O
mais notável na sua interacção com o mundo – a que nunca se escusava, mas que
nunca lhe era natural – é a sua capacidade para se lançar em múltiplas frentes,
sem nunca fazer o cálculo do esforço despendido ou das alianças necessárias. O
período que medeia entre o fim dos seus estudos e a experiência na Catalunha,
em 1936, é sumamente instrutivo: chegada ao Puy-en-Velay, em Setembro de 1931,
para a sua primeira colocação como professora de filosofia num liceu feminino;
reparte de imediato a sua acção extralectiva pela instrução benévola dos
operários da região, pelo engajamento nos movimentos sindicais locais,
organizados ou espontâneos, pela escrita em diversas publicações do mundo
sindical: Le Cri du Peuple, La Révolution Prolétarienne, L’Effort,
entre outras. Participa ainda nos congressos da CGT e toma parte activa nos
debates sobre a unidade sindical. Ao mesmo tempo, em artigos e nos seus textos
privados, lança-se em múltiplas reflexões sobre a liberdade, o marxismo, o
sistema industrial e a opressão. Embora este pareça o retrato duma esforçada
militante política e sindical, sabemos que esse seria sempre um retrato
enganador, ou pelo menos lacunar: o outro lado da sua actividade intelectual
reparte-se nestes anos por artigos sobre educação, estudos sobre a filosofia e
a Grécia clássica e, sobretudo, um longo texto de Reflexões sobre as Causas
da Liberdade e da Opressão Social, terminado em dezembro de 1934, que
permanecerá inédito até 1955.
São
as 150 páginas mais ricas do pensamento político em francês na primeira metade
do século, se entendermos por «pensamento» a própria expansão do âmbito do seu
objecto. A elas reunir-se-ão, nove anos mais tarde, as páginas do Enraizamento,
escritas em circunstâncias muito diferentes. Para compreendermos o escopo do
texto de 1934, devemos ter presente que o seu propósito é o de renovar «para
além do ídolo social, o pacto original do espírito com o universo». Há, pois,
que tomar fôlego! Diante dum tal texto, a primeira pergunta a pôr-se é a de
saber o que importa mais quando se luta pela liberdade e a justiça: interrogar
o mundo ou a alma? Ou talvez que a pergunta esteja mal formulada, uma vez que
alma e mundo se entrelaçam criativamente no fundo platónico do pensamento
weiliano. Na verdade, muitas das nossas interrogações sobre um percurso
político à primeira vista errático são respondidas por fragmentos dos seus Cadernos
muito posteriores. É o caso do que transcrevemos abaixo, se aí entendermos o bem
provindo da tradição grega como uma fonte dos conceitos políticos que Weil
perseguia no mundo aparente (La Connaissance Surnaturelle, 127): «Um bem
soberano, quer dizer, um bem que contém todos os bens possíveis. É a hipótese
do Filebo, querendo por isso dizer que não há incompatibilidade entre os
bens. Não se renuncia, portanto, a um bem parcial ou secundário em nome do bem
supremo. Mas deve-se renunciar à perseguição e ao desejo de todos os bens que
não são o bem supremo e, de seguida, de todos os bens representáveis, sem
excepção alguma: não apenas o bem supremo contém todos os bens, mas os bens só
são bons como sombras do bem supremo.»
Mais
do que em qualquer cálculo de ordem política ou organizacional, que aparecem
reduzidos à porção mínima nos seus textos, é em passagens como esta que podemos
encontrar uma eventual chave para o seu posicionamento como activista: nela
encontramos uma subtil e contudo inequívoca dupla representação (espelhamento
da episteme platónica) do móbil da acção humana e da sua fonte:
por um lado, ao encontro do móbil vêm todos os casos da injustiça dos homens, e
todos eles são dignos do clamor e de levantamento; por outro, a fonte da acção
política e social, permanecendo imutável, transmite à acção política o sentido
da sua prossecução, não permitindo que ela transborde e instale o reino das
finalidades, matriz das escatologias políticas que Weil abominava. Ora, textos
como aquele de 1934 já aparecem construídos a partir desta concepção dum móbil
que se desdobra e duma fonte que reinstaura as pregas duma coincidência
no coração de toda a acção justa.
