e Mário Cesariny põe em cena / a sua luz no espaço.
ANTÓNIO BARAHONA, Memória do Café Gelo (1)
O Manuel de Castro tinha a lucidez do demónio, a crueldade (para os
outros e para si mesmo) de um carnívoro e a secreta fragilidade de alguém que
anda perdido pelo escuro. Os poemas dele mostram, a quem sabe ler, toda esta
movimentação interior.
– isto escreveu Herberto
Helder, no jornal (revista) Notícia
(2) quando soube da morte do seu
amigo, em artigo cujo título
recupera o início de
um poema de Manuel de Castro em Paralelo W: Eu
que/ apareci acidentalmente vivo/ odorizado de flores a uma certa distância/
não me importo.
Neste encontro
de palavras entre ambos, Herberto Helder revela o tema dominante da obra toda
do autor de Paralelo W e de A Estrela
rutilante – a morte. Em Manuel de Castro, entretanto, a morte não é só uma
palavra, uma só ânsia nem nenhum medo. De um lado, no seu tão iluminante lado
hermético, é a transmutação anterior à reencarnação ou ressurreição. Tema de
inspiração oriental, ligado às flores, aos barcos e ao elemento líquido. Mauro
Jorge Santos mantém que em Paralelo W
há indícios de dupla iniciação: a
iniciação da busca pelo alheio nas jornadas marítimas, e a busca por si mesmo
na iniciação nos cultos de Ísis (3).
E aqui perto, neste mesmo volume, António
Cândido Franco
refere que Manuel de Castro escolheu Camilo Pessanha como mais próximo progenitor
poético. Realmente, o ritual chinês da largada de barcos com flores e lanternas
iluminadas, como homenagem noturna aos mortos, impregna a obra de ambos, tal
como ambos revelam uma hipersensibilidade feminina que chama a água das
profundidades da psique como sua matéria-prima. De outra parte, tal como em
Camilo Pessanha, a morte vem acompanhada pela materialidade dos corpos
putrefatos, seus odores a cadaverina, e pela panóplia de assuntos associados:
funerais, círios, sepulturas, muitos cadáveres e muitas flores mais. Aliás, no
livro de Manuel de Castro recentemente publicado, Bonsoir, Madame (e esta Senhora é justamente a morte), o
organizador – António Barahona, segundo creio – juntou, em mais dois livros,
poemas publicados dispersamente, um deles intitulado Chuva no Dia de Finados. A grande companheira do poeta deve ter
sido esta.
Herberto e
Manuel tinham convivido estreitamente durante anos, em duas ocasiões morado nas
mesmas casas, o que não fora fácil, relata ainda o primeiro. Relação violenta,
em violentos tempos de repressão e censura. Tempos carnívoros, para usar termo corrente entre os poetas desta geração, a do Café Gelo, promotores de
comportamentos autofágicos,
de desespero, como aquele de que Herberto dá conta em Manuel de Castro, o de se
divertir mordendo as suas próprias mãos. Declarando-se incapaz de ser
sentimental, acrescenta: Tratávamo-nos
bastante mal, porque não era de suavidade e calma o que tínhamos para dizer e
fazer entre nós. Mas éramos realmente amigos, sabíamos um do outro, possuíamos
a honestidade de não facilitar o que, por sua natureza, era difícil.
Tratar-se-iam
mal, porém Herberto
Helder tem sido justo com o amigo: além
do texto que agora comento, publicado no Notícia, antologiou vários poemas dele
em Edoi lelia doura. De resto, no mesmo número do Notícia, em homenagem,
Herberto ainda reedita Hormonas para
Sísifo – VII, um cadavre exquis
ou jogo similar, em que entram, além de Manuel de Castro, João Fernandes e João
Rodrigues, inquirindo e respondendo sem conhecimento das perguntas do
interlocutor, numa pseudo-entrevista. Manuel de Castro mantinha, com João
Fernandes, a rubrica Hormonas para Sísifo
(4) no início dos anos sessenta, no Diário Ilustrado. Herberto Helder refere
que Manuel de Castro ganhava com ela cento e cinquenta escudos por semana, que
logo bebia no Café Gelo e arredores. Como Luiz Pacheco, Manuel de Castro cedera
ao alcoolismo, que 31 acabou por o levar aos trinta e seis anos de idade com
uma cirrose pancreática, lemos em Joana Emídio Marques. (5).
