segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

JORGE LEANDRO ROSA | Novíssima Simone Weil – o ativismo e os trabalhos da alma

 


Simone Weil (1909-1943) atravessou com urgência estonteante – mas levando consigo o fundo onde uma forma de intemporalidade vinha abismar-se a cada etapa – os anos mais perigosos do século XX, impressão que não provém apenas da sua indómita vontade de acção social e política, mas emerge também da devoradora exigência do seu pensamento, presente em todas as situações duma brevíssima vida: uma tripla vigília do seu ser físico, intelectual e espiritual a que só a morte por esgotamento – ou por endura cátara – veio pôr um termo.

O mais notável na sua interacção com o mundo – a que nunca se escusava, mas que nunca lhe era natural – é a sua capacidade para se lançar em múltiplas frentes, sem nunca fazer o cálculo do esforço despendido ou das alianças necessárias. O período que medeia entre o fim dos seus estudos e a experiência na Catalunha, em 1936, é sumamente instrutivo: chegada ao Puy-en-Velay, em Setembro de 1931, para a sua primeira colocação como professora de filosofia num liceu feminino; reparte de imediato a sua acção extralectiva pela instrução benévola dos operários da região, pelo engajamento nos movimentos sindicais locais, organizados ou espontâneos, pela escrita em diversas publicações do mundo sindical: Le Cri du Peuple, La Révolution Prolétarienne, L’Effort, entre outras. Participa ainda nos congressos da CGT e toma parte activa nos debates sobre a unidade sindical. Ao mesmo tempo, em artigos e nos seus textos privados, lança-se em múltiplas reflexões sobre a liberdade, o marxismo, o sistema industrial e a opressão. Embora este pareça o retrato duma esforçada militante política e sindical, sabemos que esse seria sempre um retrato enganador, ou pelo menos lacunar: o outro lado da sua actividade intelectual reparte-se nestes anos por artigos sobre educação, estudos sobre a filosofia e a Grécia clássica e, sobretudo, um longo texto de Reflexões sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social, terminado em dezembro de 1934, que permanecerá inédito até 1955.

São as 150 páginas mais ricas do pensamento político em francês na primeira metade do século, se entendermos por «pensamento» a própria expansão do âmbito do seu objecto. A elas reunir-se-ão, nove anos mais tarde, as páginas do Enraizamento, escritas em circunstâncias muito diferentes. Para compreendermos o escopo do texto de 1934, devemos ter presente que o seu propósito é o de renovar «para além do ídolo social, o pacto original do espírito com o universo». Há, pois, que tomar fôlego! Diante dum tal texto, a primeira pergunta a pôr-se é a de saber o que importa mais quando se luta pela liberdade e a justiça: interrogar o mundo ou a alma? Ou talvez que a pergunta esteja mal formulada, uma vez que alma e mundo se entrelaçam criativamente no fundo platónico do pensamento weiliano. Na verdade, muitas das nossas interrogações sobre um percurso político à primeira vista errático são respondidas por fragmentos dos seus Cadernos muito posteriores. É o caso do que transcrevemos abaixo, se aí entendermos o bem provindo da tradição grega como uma fonte dos conceitos políticos que Weil perseguia no mundo aparente (La Connaissance Surnaturelle, 127): «Um bem soberano, quer dizer, um bem que contém todos os bens possíveis. É a hipótese do Filebo, querendo por isso dizer que não há incompatibilidade entre os bens. Não se renuncia, portanto, a um bem parcial ou secundário em nome do bem supremo. Mas deve-se renunciar à perseguição e ao desejo de todos os bens que não são o bem supremo e, de seguida, de todos os bens representáveis, sem excepção alguma: não apenas o bem supremo contém todos os bens, mas os bens só são bons como sombras do bem supremo.»

