O cenário é cinematográfico: no alto de uma colina, uma paradisíaca
residência protegida por pinheiros e com vistas para o mar Mediterrâneo. A
decoração luxuosa tem toques orientais e mexicanos. Polanski, de 71 anos,
fuma um grosso charuto cubano na varanda. Sua mulher há mais de uma década, a
atriz francesa Emmanuelle Seigner, está deitada no branco sofá lendo um
best-seller, indiferente à entrevista. A filha Morgane brinca na piscina e o
mais novo, Elvis, é protegido por uma babá. Não há nenhum sinal de um homem
que cultua o diabólico, como a mídia faz crer. Tudo é agradável e bastante
familiar.
Nascido casualmente em Paris, o polaco Roman Polanski é autor de
vários filmes fundamentais, desde a aplaudida estreia com Faca na
Água(1962). Depois de duas décadas ingratas, ganhou a Palma de Ouro do
Festival de Cannes e o Oscar de direção por O Pianista (2002).
Sua vida intensa e extraordinária é marcada por cruéis experiências: a mãe
morreu em um campo de concentração nazista, passou a infância no gueto judeu
de Cracóvia, teve a esposa Sharon Tate e o filho a ponto de nascer
assassinados por um fanático religioso, foi acusado de manter relações
sexuais com uma menor na casa de Jack Nicholson, expulso dos Estados Unidos e
outros turbulentos acontecimentos.
De sunga minúscula, camiseta azul, descalço, olhos pequenos e
irônicos, baixinho, enxuto e simpático, o talentoso autor do asfixiante O
Bebê de Rosemary (1968) deixa cair por terra o mito do homem
enigmático, libertino e perverso. Durante duas horas fala sobre sua vida e
sua carreira, amavelmente revelando-se sem artifícios. [ANJ]
ANJ | Sua
esposa, Emmanuelle Seigner, teve papéis destacados em vários filmes seus.
Qual a importância dela para a sua vida e o seu trabalho?
RP | Ela chegou
num momento decisivo de minha vida, trazendo harmonia e paz. Apesar de sua
juventude, descobri que possuía um instinto enorme em relação as pessoas e
uma visão muito justa diante das coisas da vida. É uma mulher realista que
com a idade vem adquirindo uma particular sabedoria. Nós nos conhecemos muito
bem e fizemos um pacto de esquecer nossa relação amorosa durante o trabalho.
Profissionalmente dissimulamos a intimidade para evitar interferências na
nossa criação.
ANJ | Antes
trabalhou com gente do calibre de Mia Farrow, Catherine Deneuve, Isabelle
Adjani e Ben Kingsley. Como funciona o seu relacionamento com os atores?
RP | Tive
vários relacionamentos profundos com atrizes, casei com algumas delas.
Respeito os atores, sou um deles. O que não entendo são os que mudam de
comportamento quando atingem a fama. Acho um absurdo quando um ator se crê um
ser superior, com direitos especiais, exigindo as coisas mais extravagantes.
Aprecio os atores inteligentes e sensatos, que vivem uma vida comum. Gosto de
trabalhar com atores bons, desses que interpretam qualquer tipo de papel,
como Jack Nicholson ou Meryl Streep.
ANJ | Também é
conhecido – e louvável – o seu interesse por antigos atores, muitos deles
praticamente aposentados.
RP | É um
prazer trabalhar com velhas glórias. Em O Inquilino dei um
papel forte para Shelley Winters. Trabalhei com Ruth Gordon, Melvyn Douglas e
Ralph Bellamy em O Bebê de Rosemary. Eles são grandes atores da
grande época de Hollywood. E um bom ator não tem idade.
ANJ | Todos
sabemos de sua infância sofrida e dos inúmeros problemas futuros. O
Pianista deu-lhe a oportunidade de examinar suas angústias e medos
pessoais?