Em 1971,
Herberto estava em Luanda, mas ia recebendo notícias dos amigos: o Gonçalo Duarte e o António Gancho
enlouqueceram, o João Rodrigues, o Manuel d’Assumpção
e o Pressler suicidaram-se, o Luiz Pacheco e o Manuel de Castro entram e saem
dos hospitais para fazer e desfazer curas de desintoxicação alcoólica. Agora
foi-me dito que, com o Manuel de Castro, já se poderia contar com um cadáver
definitivo. Há bem uns seis ou sete anos que ele andava para morrer.
Ressuscitava a cada passo. Anteontem, dia 12 de setembro, já não ressuscitou.
Provavelmente, estava cansado de tanta ressurreição.
Além de Paralelo W e A estrela rutilante, informa Herberto que os familiares lhe tinham
destruído pelo menos um livro já organizado, Escorpião, e diversos textos soltos. E que havia outras coisas dele
por aí, algumas decerto irrecuperáveis porque as deixara pelos caminhos da
França e da Alemanha, e também por alguns bares de Lisboa. Luiz Pacheco refere
factos idênticos, em Os poetas sonegados
(6), e aos livros publicados
acrescenta Zona, com poemas
anteriores a 1957, impresso, mas sem capa, donde não chegara a circular. António
Cândido Franco, em e-mail, comenta que o autor desconsiderou esse livro por juvenilia. Luiz Pacheco diz que a viúva,
Maria Natália Freire de Castro Cabrita, compilara tudo o que pudera. Esperava
ele, Luiz Pacheco editor, que a obra completa de Manuel de Castro viesse a ser
publicada; anexa, no final do artigo, uma carta do poeta a falar de dois
livros, um que lhe sugere publique, e um romance ainda a meio: História para cavalinhos de circo o
primeiro, e o meado com título Aventuras
do capitão Batata. Oxalá os manuscritos tenham sobrevivido e ainda vejam a
luz: para iluminação maior da sua obra, a avaliar pelos títulos, trata-se de
obras para crianças de um poeta cujo maior drama não é a morte, sim o de ser
poeta de uma infância que na vida não teve, por isso era justo que a tivesse em
literatura.
Já findo este
artigo, António Cândido enviou-me as “Três
perguntas a Ricardo Ventura”,
incluídas neste
volume. De acordo com as informações
prestadas, o espólio de Manuel de Castro inclui um maço constituído por um pequeno livro inédito, Histórias para cavalinhos
de circo, que inclui quatro títulos: “Catarina,
ou os erros da juventude”, “La
madre que te parió”, “O
espadachim, o clown e o bastardo” e “Clélia Conti”.
Não se trata de
literatura para crianças,
mas mais provavelmente de uma criança,
cuja publicação
desejamos e aguardamos.
No meu livro A obra ao rubro de Herberto Helder (7) refiro o pormenor de, neste texto do
Notícia,
Herberto, que diz não ter biblioteca, e ter perdido os exemplares que o Manuel
lhe oferecera dos seus dois livros, se lembrar do poema, primeiro de Paralelo W, em que lemos: todos os meus amigos são rosas brancas.
Notam-se algumas coincidências
lexicais ou mesmo temáticas
entre os dois amigos, uma delas é essa proliferação de flores nos poemas. As
rosas dominam os jardins herbertianos. São irrelevantes estas coincidências,
porque lhes faltam sequência e consequências. Não passam de curiosidades, por
isso menciono esta outra: a flecha junto
ao canto. Em O amor em visita,
aparece a expressão com uma flecha em meu
flanco cantarei. Vejamos os últimos versos de Rosas, tranquilas rosas, de Manuel de Castro:
Aqui o tempo é longo.
Isolados em uma estranha terra.