O
texto das Reflexões divide-se em três partes: uma «crítica do marxismo»,
que é também uma crítica da ideia de progresso; uma «análise da opressão», que
é uma analítica dos regimes de produção, capitalistas ou socialistas; e «um
quadro teórico de uma sociedade livre». Esta parte final é como uma sinfonia de
tudo o que estava repartido em domínios ditos «sociais» ou «políticos» e que
aqui reencontra o grande espaço das ideias (Reflexões, p. 85): «E,
contudo, nada no mundo pode impedir o homem de se sentir nascido para a
liberdade. Jamais, aconteça o que acontecer, ele pode aceitar a servidão; pois
ele pensa. Nunca deixou de sonhar uma liberdade sem limites, quer ela lhe
apareça como uma felicidade passada de que algum castigo o tenha privado, quer
como uma felicidade futura que lhe fosse devida por uma espécie de pacto com
uma providência misteriosa. O comunismo imaginado por Marx é a forma mais
recente desse sonho. […] Chegou a altura de renunciar ao sonho da liberdade e
de se decidir a concebê-la.»
A
primeira parte do texto apresenta uma formulação particular da longa reflexão
de Weil sobre o século XIX enquanto «viveiro» das tendências que rasgam o
século XX. É neste quadro que podemos ler a sua crítica do marxismo, que não é
feita a partir dum ponto de vista distanciado, mas se elabora no convívio com
muitos marxistas, incluindo dissidentes do sovietismo de diversas tendências.
Ao ponto de Boris Souvarine, que a conhecera bem, poder declarar a Simone
Pétrement que «ela era comunista e marxista». Mas o primeiro desencadeador do
incómodo de alguns marxistas diante do pensamento de Weil vem dum texto, não
sobre a Internacional Comunista, mas sobre a Alemanha do nazismo emergente:
«Impressions d’Allemagne» (1932), publicado na Révolution Prolétarienne.
A ascensão do nazismo é aí analisada no contexto dos proletários alemães que a
ele aderem em massa, o que desencadeia reacções hostis nos meios militantes a
que Weil se dirige. Como pode um proletariado tão organizado como o alemão
render-se assim ao nacional-socialismo? Verificando que há no movimento
hitleriano (sic) operários que trazem consigo concepções e, sobretudo,
sentimentos revolucionários, Weil dá-nos o retrato geral da situação da classe
operária alemã, onde os comunistas, em acordo tácito com os nazis, escolhem
como inimigo principal o operário social-democrata (Œuvres, 231): «Com os hitlerianos, o
partido [comunista] praticou longamente uma espécie de frente única dirigida
contra a social-democracia. […] Ao dar-se a aparência de levar a sério as
frases revolucionárias do partido hitleriano, ele encorajou consideravelmente
os operários hitlerianos no seu erro. Mas fez ainda pior: seguiu o movimento
hitleriano até ao terreno nacional.»