Mais do que em qualquer cálculo de ordem política ou organizacional, que aparecem reduzidos à porção mínima nos seus textos, é em passagens como esta que podemos encontrar uma eventual chave para o seu posicionamento como activista: nela encontramos uma subtil e contudo inequívoca dupla representação (espelhamento da episteme platónica) do móbil da acção humana e da sua fonte: por um lado, ao encontro do móbil vêm todos os casos da injustiça dos homens, e todos eles são dignos do clamor e de levantamento; por outro, a fonte da acção política e social, permanecendo imutável, transmite à acção política o sentido da sua prossecução, não permitindo que ela transborde e instale o reino das finalidades, matriz das escatologias políticas que Weil abominava. Ora, textos como aquele de 1934 já aparecem construídos a partir desta concepção dum móbil que se desdobra e duma fonte que reinstaura as pregas duma coincidência no coração de toda a acção justa.

O texto das Reflexões divide-se em três partes: uma «crítica do marxismo», que é também uma crítica da ideia de progresso; uma «análise da opressão», que é uma analítica dos regimes de produção, capitalistas ou socialistas; e «um quadro teórico de uma sociedade livre». Esta parte final é como uma sinfonia de tudo o que estava repartido em domínios ditos «sociais» ou «políticos» e que aqui reencontra o grande espaço das ideias (Reflexões, p. 85): «E, contudo, nada no mundo pode impedir o homem de se sentir nascido para a liberdade. Jamais, aconteça o que acontecer, ele pode aceitar a servidão; pois ele pensa. Nunca deixou de sonhar uma liberdade sem limites, quer ela lhe apareça como uma felicidade passada de que algum castigo o tenha privado, quer como uma felicidade futura que lhe fosse devida por uma espécie de pacto com uma providência misteriosa. O comunismo imaginado por Marx é a forma mais recente desse sonho. […] Chegou a altura de renunciar ao sonho da liberdade e de se decidir a concebê-la.»

A primeira parte do texto apresenta uma formulação particular da longa reflexão de Weil sobre o século XIX enquanto «viveiro» das tendências que rasgam o século XX. É neste quadro que podemos ler a sua crítica do marxismo, que não é feita a partir dum ponto de vista distanciado, mas se elabora no convívio com muitos marxistas, incluindo dissidentes do sovietismo de diversas tendências. Ao ponto de Boris Souvarine, que a conhecera bem, poder declarar a Simone Pétrement que «ela era comunista e marxista». Mas o primeiro desencadeador do incómodo de alguns marxistas diante do pensamento de Weil vem dum texto, não sobre a Internacional Comunista, mas sobre a Alemanha do nazismo emergente: «Impressions d’Allemagne» (1932), publicado na Révolution Prolétarienne. A ascensão do nazismo é aí analisada no contexto dos proletários alemães que a ele aderem em massa, o que desencadeia reacções hostis nos meios militantes a que Weil se dirige. Como pode um proletariado tão organizado como o alemão render-se assim ao nacional-socialismo? Verificando que há no movimento hitleriano (sic) operários que trazem consigo concepções e, sobretudo, sentimentos revolucionários, Weil dá-nos o retrato geral da situação da classe operária alemã, onde os comunistas, em acordo tácito com os nazis, escolhem como inimigo principal o operário social-democrata  uvres, 231): «Com os hitlerianos, o partido [comunista] praticou longamente uma espécie de frente única dirigida contra a social-democracia. […] Ao dar-se a aparência de levar a sério as frases revolucionárias do partido hitleriano, ele encorajou consideravelmente os operários hitlerianos no seu erro. Mas fez ainda pior: seguiu o movimento hitleriano até ao terreno nacional.»