Uma flecha canta
– uma flecha é esta música triste
que incandesce o sangue,
uma flecha atravessa simplesmente o espaço.
De modo algo
enigmático, Herberto
comenta: Num certo plano que urgia
inquirir incansavelmente, encontrávamo-nos em situação de rosas brancas, mas não havia perdão entre nós. As
rosas brancas simbolizam um perdão que paradoxalmente não existia na geração de
poetas que as invocam? Eles eram puros, marginais à corrupção do seu tempo, mas
implacáveis.
Os poetas
sentem-se uns aos outros: António Cândido Franco fala dos versos de gelo de Manuel de Castro, e realmente existe frio de neve
nas suas cidades desertas, onde não
passa ninguém. Não é um gelo interior, sim exterior, por despovoamento
humano das paisagens. Se personagens encontramos nos seus versos, são de deuses
como Varuna e Ísis ou de figuras míticas como Eurídice. Também existe uma
inesperada profissão de fé islâmica, que ergue na praça o Deus único, em: Allah é grande. Lê-se um poema semi-narrativo em Bonsoir, Madame, em que um homem de capa sobe as escadas de um
templo, mas é de um
defunto que se trata. Com uma ou outra exceção, o panorama geral é o do deserto, daí uma das percepções dos versos gelados.
Herberto
Helder, em vez de gelo, comenta que os poemas de Manuel de Castro possuem uma doçura oculta perfeitamente
envenenada pela raiva e pelo medo. Suponho que ele andava, desde o princípio,
em busca de algo que, com todos os perigos, se pode chamar de paz. Mas não pertencia ao tipo de pessoas que
encontra a paz na primeira, na segunda, ou na milésima esquina da terra. Havia
momentos em que se divertia loucamente a dar dentadas nas suas próprias mãos.
Existe quem não perceba destes divertimentos. O que unia o nosso grupo é que
todos percebíamos de dentadas.
Irmanava-os o
sofrimento. Dentadas do Poder, dentadas do Pai, como sugere António Cândido, e
eu faria um excurso crítico a partir destes dados todos, acrescentados à
informação chocante de Joana Emídio Marques, segundo a qual, em criança, o
Manuel vira o pai espancar mortalmente a mãe, para declarar que a obra de
Manuel de Castro nos deixa gelados a nós, leitores, não pelo que nela há, sim
pelo que nela falta. E neste ponto, diferentemente de Herberto, com quem mantém
alguns pontos de contacto, o que é irrelevante, Manuel distingue-se totalmente
dele, o que me parece já muito interessante, por a diferença abrir rosáceas de
luz no discurso hermético – as relações entre termos parentais são quase opostas
num e noutro; a palavra mãe está absolutamente ausente dos dois livros
publicados em vida por Manuel de Castro, Paralelo
W e A estrela rutilante. Só
aparece uma vez, que eu visse, em Bonsoir,
Madame, num dos textos dispersos aqui reunidos, “Poema para uma hera”:
meu pai é o pássaro
cavernícola
cujo olhar tem o sentido das bússolas
subterrâneas
e minha mãe cravejada
de diamantes
ali jaz candura
tão inútil
como um jornal diário
definitiva e absurda como um crustáceo
oco
Em Paralelo W, mais do que no segundo
livro, o que reina é
a infância, mas uma
infância sem família, de total orfandade. É uma infância amputada, impedida
de chegar ao seu termo e por isso de se prolongar naturalmente até à idade adulta, manifesta a paragem no modo como se
apresentam brinquedos e jogos próprios: as efémeras bolas de sabão e o papagaio
de papel que se ergue no céu, mas cujo fio parte. Manuel refere que não jogou
ao arco, quando é tão importante na obra essa imagem, juntamente com a da
ponte, ambas alusivas a passagem de um nível a outro nível. Infância que o
poeta diz ser ele mesmo a interromper, em versos de caráter suicida: Tenho como certo que isto não resiste / que
eu próprio hei-de quebrar o berço aos pedaços / o berço delicado onde matei um
jovem / a fim de o ver sereno listrado de luar.