Num
artigo de 1933, Dirigimo-nos para a Revolução Proletária?, Weil
desencadeará uma analítica mais profunda das insuficiências do marxismo diante
das dinâmicas do capitalismo, entre as quais se conta aquilo que ela designa
como a «burocracia». Aí, torna-se claro que Weil já pensa em termos que vão
para além da produção material e da transformação mecânica do real. «Marx não
se perguntou se não se trata aí de problemáticas independentes dos problemas
que põe o jogo da economia capitalista propriamente dita.» (Œuvres, 263)
Mas
regressemos às Reflexões. Na terceira parte do texto já não opera o
discurso linear da razão histórica, nem sequer a dialéctica do mestre e do
escravo; aqui, o texto vai ao encontro dum ponto que nunca é precisamente
localizável, mas que sustenta a música particular do texto, transformada, por
vezes, numa evocação do seu irmão André Weil, tão próximo do génio matemático
dum Pascal. Será a entrada da sindicalista revolucionária no espírito de
Port-Royal? Em todo o caso, jansenismo parece haver neste sopesar do trabalho
(vem aí a consciência da pesanteur) à luz do gesto e da sua graça. «O
único modo de produção plenamente livre seria aquele onde o pensamento metódico
operasse ao longo de todo o trabalho» (Réflexions, 103). Entenda-se,
como é óbvio, que este «pensamento metódico» não é aquele do trabalho
mecanizado da fábrica, mas o do trabalho espiritual que penetra o ritmo do
corpo e a matéria do mundo. É esse, a nosso ver, o sentido da injunção (acima
transcrita) para que nos decidamos, finalmente, a conceber a liberdade: será na
sua relação com a necessidade que a liberdade pode ser concebida. Dito de outra
forma, não é «a relação entre o desejo e a satisfação» que define a liberdade,
mas «a relação entre o pensamento e a acção» (Réflexions, 88).
A
partir deste ponto, deixa de haver revolução das forças exteriores ao humano,
para só haver essa revolução outra que só alcança a perfeita integração
do sujeito livre na matéria do seu trabalho. Uma abandona o espírito na
devastação do mundo, a outra procura a presença no mais banal dos gestos,
verdadeiro aleluia do trabalho (Réflexions,
104): «Uma tal presença de espírito tem naturalmente por condição que esta
fluidez do corpo que produzida pelo hábito e a habilidade atinja um grau
elevado. […] Pode-se alargar, a pouco e pouco, o domínio do trabalho lúcido, e
isso talvez que indefinidamente. Para tanto bastaria que o homem visasse, não
já estender indefinidamente os seus conhecimentos e o seu poder, mas antes
estabelecer, tanto no trabalho quanto no estudo, um certo equilíbrio entre o
espírito e o objecto a que o espírito se aplica.»
Restabelecer
um «equilíbrio entre o espírito e o objecto a que o espírito se aplica» é o
ponto de partida do que chamaremos uma eco-teologia do trabalho humano
em Weil. Aqui, já estamos para além do circunstancialismo sociológico do
trabalho industrial, uma vez que, ao contrário de Marx, não é a hipertrofia da
potência industrial que conduzirá à libertação, mas o restabelecimento desses
equilíbrios sob a figura do que ela chama o «trabalho lúcido», que não é mais
do que uma recusa da expansão indefinida do poder de transformação da natureza
e do homem.
2.
Entre 1937, terminada a experiência da Guerra Civil, e o período vivido em
Londres, nos últimos meses de vida, já em pleno desespero do activismo,
se assim o podemos dizer, no duplo sentido da espera desesperada por uma acção
que nunca virá e do desespero diante do aspecto quimérico que o activismo
reveste, Weil passará a escrever no espaço que diversas publicações de
inspiração católica e próximas de Maritain lhe oferecem. Reconhecemos nessas
colaborações a mesma perspectiva de urgência e de exigência para os seus
leitores, uma idêntica busca da relação fraterna com os meios onde circula, mas
também reencontramos as incompreensões e desaprovações que os seus escritos
suscitaram desde sempre. Publica em revistas como Économie et humanisme,
dirigida pelos dominicanos, ou nas publicações saídas do personalismo e que se
haviam juntado à Resistência no exílio.
A
«ausência do bem» abre o ponto apofático da mística weiliana mas é também o
lugar de convergência dos que lutam pela verdade. É, decerto, o período da sua
existência em que ela vem a exprimir a necessidade duma vida religiosa, senão
mística, como sabemos pela sua correspondência privada e, desde logo, pela
célebre carta ao padre Couturier, de outubro de 1942. Mas os artigos que dá a
publicar neste período, centrados como estão no problema da vida do espírito,
são ainda um aprofundamento da sua preocupação com a vida dos proletários, com
a exploração e com as formas modernas de mobilização e alienação da vida
humana, a que se vêm acrescentar agora as necessidades dos resistentes a que
ela queria reunir-se na França ocupada. As «aspirações cristãs» são aqui o
contraponto mais eficaz à França que depõe o cristianismo aos pés do Reich: o
crime supremo de Vichy não é apenas o de ter erigido, pela sua política
realista, o facto em direito, a realidade em valor; é também o de ter construído
todo um véu ideológico sob o qual se prostituíam todas as realidade morais.