Simone Weil conhece as promessas da revolução, a economia do tempo que esta põe em movimento, a sua forma teologicamente abrupta. A violência do sagrado que toma os homens e os impulsiona, mas também os esmaga, são temas nela recorrentes. Tudo isso, ela conhece-o, assim como conhece supremamente as teorias da sua inevitabilidade histórica. A nada disso se vergará em nenhum momento. Vive constantemente no espírito de insubmissão sem querer fazer dos outros seres submetidos à inevitabilidade revolucionária dos insubmissos. Weil rompe, afinal, com a escatologia revolucionária, que despreza sempre a aspiração democrática (ibidem): «Percebe-se muito bem a posição dos bolcheviques e porquê todos, incluindo Trotsky, tratam as ideias democráticas com desprezo soberano. Viram-se incapazes de realizar a democracia operária prevista por Marx, mas não se deixam perturbar por tão pouca coisa, convencidos como estão de que toda a tentativa de acção social que não consista em desenvolver as forças produtivas está à partida votada ao falhanço.» 

Num artigo de 1933, Dirigimo-nos para a Revolução Proletária?, Weil desencadeará uma analítica mais profunda das insuficiências do marxismo diante das dinâmicas do capitalismo, entre as quais se conta aquilo que ela designa como a «burocracia». Aí, torna-se claro que Weil já pensa em termos que vão para além da produção material e da transformação mecânica do real. «Marx não se perguntou se não se trata aí de problemáticas independentes dos problemas que põe o jogo da economia capitalista propriamente dita.» (Œuvres, 263)

Mas regressemos às Reflexões. Na terceira parte do texto já não opera o discurso linear da razão histórica, nem sequer a dialéctica do mestre e do escravo; aqui, o texto vai ao encontro dum ponto que nunca é precisamente localizável, mas que sustenta a música particular do texto, transformada, por vezes, numa evocação do seu irmão André Weil, tão próximo do génio matemático dum Pascal. Será a entrada da sindicalista revolucionária no espírito de Port-Royal? Em todo o caso, jansenismo parece haver neste sopesar do trabalho (vem aí a consciência da pesanteur) à luz do gesto e da sua graça. «O único modo de produção plenamente livre seria aquele onde o pensamento metódico operasse ao longo de todo o trabalho» (Réflexions, 103). Entenda-se, como é óbvio, que este «pensamento metódico» não é aquele do trabalho mecanizado da fábrica, mas o do trabalho espiritual que penetra o ritmo do corpo e a matéria do mundo. É esse, a nosso ver, o sentido da injunção (acima transcrita) para que nos decidamos, finalmente, a conceber a liberdade: será na sua relação com a necessidade que a liberdade pode ser concebida. Dito de outra forma, não é «a relação entre o desejo e a satisfação» que define a liberdade, mas «a relação entre o pensamento e a acção» (Réflexions, 88).

A partir deste ponto, deixa de haver revolução das forças exteriores ao humano, para só haver essa revolução outra que só alcança a perfeita integração do sujeito livre na matéria do seu trabalho. Uma abandona o espírito na devastação do mundo, a outra procura a presença no mais banal dos gestos, verdadeiro aleluia do trabalho (Réflexions, 104): «Uma tal presença de espírito tem naturalmente por condição que esta fluidez do corpo que produzida pelo hábito e a habilidade atinja um grau elevado. […] Pode-se alargar, a pouco e pouco, o domínio do trabalho lúcido, e isso talvez que indefinidamente. Para tanto bastaria que o homem visasse, não já estender indefinidamente os seus conhecimentos e o seu poder, mas antes estabelecer, tanto no trabalho quanto no estudo, um certo equilíbrio entre o espírito e o objecto a que o espírito se aplica.»

Restabelecer um «equilíbrio entre o espírito e o objecto a que o espírito se aplica» é o ponto de partida do que chamaremos uma eco-teologia do trabalho humano em Weil. Aqui, já estamos para além do circunstancialismo sociológico do trabalho industrial, uma vez que, ao contrário de Marx, não é a hipertrofia da potência industrial que conduzirá à libertação, mas o restabelecimento desses equilíbrios sob a figura do que ela chama o «trabalho lúcido», que não é mais do que uma recusa da expansão indefinida do poder de transformação da natureza e do homem.

