Abre | Escrevi esta historieta sobre uma composição do Hermeto,
Rede. A música
pode ser ouvida aqui neste link: https://youtu.be/9zwUx1oLX_U na versão
de estúdio. A versão ao vivo na TV está aqui: https://youtu.be/I8IEjhqBS6c.
1978
– Fazia um pouco mais de um ano que eu estava
tocando no Grupo do Hermeto Pascoal, quando tivemos a oportunidade de gravar pela
gravadora Warner Zabumbê-Bum-À, um disco
no Estúdio Transamérica, no Rio de Janeiro. Era a primeira vez que eu, um ex-futuro
biólogo de 24 anos, estava participando de uma produção fonográfica profissional
como músico. Eu olhava para tudo aquilo com os olhos bem arregalados, enquanto os
ouvidos iam descobrindo as paisagens sonoras do Campeão Hermeto.
A tecnologia era atual para a época – tínhamos o Vitor
Farias pilotando a mesa e uma banda coesa: Nenê na bateria, piano e violão; Cacau
Queiroz nos sopros, Itiberê Zwarg no baixo, Celso Mendes na guitarra, Zabelê (Rosemarie
Pidner, esposa do Nenê na época) na percussão, voz e violão, o saudoso Pernambuco na percussão e vozes, e Mauro
Senise como convidado na flauta. Eu tocava o piano Rhodes, o clavinete e participava
dos coros criados pelo Hermeto, o produtor e mestre de cerimônias do projeto. O
Campeão tocou de tudo nesse disco– mesas, flautas, piano, percussão, todos os saxofones,
violão, etc.
Durante os ensaios preparativos para as sessões de gravação,
Hermeto nos aparece com um arranjo cuidadosamente escrito à mão por ele, com nossas
partes individuais copiadas com capricho. Chamava-se Rede. Depois de tantos meses aprendendo com o Hermeto e tocando músicas
que me desafiavam em todos os sentidos, esse tema indicava apenas pares de notas
bem espaçadas para cada instrumento. Eu, tocando o clavinete, percebi que os outros
instrumentos tocavam algo similar. Nada aparentemente revolucionário ou difícil
de tocar; apenas grupos de duas notas, diferentes entre cada parte. Eu gravei o
clavinete sem problemas, mas continuava sem entender o que o Hermeto queria com
essas notas.
Veja aqui um pedacinho da partitura:
Foi apenas mais tarde, ao ouvir a faixa já editada e mixada,
percebi que todos estes instrumentos estavam na verdade reproduzindo o ranger de
uma rede pendurada na varanda, naquele pendular masmorrento de preguiça em tarde
de domingo. Isso mesmo, aquele barulhinho que os dois punhos de qualquer rede fazem
quando balançam no gancho... nhéééc, nhiiic....
Quer dizer: o Hermeto, deitado numa rede, percebeu no som
do encontro dos ganchos com o pano, uma música diferente, que ele soube captar com
notas e timbres de instrumentos convencionais. O que seria um ruído irritante transformou-se
numa poesia rítmica, em que a rede gira feito um pião, alça voo e leva o sonho do
sujeito que na rede descansa a um remanso pastoral idílico, onde Zabelê recita esses
versos:
Me
dê a rede , quero dormir
O
ar é puro, não vou sair
Balance
com força, mais um pouquinho
Pro
sono vir devagarinho...
Quero
sonhar bem diferente, talvez igual a um passarinho
Quando
acordar de manhãzinha, vou ver o sol nascer
sozinho
E
logo o dia vem clareando, os donos das matas vão se encontrando,
Andando
e voando nos ares, cantando nas matas,
Cuidando
de tudo que é belo
Quanto
a natureza, que é linda, ainda
Que
é linda, ainda
Que
é linda, sim.
A cada repetição do tema com seus pares de notas enferrujadas,
novas cores são adicionadas com pios de aves, sininhos chamando os elementais –
os “donos das matas” – e uma nova pausa, essa mais abstrata, onde, montado na garupa
do piano elétrico, o poeta sonhador clama, na voz vibrante do Pernambuco,
Vejam,
vejam o florestal! Veja, veja a Natureza!
Veja
quanto verde, quanto verde está existindo na Terra!
Terra
linda, é obra da Natureza, luz divina!
Ah…
quero u’a rede! Quero u’a rede!
Hermeto havia escrito um verso adicional, que não foi gravado.
Dizia assim:
Dai-me
u’a rede pra eu dormir com minha amada por trás das colinas,
Longe
da poluição, perto da brisa...
O Pernambuco às vezes se embatucava e trocava as palavras,
querendo dormir “perto da poluição e longe da brisa”.
O Hermeto que criou estes versos em 1978 não é um ecologista
de revista, desses que apareceram bem depois. Ele apenas fala com a pura propriedade
de quem nasceu no sertão alagoano, conversou com os passarinhos quando tinha seus
5 anos de idade e aprendeu harmonia com os pedaços de ferro do monturo do seu avô
ferreiro aos 8. Tudo é Som, ele diz, e Som é Vibração.
Participar da criação dessa peça foi uma lição para minha
percepção musical limitada. O que o Hermeto criou com Rede foi uma pintura sonora, um tableau
vivant, onde a rede é uma cápsula espacial que leva o redeiro sonhador a um outro plano astral, de onde ele vislumbra a Terra
vestida de verde: vista assim do alto, mais parece o céu no chão...
Na última passagem do tema, surge o sax barítono do Cacau
de Queiroz urrando como uma fera louca enquanto a rede e o Grupo rodopiam cada vez
mais rápido, até que as amarras se soltam – o sonhador é projetado de volta ao silêncio
das noites frias do agreste alagoano.
ACAMPAMENTO MUSICAL
JOVINO SANTOS NETO (Brasil, 1954). Músico, compositor,
arranjador, editor.
*****
Organização a cargo de Floriano Martins © 2017
ARC Edições
Artista convidado | Farnese de Andrade (Brasil,
1926-1996)
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular
Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Jovino Santos Neto
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista de Cultura teve em sua
primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo
sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente
ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação
editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta
vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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