RP | Passei
minha infância num gueto e consegui escapar. Eu queria fazer um filme sobre
essa época usando material de minha vida, porém não queria contar minha
história. Quando comecei a ler o livro, soube que O Pianista seria
meu próximo filme. É uma história que, apesar do horror, tem um lado
positivo. É um homem que se salva por sua arte, é a sobrevivência de um
artista. O livro é objetivo, me impressionou, pois não queria fazer um filme
sentimental estilo Hollywood.
ANJ | Fala
de A Lista de Schindler, de Spielberg?
RP | Falo de
muitos filmes. A Lista de Schindler é um grande trabalho.
Fui convidado por Spielberg para dirigi-lo e recusei. A história é muito
próxima da minha própria história. Conheci intimamente a muitos dos
personagens dela, e alguns ainda estão vivos, são meus amigos. Eu não faria
um bom filme nessa situação. Jamais exploraria a minha vida ou a de meus
amigos para vender ingressos. O filme sem distanciamento não é arte, é
autobiografia.
ANJ | Foi duro
recriar um momento indigno da nossa história moderna e que faz parte do seu
passado?
RP | Na
realidade, não. Filmar não foi difícil. Meus fantasmas eram massacrados
diariamente num set de filmagens com centenas de pessoas. Tinha que estar com
a mente voltada para questões técnicas. Acompanhar o processo de criação do
roteiro de Ronald Harwood foi mais doloroso.
ANJ | Esta obra
resgatou-o de vários insucessos e calou a boca dos que diziam que estava
criativamente acabado. Concorda?
RP | É um filme
realmente importante para mim. Dirigi-o pensando num resultado simples,
direto, procurando mostrar as coisas tal como as recordava. Fiz todo tipo de
filme e tenho a impressão de que tudo que fiz antes era uma preparação
para O Pianista. Pode ser que seja como um último chamado, afinal
eu sempre soube que faria um filme na Polônia sobre a Segunda Guerra Mundial
ou sobre o período pós-guerra.
ANJ | Como assim
“último chamado”? Me soa misterioso, quase sobrenatural.
RP | Não
acredito no sobrenatural. Não sou uma pessoa religiosa, portanto não sou
supersticioso. Não tenho interesse na metafísica nem no esoterismo. O
sobrenatural é apenas um elemento que usei em alguns filmes. O sombrio está
dentro de nós, não é preciso procurá-lo muito longe.
ANJ | Porém o
macabro está presente em muitos dos seus filmes. É uma atração incontrolável?
RP | Como já
disse, não creio no sobrenatural. Rodei muitos filmes que não tratam do
diabólico, e sempre sou lembrado como o Polanski com seus infernos, com seus
demônios. Dizem o mesmo em todo o mundo. Participei de uma coletiva de
imprensa recentemente e todos os jornalistas falaram sobre tal assunto. O
louco é que querem que eu aceite um clichê, como se não fosse dono de minha
própria vida. Eu nunca vi o diabo e não creio nele da forma que é vendido.
Não participo de rituais ou bruxarias como dizem por aí.
ANJ | Nada
pergunto sobre o diabólico banalizado, religioso, nada insinuo nesse sentido.
Gostaria de saber o que tem a dizer sobre o mal presente na sua obra. Não há
como negar, é um fato.
RP | A verdade
é que a metáfora do mal me interessa, a ideia do homem enfrentando forças
extremas que não controlam. Gosto muito do macabro como espetáculo. O medo
também pode ser divertido. Uso o mal nas telas como diversão. Por que não?
Ele está presente em O Bebê de Rosemary e O Nono
portal.
ANJ | E em O
Inquilino, Macbeth, A Dança dos Vampiros, Lua
de Fel…
RP | Possivelmente
goste desse tema. Também me diverte de alguma forma. Porém, pode acreditar,
sou um sujeito comum e na minha vida não é isso o que me interessa. O
engraçado é que até Emmanuelle, minha mulher, disse-me certa vez: “O que faz
de melhor são as histórias de vampiros e de diabos”. Ou seja, minha própria
mulher colabora com essa etiqueta imposta. Portanto, nada posso fazer, só
resta dar risadas.