 

2. Entre 1937, terminada a experiência da Guerra Civil, e o período vivido em Londres, nos últimos meses de vida, já em pleno desespero do activismo, se assim o podemos dizer, no duplo sentido da espera desesperada por uma acção que nunca virá e do desespero diante do aspecto quimérico que o activismo reveste, Weil passará a escrever no espaço que diversas publicações de inspiração católica e próximas de Maritain lhe oferecem. Reconhecemos nessas colaborações a mesma perspectiva de urgência e de exigência para os seus leitores, uma idêntica busca da relação fraterna com os meios onde circula, mas também reencontramos as incompreensões e desaprovações que os seus escritos suscitaram desde sempre. Publica em revistas como Économie et humanisme, dirigida pelos dominicanos, ou nas publicações saídas do personalismo e que se haviam juntado à Resistência no exílio.


Mas Weil resiste à influência de Maritain, uma vez que lê o seu pensamento como um mero aggiornamento do tomismo. Em contrapartida, descobre uma profunda afinidade com Jean Lacroix, o cofundador, juntamente com Mounier, da revista Esprit. Lacroix era um cristão fascinado pela potência espiritual e política do acto, o que não poderia deixar de ter ressonância no pensamento de Simone Weil. O acto só existe quando encarnado e quando ganha raiz no mundo vivo. Ora, haverá acto mais vivo do que a resistência? O caldeamento entre um humanismo aberto e um cristianismo universal mas comunitário são o ponto de partida para uma revisitação da noção de «pessoa» que Weil saúda aquando da sua leitura das conferências de Lacroix em Londres (Écrits de Londres, 169-170): «Reunir as pessoas em torno das aspirações cristãs. Esta palavra [convém] muito mais do que aquela de “valores”. Pois valores invoca uma presença, e aspiração uma ausência, e o nosso bem está ausente. É necessário tentar defini-las em termos tais que um ateu possa a elas aderir integralmente […] Tal é possível. E no termo desse esforço de transposição, obtém-se, não a “moral laica”, mas alguma coisa de diferente. […] Seria necessário propor alguma coisa precisa, específica e aceitável para católicos, protestantes e ateus…»

A «ausência do bem» abre o ponto apofático da mística weiliana mas é também o lugar de convergência dos que lutam pela verdade. É, decerto, o período da sua existência em que ela vem a exprimir a necessidade duma vida religiosa, senão mística, como sabemos pela sua correspondência privada e, desde logo, pela célebre carta ao padre Couturier, de outubro de 1942. Mas os artigos que dá a publicar neste período, centrados como estão no problema da vida do espírito, são ainda um aprofundamento da sua preocupação com a vida dos proletários, com a exploração e com as formas modernas de mobilização e alienação da vida humana, a que se vêm acrescentar agora as necessidades dos resistentes a que ela queria reunir-se na França ocupada. As «aspirações cristãs» são aqui o contraponto mais eficaz à França que depõe o cristianismo aos pés do Reich: o crime supremo de Vichy não é apenas o de ter erigido, pela sua política realista, o facto em direito, a realidade em valor; é também o de ter construído todo um véu ideológico sob o qual se prostituíam todas as realidade morais.

A Simone Weil não se aplicam as categorias que nos facilitam a arrumação dum ser humano em activista e pensador, utopista e realista, materialista e espiritualista, pacifista e combatente. Weil era libertária porque em tudo via os sinais, não apenas da promessa da liberdade, mas também das ilusões erguidas em seu nome, da sua degradação e aviltamento pela mão quer dos seus inimigos quer dos amigos. Esta radicalidade libertária não tem paralelo na história do anarquismo, na qual é raramente evocada, talvez porque não lhe convém a persona do activista, que veio a dominar a caracterização do anarquista moderno. E, diante duma tal activista social, política e sindical, dizê-lo é entrar num plano da espiritualidade política que necessita quer do desespero mais profundo, quer da epifania mais luminosa! É numa espécie de heterocronia, sempre segundo paralelos improváveis, que convém procurá-la: é o tempo homérico e o tempo da Guerra de Espanha; é o tempo do ho nun kairos paulino e o tempo da releitura do marxismo; é o tempo do levantamento e o tempo dos ofícios da comunidade enraizada.

