Conta a História que
“Seu Cabral vinha navegando, quando alguém logo foi gritando — Terra à Vista!”.
A primeira visão lusitana das nossas terras pindorâmicas foi de uma montanha que
eles batizaram de Monte Pascoal na Bahia, pois aquele era o dia da Páscoa no ano
de 1500. Essa montanha, um local mágico e sagrado, é a imagem que me vem à mente
quando penso no Campeão Hermeto Pascoal e ouço esta gravação feita em 2017; uma
montanha que, ao invés de ser esculpida de granito maciço, como o seu xará baiano,
é fluida, elástica e livre das amarras acadêmicas da gravidade musical.
Muitos montanhistas têm escalado o Monte Pascoal da Música
em suas mil vertentes há mais de cinquenta anos; os solistas de todos os instrumentos,
os grupos musicais de várias gerações (incluindo o que eu tive a honra de fazer
parte entre 1977 e 1992), as orquestras, regionais e muitos outros, sempre bebendo
dessa fonte Pascoalina que nunca parou de jorrar a nossa Vitamina S, o Som claro
e luminoso.
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Desde o começo desta minha história no Grupo eu era meio assim, guri curioso, olhando por cima dos ombros do Hermeto quando ele desenhava essa poesia, aquelas teias musicais densas e orgânicas, assim como um emaranhado de cipós e algas numa mesma Lagoa da Canoa. Ou assim como uma macarronada, daquelas que a Dona Ilza costumava fazer no Jabour, onde nossa escola se assentou por um bom tempo. Lá, eu cuidava dessas partituras que dormiam em baixo da cama de casal do Hermeto e Dona Ilza, num balaio grande de palha, depois substituído por uma arquivo de metal. Tive o prazer de transcrever esse baú de grades orquestrais escritas impecavelmente à mão por Hermeto(sempre com caneta de feltro) para o mundo digital dos uns e dos zeros. Ou seja, cada nota colocada no papel, a milímetros do nariz rosado pascoalino, me mostrou o cuidado e a atenção com que o Hermeto compõe. A visão física do Hermeto, que nunca o deixou ler um livro na vida, o iluminou para fixar com carinho cada prego e cada tábua desta Catedral do Som que ouvimos agora. Hoje, podemos enfim saber o que o Hermeto ouviu a cada vez que ele empunhou o papel, trazendo-o bem perto do nariz e dos ouvidos, criando como um pintor a trajetória de cada uma dessas peças que podemos ouvir hoje.
Ao preparar e digitalizar esses arranjos únicos, pude saborear
cada compasso, às vezes por uma hora inteira cada um. Não posso imaginar uma melhor
referencia para se aprender a compor, arranjar e interpretar: basta estudar a música
livre que jorra sem parar das encostas do Monte Pascoal; A Cachoeira do Som.
Hoje, fico muito feliz em ver esses arranjos crescerem
e explodirem na realidade dos sons e texturas dessa gravação. Esse nome de “big
band” é meio errôneo, pois existem bandas e orquestras maiores em número de participantes,
porém a escrita e a concepção estrutural desses arranjos aqui presentes neste álbum
não deixam dúvidas quanto ao seu DNA: é tudo Hermeto, cantando e contando histórias
com 15 sopros da pesada e uma cozinha arretada.
Estamos ouvindo um caldo musical com todos os temperos remexidos no caldeirão
do Jabour, aquele mesmo usado para cozinhar a Feijoada da Ilza.
Parabéns ao meu irmãozinho de som André Marques por ser
o timoneiro desta nau, um barco que vai navegando pelas águas do Mar do Som, sem
medo dos ventos escondidos nestas partituras que eu vi nascer. Um abraço aos músicos,
tripulantes dessa Nau Pascoaleta, todos
colaborando para uma sonoridade e uma concepção únicas no nosso planetinha azul.
Hermeto ouve o Som da Esferas que os alquimistas europeus já buscavam em 1500, e
irradia esse som através da sua escrita, nos apontando o caminho de hoje e do futuro.
Esses músicos maravilhosos formam uma equipe, bem como
um grupo de alpinistas escalando uma escarpa íngreme. Em vez de cordas, o que os
liga e protege é o suingue, a intuição e a dedicação à linguagem universal do Campeão.
Subindo por uma vertente ainda não muito explorada, eles deram o melhor de si com
muito amor pelo Som e pelo Monte Hermeto Pascoal, que retribuiu agora o olhar lusitano
de 1500. Enfim, a Montanha olha para o Universo.
Axé,
ACAMPAMENTO MUSICAL
JOVINO SANTOS NETO (Brasil, 1954). Músico, compositor,
arranjador, editor.
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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017
ARC Edições
Artista convidado | Farnese de Andrade (Brasil,
1926-1996)
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular
Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Jovino Santos Neto
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista de Cultura teve em sua
primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo
sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente
ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação
editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta
vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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