No último
poema de Paralelo W, a imagem que o
poeta dá de si mesmo é o da boneca de papel. Se diz ser navio ou a estrela
rutilante, o resultado é idêntico, na distância incomensurável entre a
realidade destas imagens e a do homem, humanamente falando, que foi. É pela
falta que nos comovemos, é pela falta que os poemas se humanizam, nas suas
paisagens tecnológicas, é pela falta que a própria noção de sujeito ganha alma,
a falta de pai e mãe. Haverá falta maior do que a manifesta no poema “Ode à infância”? Um fantasma emerge das águas, flutua, os cabelos
derramados, como Ofélia,
quase ouvimos o sujeito lírico
chamar por ela, a Máscara do desejo
quase lhe cai da cara, mas a ausência
é um silêncio lancinante – falta a
palavra mãe. Faltam aliás quaisquer membros de
família.
Se em Herberto
Helder temos uma mãe
plural, quer dizer, um poeta com número
indeterminado de mães,
em Manuel de Castro o termo falta. Nem uma nem muitas, a palavra é uma ausência. Pai também é
termo em falta, com duas ou três
exceções, uma já vista acima. A segunda
exceção, generalizável a pai e mãe de todos os da sua geração, em “Equidistante e neutro”: O puzzle vai ser reconstituído/
com as caveiras dos nossos pais / a bruma, e a dissolução dos astros.
Guardo um companheiro que se não destina a
consumo público –
remata Herberto Helder. Isto vai bem: há
uma quantidade de cadáveres precoces. Um dia
destes, acordamos cobertos de cadáveres. Teremos de
encontrar o cheiro das rosas brancas
para conseguir respirar, se é que vamos querer
respirar. Uma das expressões cultivadas asperamente
pelo Manuel de Castro era: Está
podre! Pois está, digo eu.
E isto já se passa numa eternidade que não
existe.
Este texto do Notícia foi recuperado
parcialmente em Photomaton & Vox.
Sem marcas biográficas, sem nomes de ninguém, como se Herberto Helder tivesse
cometido autofagia, assumindo como dele o que atribuiu a Manuel, ou como se o
que pertence a Manuel pertencesse a toda a geração, deles e nossa, a geração
das antropofagias, das dentadas e da falta de país – de pais, queria dizer.
NOTAS
1. António Barahona, Memória do
Café Gelo. Em: www.culturafnac.pt/memoria-do-cafe-gelo/
2. “Eu que
apareci acidentalmente vivo”,
texto de HH e colagem de Carlos Fernandes. Notícia,
Luanda, nº 615, 18 de setembro de 1971.
3. Mauro Jorge Santos, “Portugal
e Manuel de Castro: a viagem interior ao além-mar e além-real”. Agulha Revista de Cultura, n.º 34, Fortaleza, S. Paulo, 2003. V. www.revista.agulha.nom.br/ag34castro.htm.
4. José-Luís Ferreira (textos) e Henrique Gabriel (imagens) publicam o
blogue “Hormonas para
Sísifo”, bem como
ebooks homónimos.
José-Luís Ferreira lembra, no
blogue, a sua parceria nesta rubrica, cujo título faz reviver na internet como homenagem a Manuel
de Castro. www.hgabriel.net/hormonasparasisifo
(março, 2014).
5. Joana Emídio Marques, “A
segunda vida de Manuel de Castro, uma estrela rutilante na poesia portuguesa”. Diário de Notícias, 8 de fevereiro
de 2014.
6. Luiz Pacheco, “Os poetas sonegados”. Em Literatura comestível. Lisboa, Editorial Estampa, 1972.
7. Maria Estela Guedes, A obra ao
rubro de Herberto Helder. São Paulo, Editora Escrituras, 2010.
MARIA ESTELA GUEDES (Portugal, 1947). Dramaturga, poeta e ensaísta. Licenciada pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tem vários títulos de poesia publicados. As suas obras de referência são Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores, 1979) e A obra ao rubro de Herberto Helder (São Paulo, Escrituras, 2010). Apresenta uma vertente científica, devida a ter sido funcionária do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa. Dirige a página web Triplov.
FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA – REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)
Artista convidado: Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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