 

3. O conjunto dos escritos de Simone Weil, não formando embora a obra filosófica ou política mais influente do século XX, é aquele que se mostra mais capaz de reemergir – em sentido temporal e vital – como novíssimo pensamento. Pensar não é, para Weil, uma arte da formulação, mas o levantamento da impossibilidade formulaica nas situações. É então pela situação que o pensamento encontra o seu désœuvrement, a sua possibilidade sem obra, a sua necessidade mística. Essa é, aliás, a vocação do pensamento filosófico, tal como Weil o entendia: a dinâmica do seu texto não se opera na fixação deste diante do mundo, mas na inscrição do mundo na tensão do pensamento, retesamento ético e espiritual que passa à frente de todo o confinamento autoral. Assim, a escrita é um produto necessário da sua actividade, mas nunca o objecto desta. Simone Weil, que nunca escreveu nenhum texto destinado a ser livro (emboras a edição em curso das suas obras completas na Gallimard atinja a quinzena de volumes), já não assistiu ao devir metamórfico dos seus textos: não viu a sua precariedade ser exposta ao risco da fixação monumental, mas também não os viu serem relançados por esse índice de despojamento essencial que irriga estas páginas, aparentemente dissociado dos anos que por elas passam. Foram Camus e a família Weil que quiseram assim preservar esse espólio, esquecendo eventualmente que ele fora sempre animado, não por alguma pulsão fundacional, como no marxismo, assim ela o compreendera, mas pela entrada de corpo e alma no coração do combate, vórtice mas não caos, como propõe aliás algum do pensamento anarquista que ela contactou.

A relação entre anarquia e espiritualidade – essencial para se começar a ler Simone Weil – raramente assumiu um papel – não tanto metodológico, mas heurístico – na história do anarquismo. Há, evidentemente, para além do seu domínio das fontes filosóficas, uma heurística espiritual em Weil que faz dela essa figura capaz dum activismo radicalmente aberto à circunstância de si e dos outros. É hoje difícil descortinar herdeiros desse singular posicionamento. Há, certamente, Lanza del Vasto, do lado dos pensadores cristãos, com quem Weil conviveu nos dias de Marselha, mas cujo caminho adquiriu uma feição diferente. A partir do movimento libertário, têm surgido propostas dum «anarquismo espiritualista», impossível de confundir com a postura de Weil, que sempre rejeitou toda a exibição dos sinais duma eleição mística. A mística weiliana é a recusa de toda a eleição, o que se torna bem manifesto na sua relação com a herança judaica. Alguns investigadores como David Bisson (Philosophie de l’anarchie, 79-100) apontam o exemplo de figuras como Hakim Bey (Peter Lamborn Wilson) para defenderem a permanência duma tradição espiritual no anarquismo ou, pelo menos, dum «anarquismo ontológico». Mas Bey é um homem que passou pela influência de Henry Corbin e que tenta adaptar o pensamento das correntes tradicionalistas a uma anarquia contemporânea capaz de abraçar o turbilhão duma sociedade em devir imprevisível. É muito discutível que Weil pudesse confundir alguma vez o vórtice do real com estes turbilhões pós-modernos, discussão que não cabe nestas páginas. Mais interessantes serão, provavelmente, certos paralelismos que se podem estabelecer com o pensamento dum Tomás Ibáñez que é hoje, depois duma longa militância nos meios do anarco-sindicalismo, um dos raros pensadores em condições de renovar uma ontologia do anarquismo. É certo que a sua ontologia se reivindica «de ordem anti-essencialista, contextualista e relacional», mas o essencial está na sua ideia de que «os seres não têm propriedades intrínsecas», mais não sendo do que «o conjunto das relações que os constituem» (Philosophie, 359). Há no anarquismo uma singularidade no laço entre a ideia e a acção, ideia que também podemos ler em Weil, muito embora as relações que ela considera se estendam mais além: da mesma forma que o anarquismo não preexiste às formas de dominação que o suscitam, também não sobrevive às formas de luta com que lhes responde; o anarquismo nunca se instala no lugar do ser enquanto auto-legitimação historizada. O anarquismo não é mais do que a reemergência, uma e outra vez, da abertura a algo que, embora real, vem ao nosso encontro despido de qualquer prefiguração dum tal encontro.