A
Simone Weil não se aplicam as categorias que nos facilitam a arrumação dum ser
humano em activista e pensador, utopista e realista, materialista e
espiritualista, pacifista e combatente. Weil era libertária porque em tudo via
os sinais, não apenas da promessa da liberdade, mas também das ilusões erguidas
em seu nome, da sua degradação e aviltamento pela mão quer dos seus inimigos
quer dos amigos. Esta radicalidade libertária não tem paralelo na história do
anarquismo, na qual é raramente evocada, talvez porque não lhe convém a persona
do activista, que veio a dominar a caracterização do anarquista moderno. E,
diante duma tal activista social, política e sindical, dizê-lo é entrar num
plano da espiritualidade política que necessita quer do desespero mais
profundo, quer da epifania mais luminosa! É numa espécie de heterocronia,
sempre segundo paralelos improváveis, que convém procurá-la: é o tempo homérico
e o tempo da Guerra de Espanha; é o tempo do ho nun kairos paulino e o
tempo da releitura do marxismo; é o tempo do levantamento e o tempo dos ofícios
da comunidade enraizada.
3.
O conjunto dos escritos de Simone Weil, não formando embora a obra filosófica
ou política mais influente do século XX, é aquele que se mostra mais capaz de reemergir
– em sentido temporal e vital – como novíssimo pensamento. Pensar não é,
para Weil, uma arte da formulação, mas o levantamento da impossibilidade
formulaica nas situações. É então pela situação que o pensamento encontra o seu
désœuvrement, a sua possibilidade sem obra, a sua necessidade mística.
Essa é, aliás, a vocação do pensamento filosófico, tal como Weil o entendia: a
dinâmica do seu texto não se opera na fixação deste diante do mundo, mas na
inscrição do mundo na tensão do pensamento, retesamento ético e espiritual que
passa à frente de todo o confinamento autoral. Assim, a escrita é um produto
necessário da sua actividade, mas nunca o objecto desta. Simone Weil, que nunca
escreveu nenhum texto destinado a ser livro (emboras a edição em curso
das suas obras completas na Gallimard atinja a quinzena de volumes), já não
assistiu ao devir metamórfico dos seus textos: não viu a sua precariedade ser
exposta ao risco da fixação monumental, mas também não os viu serem relançados
por esse índice de despojamento essencial que irriga estas páginas,
aparentemente dissociado dos anos que por elas passam. Foram Camus e a família
Weil que quiseram assim preservar esse espólio, esquecendo eventualmente que
ele fora sempre animado, não por alguma pulsão fundacional, como no marxismo,
assim ela o compreendera, mas pela entrada de corpo e alma no coração do
combate, vórtice mas não caos, como propõe aliás algum do pensamento anarquista
que ela contactou.
