-organização e de
afirmação dos povos originários do continente americano, do Canadá à Patagônia.
Há imenso a aprender com os povos nativos do continente americano. Precisamos
de estar atentos aos seus modos de vida, às suas soluções, às suas formas de
resolver conflitos, aos seus mitos e às suas histórias, ao seu modo de se
relacionar entre si e com a terra. E há que estar solidário com as suas
reivindicações e com as suas lutas.
FM | Novas perspectivas para
2025?
FM | Que espírito anima A ideia nos seus 50 anos?
ACF | O mesmo que nos animou desde sempre – a de que não há verdades feitas nem super-homens e que as ideias libertárias num mundo cada vez menos transparente e cada vez mais autoritário precisam de continuar vivas. Haja gente que as anime e as desenvolva.
FM | Suas considerações finais.
ACF | Resta-me agradecer à
histórica revista Agulha e em especial ao seu fundador e principal
animador, o Floriano Martins, o convite para esta entrevista e o interesse que
manifestam pela revista A Ideia –
pelo seu itinerário, pela sua história, pelo seu projecto, pelas suas
realizações e pelas suas ideias.
FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023). Entrevista realizada entre dezembro de 2024 e fevereiro de 2025.
FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA – REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)
Artista convidado: Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com










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