ANJ | 16 filmes
em mais de 40 anos de carreira. Por que filma tão pouco?
RP | Os filmes
são caros, os riscos são grandes e é difícil desenvolver um projeto, que pode
durar anos para converter-se em realidade. É preciso escolher um tema,
trabalhar no roteiro, organizar a produção, montar o financiamento, encontrar
os atores. Nos anos sessenta era mais fácil, agora os interesses são outros e
nem sempre vale a pena correr o risco. Quando se é jovem, quando não se é
conhecido, podemos arriscar sem problemas e filmar da forma que for possível.
Depois de uma certa experiência é melhor esperar um pouco mais, estar
convencido de que será uma obra significante.
ANJ | Fez muitas
adaptações literárias. É um grande leitor?
RP | Eu amo
profundamente os livros, seu aroma e tato, tudo o que faz parte deles. Amo a
cadência das palavras, a forma como o autor se apodera dela. Gosto muito de
Faulkner, Truman Capote e Scott Fitzgerald. Leio livros policiais, Raymond
Chandler, a série noir francesa. A literatura
norte-americana é a minha favorita, é a melhor. Porém prefiro a leitura de
livros científicos e técnicos. Infelizmente creio que um livro é uma espécie
em extinção.
ANJ | Sabemos
que além de dirigir filmes, teatro e ópera, e escrever roteiros, também atua.
É importante para a sua carreira? Woody Allen diz que só atua nos seus filmes
quando não encontra o ator ideal para o papel.
RP | Levo a
sério minha carreira como ator. Gosto muito de atuar. Sou daqueles que
incorpora realmente o que interpreta, vive o seu papel com entrega. Creio que
tive um dos meus melhores momentos nessa área em “Uma Simples Formalidade”,
de Giuseppe Tornattore, dividindo cena com Gérard Depardieu. É mais fácil
atuar do que dirigir. Um ator faz o seu trabalho de preparação, atua, dá
algumas entrevistas e continua a sua vida. Um diretor pode passar anos
envolvido no mesmo projeto.
ANJ | Algum
cineasta foi importante para a sua formação?
RP | Luis
Buñuel. Fiquei impressionado com Los Olvidados, que vi na
Escola de Cine de Lodz. Nunca tinha visto algo parecido. Sua originalidade,
seu estilo nada convencional, suas interpretações realistas, me comoveram. O
cinema de Buñuel é fascinante, me interessa. Expressa certas ideias,
pensamentos, de forma muito bem utilizada.
ANJ | Por que
passa os verões em Ibiza? Ajuda-o a elaborar os seus projetos?
RP | Estive na
Espanha pela primeira vez no final dos anos cinquenta. Acompanhava minha
futura primeira mulher, Barbara Lass, que apresentava um filme no festival de
San Sebastián. Terminei gostando da Espanha, seu idioma e costumes. Passei a
frequentar Ibiza no final dos setenta e comprei esta casa uma década depois.
É uma ilha tranquila e com bom clima. Aqui penso, falo, leio, estudo
propostas. No meio dessa tranquilidade, estou sempre com a mente inquieta
preparando-me para o próximo filme.
ANJ | E o que
vem por aí?
RP | Poderia
dizer que quero continuar filmando, continuar alimentando o meu experiente e
particular olhar em direção ao homem e suas paixões, obsessões e demônios.
Trabalho atualmente na adaptação do livro “Oliver Twist”, de Charles Dickens.
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Antonio Naud Jr (Brasil, 1970). Escritor.
Autor de livros como O aprendiz do amor (1993), Caprichos (1998)
e Artepalavra - Conversas no velho mundo (2003).
Contato: antonio_junior2@yahoo.com. Página ilustrada com obras de Luis Caballero
(Colombia), artista convidado desta edição de ARC. Agulha Revista de Cultura # 41.
Outubro de 2004.
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