A
relação entre anarquia e espiritualidade –
essencial para se começar a ler Simone Weil – raramente assumiu um papel – não
tanto metodológico, mas heurístico – na história do anarquismo. Há,
evidentemente, para além do seu domínio das fontes filosóficas, uma heurística
espiritual em Weil que faz dela essa figura capaz dum activismo radicalmente
aberto à circunstância de si e dos outros. É hoje difícil descortinar herdeiros
desse singular posicionamento. Há, certamente, Lanza del Vasto, do lado dos
pensadores cristãos, com quem Weil conviveu nos dias de Marselha, mas cujo
caminho adquiriu uma feição diferente. A partir do movimento libertário, têm
surgido propostas dum «anarquismo espiritualista», impossível de confundir com
a postura de Weil, que sempre rejeitou toda a exibição dos sinais duma eleição
mística. A mística weiliana é a recusa de toda a eleição, o que se torna
bem manifesto na sua relação com a herança judaica. Alguns investigadores como
David Bisson (Philosophie de l’anarchie, 79-100) apontam o exemplo de
figuras como Hakim Bey (Peter Lamborn Wilson) para defenderem a permanência
duma tradição espiritual no anarquismo ou, pelo menos, dum «anarquismo
ontológico». Mas Bey é um homem que passou pela influência de Henry Corbin e
que tenta adaptar o pensamento das correntes tradicionalistas a uma anarquia
contemporânea capaz de abraçar o turbilhão duma sociedade em devir
imprevisível. É muito discutível que Weil pudesse confundir alguma vez o
vórtice do real com estes turbilhões pós-modernos, discussão que não cabe
nestas páginas. Mais interessantes serão, provavelmente, certos paralelismos
que se podem estabelecer com o pensamento dum Tomás Ibáñez que é hoje, depois
duma longa militância nos meios do anarco-sindicalismo, um dos raros pensadores
em condições de renovar uma ontologia do anarquismo. É certo que a sua
ontologia se reivindica «de ordem anti-essencialista, contextualista e
relacional», mas o essencial está na sua ideia de que «os seres não têm
propriedades intrínsecas», mais não sendo do que «o conjunto das relações que
os constituem» (Philosophie, 359). Há no anarquismo uma singularidade no
laço entre a ideia e a acção, ideia que também podemos ler em Weil, muito
embora as relações que ela considera se estendam mais além: da mesma forma que
o anarquismo não preexiste às formas de dominação que o suscitam, também não
sobrevive às formas de luta com que lhes responde; o anarquismo nunca se
instala no lugar do ser enquanto auto-legitimação historizada. O anarquismo não
é mais do que a reemergência, uma e outra vez, da abertura a algo que, embora
real, vem ao nosso encontro despido de qualquer prefiguração dum tal encontro.
Weil
é tanto mais uma pensadora livre quanto não lhe passa pela cabeça comportar-se
como uma autora capaz de dispor os seres e as coisas em função desse ensejo:
desde o momento em que terminara os seus estudos, a sua vida lança-se,
impreparada, no caldeirão do mundo. Onde frutificaria este pensamento tão
abundante e fulgurante se nada havia sido previsto para ele? Lança-o aos quatro
ventos, em cadernos e cartas, na sua grande maioria, e ainda em inúmeros
artigos em pequenas publicações militantes de diversos quadrantes. Uma vez
falecida no sanatório inglês, em 24 de Agosto de 1943, os seus escritos
encontram-se num estado de extraordinária dispersão: há-os em Londres, salvos in
extremis, há-os dispersos em diversos apartamentos da Paris ainda sob a
Ocupação – e é um perigo mortal pretender salvar documentos duma judia,
qualquer documento, independentemente do seu teor –, outros andam por Marselha,
em diversas mãos, outros ainda haviam seguido para Nova Iorque, onde os Weil
haviam encontrado o abrigo que Simone recusara.
Simone
Weil recusou sempre abrigar-se. Mas esse posicionamento não poderia ser senão
dramático e verdadeiro. E que tensão é assim gerada, a potência do desabrigo!
Em 1935, tem Weil apenas 26 anos, vemo-la já exausta no retrato que dela traça
Georges Bataille em O Azul do Céu: «Só a provação sufocante, impossível,
dá ao autor o meio de atingir a longínqua visão esperada por um leitor cansado
dos limites aproximados que são impostos pelas convenções». Fuga da vigilância
exercida pela autoridade do texto, mas redescoberta dessa falha da acção onde a
escrita vem a renovar-se com um ímpeto maior. Lembremo-nos de que tanto Weil
como Bataille se encontram diante da emergência do fascismo, impossibilitados
de reintegrarem os herdeiros de Lenine. Há, ainda assim, alguns lugares onde
aportar: em Setembro de 1933, Weil, depois duma já longa actividade com
sindicados, e Bataille integram o Cercle Communiste Démocratique, orientado por
Souvarine, que fora fundador do PCF e logo fora expulso em 1924 («há algo de
podre no Partido e na Internacional»). Nada nestes círculos «protestantes»
poderia aquietar a «a-teologia» em que, em matéria de partido, uma e outro
haviam mergulhado.