O anarquismo de Weil deve ser compreendido a partir desse dom da reemergência. O que reemerge nele é a sua recusa de fundamento doutrinal, a não confundir com a ausência de pensamento libertário. Ao recusar-se a situar no futuro o reino da verdade – ao recusar o jogo da prefiguração ontológica –, Weil recusa a vectorização que faz coincidir a verdade e a realidade numa manipulação belicista do tempo humano. Esta questão é tanto mais pertinente na sua biografia quanto ela atravessa o seu engajamento na Guerra Civil de Espanha com a Coluna Durruti, depois dum breve contacto com o POUM. Aí reencontra camaradas libertários, como Charles Ridel e Charles Carpentier. No total, decorreram três meses, incluindo uma breve passagem pela frente de Aragão. Uma vez regressada a França, e nunca deixando de se afirmar anarquista, Weil virá a escrever um libelo intitulado Réflexions pour Déplaire onde são denunciadas «formas de constrangimento, casos de desumanidade directamente contrários ao ideal libertário e humanitário dos anarquistas». Através da experiência da guerra civil, Weil aprofundará a sua reflexão sobre a violência e a guerra, desde logo por intermédio duma carta dirigida ao escritor Georges Bernanos – que vinha de meios políticos diametralmente opostos aos seus – e depois em inúmeras reflexões sobre a força, o medo e a desinibição de matar. O essencial era evitar, em simultâneo, o medo e o gosto de matar, «esforço que parte o coração, insustentável na sua duração».

Weil é tanto mais uma pensadora livre quanto não lhe passa pela cabeça comportar-se como uma autora capaz de dispor os seres e as coisas em função desse ensejo: desde o momento em que terminara os seus estudos, a sua vida lança-se, impreparada, no caldeirão do mundo. Onde frutificaria este pensamento tão abundante e fulgurante se nada havia sido previsto para ele? Lança-o aos quatro ventos, em cadernos e cartas, na sua grande maioria, e ainda em inúmeros artigos em pequenas publicações militantes de diversos quadrantes. Uma vez falecida no sanatório inglês, em 24 de Agosto de 1943, os seus escritos encontram-se num estado de extraordinária dispersão: há-os em Londres, salvos in extremis, há-os dispersos em diversos apartamentos da Paris ainda sob a Ocupação – e é um perigo mortal pretender salvar documentos duma judia, qualquer documento, independentemente do seu teor –, outros andam por Marselha, em diversas mãos, outros ainda haviam seguido para Nova Iorque, onde os Weil haviam encontrado o abrigo que Simone recusara.

Simone Weil recusou sempre abrigar-se. Mas esse posicionamento não poderia ser senão dramático e verdadeiro. E que tensão é assim gerada, a potência do desabrigo! Em 1935, tem Weil apenas 26 anos, vemo-la já exausta no retrato que dela traça Georges Bataille em O Azul do Céu: «Só a provação sufocante, impossível, dá ao autor o meio de atingir a longínqua visão esperada por um leitor cansado dos limites aproximados que são impostos pelas convenções». Fuga da vigilância exercida pela autoridade do texto, mas redescoberta dessa falha da acção onde a escrita vem a renovar-se com um ímpeto maior. Lembremo-nos de que tanto Weil como Bataille se encontram diante da emergência do fascismo, impossibilitados de reintegrarem os herdeiros de Lenine. Há, ainda assim, alguns lugares onde aportar: em Setembro de 1933, Weil, depois duma já longa actividade com sindicados, e Bataille integram o Cercle Communiste Démocratique, orientado por Souvarine, que fora fundador do PCF e logo fora expulso em 1924 («há algo de podre no Partido e na Internacional»). Nada nestes círculos «protestantes» poderia aquietar a «a-teologia» em que, em matéria de partido, uma e outro haviam mergulhado.

