Chegado até nós o “conselho”,
importa reconhecer a ingrata tarefa que assiste ao biógrafo: como encontrar o
peso certo da vida e da obra? O que é “rigorosamente” necessário ou
imprescindível contar da vida para “explicar” a obra? E, como fazer justiça ao
modo como a biografia conseguiu reconquistar o seu lugar nos estudos literários,
depois de ter sido banida, durante décadas, na sequência da chamada “desconstrução
da subjectividade” empreendida por Heidegger e da “morte do sujeito” (ou do
autor), decretada por Barthes, Derrida, Foulcault? Como conseguir demonstrar
que a ausência de uma interpelação autoral deixa fatalmente órfã a obra de um
grande escritor? Creio que, no caso presente, Richard Zenith (Pessoa. Uma
Biografia, tradução de Salvato Teles
de Menezes e Vasco Teles de Menezes, Lisboa: Quetzal, 2022) correspondeu da
melhor maneira a todos os desafios. Foi capaz de encontrar um perfeito
equilíbrio, de entrelaçar harmoniosamente a vida e a obra de Fernando Pessoa,
de construir, “com todos os pormenores credíveis” que pôde reunir, aquilo a que
chama uma vida “cinematográfica”, mostrando como o seu biografado “se
comportava, aonde o levavam os seus passos, as pessoas com as quais interagia e
os cenários animados em que a vida dele se desdobrou” (p. 34), nunca esquecendo
que também para Pessoa (à semelhança, aliás, de Sá-Carneiro), a vida essencial
foi a que teve lugar na imaginação. Por isso, diz Zenith, a sua maior ambição
foi “cartografar” essa vida imaginativa.
Assim, por exemplo, referindo
o período em que o jovem Pessoa viveu na África do Sul, Zenith relata a
chegada, alguns anos antes, de milhares de indianos a Durban, contratados para
diversos serviços, mas classificados como “raça incivilizada”, e a presença,
entre eles, de Gandhi, já então um defensor “apaixonado e competente” dos
direitos dos seus confrades. Os últimos anos de Gandhi em Durban coincidiram,
então, com os de Pessoa, sendo os escritórios do consulado português na mesma
rua do próprio escritório de advocacia de Gandhi. A probabilidade do futuro
poeta ter sabido da existência e da celebridade do hindu é grande. A verdade é
que, trinta anos depois, na década de 1920, Pessoa dedicou um ensaio,
inacabado, como tantos outros, à figura do Mahatma Gandhi, a quem enaltece como
“a única figura verdadeiramente grande que há no mundo de hoje”. Assim também
(outro exemplo), o biógrafo traça um panorama minucioso do momento
político-social e económico vivido em Portugal, em 1935, e faz notar como a comemoração
dos santos populares se intensificou com o Estado Novo, apostado em “ir ao povo
dizer-lhe como há-de fazer para transformar a sua alegria expansiva e rude no
ritmo de uma obra de arte”, segundo palavras de um jornal afecto ao regime, O
Notícias Ilustrado, de 9 de Junho daquele ano. Zenith mostra como Pessoa
escreveu, nesse preciso dia, três longos poemas, sobre cada um dos santos
cultuados, nos quais, velada e ironicamente, alude aos intentos dirigistas de
Salazar. Também aqui, a circunstância biográfica se encarrega de iluminar a
obra.
Em contrapartida, um poema de
Álvaro de Campos, datado de 1929, fala da “vizinha do número catorze [que] ria
hoje da porta / De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno. / Ria
naturalmente com a alma na cara. / Está certo: é a vida. / A dor não dura
porque a dor não dura.”, leva o biógrafo a reparar que existe uma semelhança
entre este nº 14 e o nº 104 da rua onde Pessoa viveu, em 1894, com a mãe viúva,
mas que ria já ante a perspectiva do novo casamento, um mês apenas depois da
morte do filho Jorge. Aqui é o poema que nos conduz a uma circunstância
biográfica.
Outro tema a que o biógrafo dá
especial ênfase é à sexualidade do poeta. A sua tese (evidentemente discutível)
é a de que Pessoa terá morrido virgem. Não sendo esta uma questão fundamental,
reveste-se. porém, de muito interesse, na medida em que a preocupação do poeta
com o deserto da sua vida erótico-amorosa se expressa em parte significativa
dos seus textos. Zenith inclina-se visivelmente a pensar que existe em Fernando
Pessoa uma latente e nunca concretizada tendência homossexual. Refere, por
exemplo, entre outros, os primeiros poemas homoeróticos escritos por Pessoa,
numa altura em que conheceu Mário de Sá-Carneiro, e cita o título sugestivo de
um deles: “Soneto que não se devia escrever (mas que foi escrito na Brasileira
em 11 de fevereiro de 1912)”.
Uma palavra de elogio é devida
aos tradutores desta inspiradora biografia. Sem eles, dificilmente leríamos as
mais de mil páginas em que Richard Zenith logrou, de facto, cartografar a vida
imaginativa de Pessoa, mostrando que teve génio, mas teve, afinal também, uma
outra vida não vivida apenas com a imaginação.
MANUELA PARREIRA DA SILVA (Portugal, 1950). Nasceu em Castro Verde (Baixo Alentejo). Escreve poesia há muitos anos, tendo publicado parte da sua obra em revistas e nos Anuários de Poesia (de poetas não publicados) da Assírio & Alvim. “O Álbum de Vishnu” é o seu livro de estreia. Tem desenvolvido a sua atividade profissional na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, como assistente do Departamento de Românicas (área de Tradução). Dedica-se ao estudo do espólio pessoano, nomeadamente à fixação e edição de textos de Fernando Pessoa e à investigação da sua correspondência.
FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA – REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)
Artista convidado: Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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