Creio que, com Fernando Pessoa, Herberto Helder
(1930-2015) partilha a mais expressiva poesia criada no Portugal do século XX. Se
Pessoa dialoga (desassossegadamente?) com o nascente mercado cultural, em Herberto,
a presença mais substanciosa desse poder é algo com que ele conta no âmbito das
próprias leis de produção do poema. Neste, o desmanche do real também aciona o desarme
de tal investida através da extinção da figura autoral e da montagem de um sistema
poético-crítico (autobibliográfico) que visa manter à distância qualquer tentativa
de capitalização artística. Feita para poucos, “contra todos”, na solidão “monstruosa”,
a obra de HH deixa transparecer na sua trajetória (através das vicissitudes e percalços)
uma exemplar aventura literária (heróico-cínica e patética) numa época em que os
discursos (ainda que singulares e idiossincráticos) se massificam: a intimidade
informática e a apropriação mediática têm acabado por banalizar o estranho e o raro
(antigos empecilhos de leitura), agora surrupiados e rebaixados a bens de troca.
O poema é, para Herberto, um “utensílio” sem
fim útil; é objeto de “manejo”, aparelho de conversão do real a cataclismos permanentes
e insondáveis, de onde renasce constantemente outro. E o poeta, movido pela paixão
do perigo e pela prática assídua de testar as demarcações da linguagem e a jurisdição
do sentido, radicaliza (assim) o lírico implodindo-o em grandes abalos semântico-rítmicos.
Esse é o exercício da “inocência”, desse “estado clandestino na ditadura do mundo”,
embora se saiba que as “coisas ludibriam-nos” e que “ludibriámo-nos nas coisas”.
Mas é por aí que o poeta bebe nas “noites ocultas” e penetra no “recôndito dos tempos”,
[1] possíveis vias de recondução ao mito
e ao primitivo Orpheu: maneira de alcançar (por outro viés) o limiar da utopia?
A
bicicleta pela lua dentro – mãe, mãe – / ouvi dizer toda a neve. / As árvores crescem
nos satélites. / Que hei-de fazer senão sonhar / ao contrário quando novembro empunha
– / mãe, mãe – as telhas dos seus frutos? / As nuvens, aviões, mercúrio. / Novembro
– mãe – com as suas praças / descascadas. [2]
De propósito dirigida ao erro, esta obra acerta
construindo-se por um regime de suspensão (de que Cobra, em 1977, já dera claros sinais, visto que grande porção de seus
exemplares fora corrigida (diversamente e à mão) pelo próprio autor); regime ditado
pelo selo do precário e da errância impresso aos originais, num desafio à manipulação
marqueteira. Mas é, sobretudo, a partir de 2001 que esse pendor para a reescrita,
para o reajuste, para a auto-correção fica sublinhado enquanto princípio evidente
e regedor. Poesia Toda (de 1996), acolhendo
as futuras publicações, passa a ser depurada em nova edição, numa obra que HH (paulatinamente)
vai decantando em quintessência: primeiro como Ou o Poema Contínuo: Súmula (de 2001), depois como O Poema Contínuo (de 2004), depois como A Faca não Corta o Fogo – Súmula & Inédita
(de 2006), depois como Ofício Cantante
(de 2009) e, por fim, como Poemas Completos
(de 2014) – dúbio título, aliás, visto que não acolhe o póstumo Poemas Canhotos (2015) ou o quer de fora.
A obra helderiana, poema contínuo e móvel, revisitado e reatualizado com persistência,
se oferece (então) como a prova material e inequívoca do lugar privilegiado onde
se morre e se nasce ritualisticamente na linguagem.
e
eu, que em tantos anos não consegui inventar um resquício metafísico,/ponho todo
o empenho no trânsito das minhas cinzas:/oh, retretes terrestres com destino final
nas grandes águas marítimas:/glória atlântica,/ índica megalomania das tripas!”
A transmutação recíproca do amador na coisa
amada (emblemática camoniana do tratamento poético helderiano e legenda de sua obra)
passa a ostentar agora a distância intransponível entre ambos: “a coisa amada nas
montanhas/amador ao rés das águas”, tal como o atestam as derradeiras obras, aliás,
já sem “simbolismo nenhum”. Vivendo de uma “morte módica” até o dia 23 de abril
de 2015, quando de fato falece, Herberto Helder parece se ressentir de não ter-se
suicidado “com o gás dos últimos dias” – e tece, contra si mesmo, a sua “Elegia
de um Burro”. [3] O póstumo Poemas Canhotos exibe um baixo e jocoso e
compassivo tom que homenageia as “imperfeições” (às quais não faltam sequer a redondilha
e a rima em “ão”), numa irônica liturgia pública em que HH se imola a si mesmo –
malgrado o fato de uma de suas metas (como tantas outras) ter sido fartamente alcançada:
até
que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza. [4]
NOTAS
1. Luzes
da Galiza #516. Sada, Coruña, Inverno/Primavera 1987.
2. Ofício
Cantante. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.
3. Respectivamente Poemas Canhotos (Lisboa: Porto Editora, 2015) e A Morte Sem Mestre (Porto: Porto Editora,
2014).
4. A
Faca Não Corta O Fogo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008.
MARIA
LÚCIA DAL FARRA (Brasil,
1944). Poeta e ensaísta Autora de A Alquimia
da Linguagem. Leitura da Cosmogonia Poética de Herberto Helder. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1986. Página ilustrada com obras de Felícia Leirner (Brasil),
artista convidada desta edição.
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● ÍNDICE # 100
EDITORIAL | 100
números e a dinâmica imóvel do cotidiano
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/08/agulha-revista-de-cultura-100-julho-de.html
AGACÍ DIMITRUCA |
Tiempos griego-españoles
ALFONSO PEÑA | Conversa con Claudio Willer
ANDREA
OBERHUBER | O livro surrealista como espaço transfronteiriço: Lise Deharme e
Gisèle Prassinos
ANTONIO CABALLERO | Harold Alvarado Tenorio y un libro a cuchilladas
DANIEL
VERGINELLI GALANTIN | Eliane Robert Moraes: perversos, amantes e outros
trágicos
ELVA PENICHE MONTFORT | Fotografía y surrealismo: fetiches de Kati Horna
ESTELLE IRIZARRY | Eugene Granell: correspondencias entre creación
pictórica y literaria
ESTER
FRIDMAN | A linguagem simbólica
no Zaratustra de Nietzsche
FLORIANO
MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 1
FLORIANO
MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 2
FLORIANO
MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 3
HAROLD ALVARADO TENORIO | 100 años de poesía en Colombia
ISABEL BARRAGÁN DE TURNER | La isla mágica de Rogelio Sinán
JOSÉ ÁNGEL LEYVA | Víctor Gaviria: El poeta y el cine
LUIS FERNANDO CUARTAS | La ilusión siniestra de los cuerpos y los
engaños de la metamorfosis
MARIA LÚCIA
DAL FARRA | Herberto Helder, sigilosamente Herberto
NICOLAU
SAIÃO | Recordando uma comunicação de Mário Cesariny
RICARDO ECHÁVARRI | El poeta Arthur Cravan em México
SUSANA WALD | En el espejo retrovisor
ULISES VARSOVIA | Esencia y excedencia de la poesía contemporánea
ARTISTA
CONVIDADA | FELÍCIA LEIRNER | GISELDA LEIRNER | Felícia Leirner, minha mãe
Agulha Revista de Cultura
Número 100 | Julho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS |
MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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CNPJ 02.081.443/0001-80
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