Simone Weil pode, em muitas das suas etapas, ser confundida com uma «autora militante», essa espécie de credor da justeza universal em que tantos autores e artistas se tornaram no século XX. Contudo, Weil rompera muito cedo – primeiro secretamente, depois publicamente – com o progresso. Entra, assim, logo muito cedo no ateísmo perante a fé política. Em grande medida, a sua busca da acompanha a busca da justiça, mas é a primeira a que mais interessa por causa da sua constante inconveniência para todos aqueles que nela procurem uma coerência ou uma linha de orientação para as suas convicções. Em Weil, não há convicção sem conversão. Para entrar num percurso de convicção há que converter-se a algo que não é uma crença mas todo o seu oposto: uma forma de convivência com a própria fragilidade diante do mundo.

Em Weil, o activismo parece inevitável, tragicamente inevitável porque nunca suficiente. É um modo pobre de resistência à maquinação da modernidade técnica. E marcado por uma insuficiência permanente e irresolúvel, atribuível à incompreensão das estruturas que se instalam, se adaptam e se aperfeiçoam. Há três máquinas de movimento perpétuo que Weil critica sem que nisso haja oscilação, nos seus textos: a da técnica automática, que ela experimentou carnal e psiquicamente nas fábricas Renault, a máquina da história, que ela viu expandir-se à esquerda e à direita, a máquina de guerra, quer sob a sua forma bélica quer sob forma económica, tudo modos diversos de estreitamento do espaço da liberdade. Em paralelo, Weil vê o seu tempo erigir três maquinações da mentira: a mentira social, visível na funcionalização das relações sociais e económicas, a mentira escatológica, que é o sacrifício dos seres na idolatria política, por fim a mentira metafísica, que é a desistência da verdade, modos diversos de reificar a verdade, de a dissociar da consciência e de lhe recusar o espaço onde ela possa fazer-se presença.

 

 

TODO O COMBATE

LEVA A UMA NOVA POSIÇÃO ESPIRITUAL

 


NOTA

Para além da selecta organizada por Florence de Lussy – Simone Weil, Œuvres, Gallimard, 1999 –, consultaram-se também as seguintes edições dos textos de Weil: La connaissance surnaturelle, Gallimard, 1964; Réflexions sur les causes de la liberte et de l’oppression sociale, Gallimard, 1980 [ed. portuguesa: Antígona, 2017]; L’Enracinement, Flammarion, 2014 [ed. portuguesa: Relógio d’Água, 2014]. Foram ainda consultadas as actas do Colóquio de Lyon (2011) sobre Philosophie de l’anarchie, Atelier de Création Libertaire, 2012.




JORGE LEANDRO ROSA é ensaísta: escreve sobre estética, artes e literatura, filosofia contemporânea e metamorfoses da representação, tendo publicado livros e dezenas de ensaios em publicações nacionais e estrangeiras. Doutorado pela Universidade Nova de Lisboa, foi professor universitário durante vinte anos, no domínio do pensamento contemporâneo e das ciências da comunicação. Organizou colóquios internacionais dedicados à teoria das catástrofes e à Geopoética. Trabalha como tradutor e editor, dedicando particular atenção a autores como Jean-Luc Nancy, Georges Didi-Huberman, Emanuele Coccia, Jacques Rancière, René Daumal, etc. Publica regularmente recensões literárias e outros textos em: PúblicoO IndependenteNadaFlauta de LuzColibri Noir etc.




FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

  



Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA  REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)

Artista convidado:  Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)

Editores:

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