Simone
Weil pode, em muitas das suas etapas, ser confundida com uma «autora
militante», essa espécie de credor da justeza universal em que tantos autores e
artistas se tornaram no século XX. Contudo, Weil rompera muito cedo – primeiro
secretamente, depois publicamente – com o progresso. Entra, assim, logo muito
cedo no ateísmo perante a fé política. Em grande medida, a sua busca da fé
acompanha a busca da justiça, mas é a primeira a que mais interessa por causa
da sua constante inconveniência para todos aqueles que nela procurem uma
coerência ou uma linha de orientação para as suas convicções. Em Weil, não há
convicção sem conversão. Para entrar num percurso de convicção há que
converter-se a algo que não é uma crença mas todo o seu oposto: uma forma de
convivência com a própria fragilidade diante do mundo.
Em
Weil, o activismo parece inevitável, tragicamente inevitável porque nunca
suficiente. É um modo pobre de resistência à maquinação da modernidade técnica.
E marcado por uma insuficiência permanente e irresolúvel, atribuível à
incompreensão das estruturas que se instalam, se adaptam e se aperfeiçoam. Há
três máquinas de movimento perpétuo que Weil critica sem que nisso haja
oscilação, nos seus textos: a da técnica automática, que ela experimentou carnal
e psiquicamente nas fábricas Renault, a máquina da história, que ela viu
expandir-se à esquerda e à direita, a máquina de guerra, quer sob a sua forma
bélica quer sob forma económica, tudo modos diversos de estreitamento do espaço
da liberdade. Em paralelo, Weil vê o seu tempo erigir três maquinações da
mentira: a mentira social, visível na funcionalização das relações sociais e
económicas, a mentira escatológica, que é o sacrifício dos seres na idolatria
política, por fim a mentira metafísica, que é a desistência da verdade, modos
diversos de reificar a verdade, de a dissociar da consciência e de lhe recusar
o espaço onde ela possa fazer-se presença.
TODO O COMBATE
LEVA A UMA NOVA POSIÇÃO ESPIRITUAL
NOTA
Para além da selecta organizada por Florence de
Lussy – Simone Weil, Œuvres, Gallimard, 1999 –, consultaram-se também as
seguintes edições dos textos de Weil: La connaissance surnaturelle,
Gallimard, 1964; Réflexions sur les causes de la liberte et de l’oppression
sociale, Gallimard, 1980 [ed. portuguesa: Antígona, 2017]; L’Enracinement,
Flammarion, 2014 [ed. portuguesa: Relógio d’Água, 2014]. Foram ainda
consultadas as actas do Colóquio de Lyon (2011) sobre Philosophie de
l’anarchie, Atelier de Création Libertaire, 2012.
JORGE LEANDRO ROSA é ensaísta: escreve sobre estética, artes e literatura, filosofia contemporânea e metamorfoses da representação, tendo publicado livros e dezenas de ensaios em publicações nacionais e estrangeiras. Doutorado pela Universidade Nova de Lisboa, foi professor universitário durante vinte anos, no domínio do pensamento contemporâneo e das ciências da comunicação. Organizou colóquios internacionais dedicados à teoria das catástrofes e à Geopoética. Trabalha como tradutor e editor, dedicando particular atenção a autores como Jean-Luc Nancy, Georges Didi-Huberman, Emanuele Coccia, Jacques Rancière, René Daumal, etc. Publica regularmente recensões literárias e outros textos em: Público, O Independente, Nada, Flauta de Luz, Colibri Noir etc.
FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA – REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)
Artista convidado: Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)
Editores:
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