segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

MANUELA PARREIRA DA SILVA | Uma biografia de Fernando Pessoa

 


Escreveu Fernando Pessoa, numa carta a João Gaspar Simões, em 10 de janeiro de 1930, que (felizmente) Mário de Sá-Carneiro “não teve biografia: teve só génio. O que disse foi o que viveu”. A frase, servindo para sublinhar a relevância da obra do amigo, desvaloriza sobremaneira a narrativa de vida de um poeta ou artista, a qual costuma exercer sobre o público leitor uma curiosidade, por vezes mórbida, mas também muito humana. Afinal, este poeta-prosador viveu, sobretudo, através das vidas das personagens criadas, fez seus os sentimentos e emoções expressos nos poemas, transformou a obra em autobiografia. Pessoa defenderia mais tarde (dezembro de 1931), junto do mesmo interlocutor, que o crítico tem o dever de estudar o artista “exclusivamente” enquanto artista, fazendo apenas entrar o homem (o autor) no seu estudo quando tal for “rigorosamente preciso para explicar o artista”. Deve, pois, ser evitado um biografismo forçado e inútil.

Chegado até nós o “conselho”, importa reconhecer a ingrata tarefa que assiste ao biógrafo: como encontrar o peso certo da vida e da obra? O que é “rigorosamente” necessário ou imprescindível contar da vida para “explicar” a obra? E, como fazer justiça ao modo como a biografia conseguiu reconquistar o seu lugar nos estudos literários, depois de ter sido banida, durante décadas, na sequência da chamada “desconstrução da subjectividade” empreendida por Heidegger e da “morte do sujeito” (ou do autor), decretada por Barthes, Derrida, Foulcault? Como conseguir demonstrar que a ausência de uma interpelação autoral deixa fatalmente órfã a obra de um grande escritor? Creio que, no caso presente, Richard Zenith (Pessoa. Uma Biografia, tradução  de Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes, Lisboa: Quetzal, 2022) correspondeu da melhor maneira a todos os desafios. Foi capaz de encontrar um perfeito equilíbrio, de entrelaçar harmoniosamente a vida e a obra de Fernando Pessoa, de construir, “com todos os pormenores credíveis” que pôde reunir, aquilo a que chama uma vida “cinematográfica”, mostrando como o seu biografado “se comportava, aonde o levavam os seus passos, as pessoas com as quais interagia e os cenários animados em que a vida dele se desdobrou” (p. 34), nunca esquecendo que também para Pessoa (à semelhança, aliás, de Sá-Carneiro), a vida essencial foi a que teve lugar na imaginação. Por isso, diz Zenith, a sua maior ambição foi “cartografar” essa vida imaginativa.


A cartografia encetada por Richard Zenith obedece a um ritmo pendular, a um movimento duplo: ora parte de um rigoroso enquadramento histórico (do ponto vista literário, social, político, económico) para chegar a um determinado texto ou poema; ora parte de um poema ou conjunto de textos para interrogar o momento e a pertinência que apresenta face à sua própria história.

Assim, por exemplo, referindo o período em que o jovem Pessoa viveu na África do Sul, Zenith relata a chegada, alguns anos antes, de milhares de indianos a Durban, contratados para diversos serviços, mas classificados como “raça incivilizada”, e a presença, entre eles, de Gandhi, já então um defensor “apaixonado e competente” dos direitos dos seus confrades. Os últimos anos de Gandhi em Durban coincidiram, então, com os de Pessoa, sendo os escritórios do consulado português na mesma rua do próprio escritório de advocacia de Gandhi. A probabilidade do futuro poeta ter sabido da existência e da celebridade do hindu é grande. A verdade é que, trinta anos depois, na década de 1920, Pessoa dedicou um ensaio, inacabado, como tantos outros, à figura do Mahatma Gandhi, a quem enaltece como “a única figura verdadeiramente grande que há no mundo de hoje”. Assim também (outro exemplo), o biógrafo traça um panorama minucioso do momento político-social e económico vivido em Portugal, em 1935, e faz notar como a comemoração dos santos populares se intensificou com o Estado Novo, apostado em “ir ao povo dizer-lhe como há-de fazer para transformar a sua alegria expansiva e rude no ritmo de uma obra de arte”, segundo palavras de um jornal afecto ao regime, O Notícias Ilustrado, de 9 de Junho daquele ano. Zenith mostra como Pessoa escreveu, nesse preciso dia, três longos poemas, sobre cada um dos santos cultuados, nos quais, velada e ironicamente, alude aos intentos dirigistas de Salazar. Também aqui, a circunstância biográfica se encarrega de iluminar a obra.

Em contrapartida, um poema de Álvaro de Campos, datado de 1929, fala da “vizinha do número catorze [que] ria hoje da porta / De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno. / Ria naturalmente com a alma na cara. / Está certo: é a vida. / A dor não dura porque a dor não dura.”, leva o biógrafo a reparar que existe uma semelhança entre este nº 14 e o nº 104 da rua onde Pessoa viveu, em 1894, com a mãe viúva, mas que ria já ante a perspectiva do novo casamento, um mês apenas depois da morte do filho Jorge. Aqui é o poema que nos conduz a uma circunstância biográfica.


Por outro lado, assistimos a uma permanente viagem entre os vários “eus” pessoanos. Richard Zenith salienta que o “jogo” não se esgotava na literatura. “Pessoa apostou a sua própria identidade no sistema heterónimo”. O diálogo contínuo entre criaturas e criador é, por isso, particularmente bem documentado nesta biografia. Na realidade, Zenith teve de haver-se, pelo menos, com quatro obras e, portanto, com quatro biografias. Só um trabalho preliminar de grande minúcia, uma investigação de grande profundidade tornaria possível o resultado que temos diante dos olhos. Ninguém melhor do que Richard Zenith estaria habilitado para o fazer. A sua fonte de informação fundamental foi, sem dúvida, o suculento Espólio do poeta, existente na Biblioteca Nacional, que ele conhece e percorreu como ninguém, mas teve também acesso a outros espólios particulares, a cartas, a diários, a entrevistas com familiares de Pessoa que ainda o conheceram ou ouviram as petites histoires com que é lembrado. O corpo do texto e as notas finais mostram ainda um manancial enorme de informação recolhida em jornais e revistas portuguesas e estrangeiras, em obras de referência no campo da literatura, das artes, da história, da filosofia, da religião. Todo este conhecimento lhe permitiu encontrar fios e laços, por vezes inesperados, entre acontecimentos reais e ficcionais e compor um vívido retrato da época e do espaço físico e mental que Pessoa habitou. A Zenith, versado nas literaturas anglo-saxónicas, não escaparam as influências e as afinidades entre Pessoa e os seus pares. A relação com Walt Whitman é amplamente analisada, mas igualmente a que estabelece, por via do esoterismo, com Yeats. A este propósito, cumpre assinalar com agrado a importância que Richard Zenith atribui à busca espiritual de Pessoa, à sua entrega, sobretudo nos últimos anos de vida, a um muito próprio caminho iniciático que sustenta e alimenta, sem qualquer dúvida, a sua escrita e o seu quotidiano. Não tem sido fácil, entre os críticos da obra pessoana, aceitar esta evidência.

Outro tema a que o biógrafo dá especial ênfase é à sexualidade do poeta. A sua tese (evidentemente discutível) é a de que Pessoa terá morrido virgem. Não sendo esta uma questão fundamental, reveste-se. porém, de muito interesse, na medida em que a preocupação do poeta com o deserto da sua vida erótico-amorosa se expressa em parte significativa dos seus textos. Zenith inclina-se visivelmente a pensar que existe em Fernando Pessoa uma latente e nunca concretizada tendência homossexual. Refere, por exemplo, entre outros, os primeiros poemas homoeróticos escritos por Pessoa, numa altura em que conheceu Mário de Sá-Carneiro, e cita o título sugestivo de um deles: “Soneto que não se devia escrever (mas que foi escrito na Brasileira em 11 de fevereiro de 1912)”. 


Avisa, no entanto, Richard Zenith: “Não existe um Pessoa secreto para o biógrafo revelar”. Não se esperem, pois, grandes revelações. Contudo, de algum modo, a biografia por si construída o desmente. O nível de novidade depende, é claro, do grau de conhecimento que cada leitor tem da obra multifacetada do autor e das abordagens biográficas que foram sendo feitas. Ainda assim, convém salientar, entre muitas outras, algumas informações pertinentes, bem pouco conhecidas. A de que a poesia de Caeiro muito deve à do epicurista romano Lucrécio. Ou a de que um dos primeiros poemas do mesmo Caeiro foi escrito por Sá-Carneiro. Ficamos a saber que, em 1926, escreveu uma insultuosa carta aberta aos “Milionários americanos” e um ensaio em que acusa os super-ricos de acumularem dinheiro inutilmente. Que, em 1909, planeou traduzir a obra O único e a sua propriedade de Max Stirner, provável inspirador do seu Banqueiro Anarquista. Que planeou, entre muitos outros negócios, uma empresa cinematográfica, ECCE Film.

Uma palavra de elogio é devida aos tradutores desta inspiradora biografia. Sem eles, dificilmente leríamos as mais de mil páginas em que Richard Zenith logrou, de facto, cartografar a vida imaginativa de Pessoa, mostrando que teve génio, mas teve, afinal também, uma outra vida não vivida apenas com a imaginação.




MANUELA PARREIRA DA SILVA (Portugal, 1950). Nasceu em Castro Verde (Baixo Alentejo). Escreve poesia há muitos anos, tendo publicado parte da sua obra em revistas e nos Anuários de Poesia (de poetas não publicados) da Assírio & Alvim. “O Álbum de Vishnu” é o seu livro de estreia. Tem desenvolvido a sua atividade profissional na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, como assistente do Departamento de Românicas (área de Tradução). Dedica-se ao estudo do espólio pessoano, nomeadamente à fixação e edição de textos de Fernando Pessoa e à investigação da sua correspondência.




FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

  



Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA  REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)

Artista convidado:  Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

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