quarta-feira, 20 de setembro de 2017

JOVINO SANTOS NETO | O Monte Pascoal: a Cachoeira do Som


Conta a História que “Seu Cabral vinha navegando, quando alguém logo foi gritando — Terra à Vista!”. A primeira visão lusitana das nossas terras pindorâmicas foi de uma montanha que eles batizaram de Monte Pascoal na Bahia, pois aquele era o dia da Páscoa no ano de 1500. Essa montanha, um local mágico e sagrado, é a imagem que me vem à mente quando penso no Campeão Hermeto Pascoal e ouço esta gravação feita em 2017; uma montanha que, ao invés de ser esculpida de granito maciço, como o seu xará baiano, é fluida, elástica e livre das amarras acadêmicas da gravidade musical.
Muitos montanhistas têm escalado o Monte Pascoal da Música em suas mil vertentes há mais de cinquenta anos; os solistas de todos os instrumentos, os grupos musicais de várias gerações (incluindo o que eu tive a honra de fazer parte entre 1977 e 1992), as orquestras, regionais e muitos outros, sempre bebendo dessa fonte Pascoalina que nunca parou de jorrar a nossa Vitamina S, o Som claro e luminoso.






 Desde o começo desta minha história no Grupo eu era meio assim, guri curioso, olhando por cima dos ombros do Hermeto quando ele desenhava essa poesia, aquelas teias musicais densas e orgânicas, assim como um emaranhado de cipós e algas numa mesma Lagoa da Canoa. Ou assim como uma macarronada, daquelas que a Dona Ilza costumava fazer no Jabour, onde nossa escola se assentou por um bom tempo. Lá, eu cuidava dessas partituras que dormiam em baixo da cama de casal do Hermeto e Dona Ilza, num balaio grande de palha, depois substituído por uma arquivo de metal. Tive o prazer de transcrever esse baú de grades orquestrais escritas impecavelmente à mão por Hermeto(sempre  com caneta de feltro) para o mundo digital dos uns e dos zeros. Ou seja, cada nota colocada no papel, a milímetros do nariz rosado pascoalino, me mostrou o cuidado e a atenção com que o Hermeto compõe. A visão física do Hermeto, que nunca o deixou ler um livro na vida, o iluminou para fixar com carinho cada prego e cada tábua desta Catedral do Som que ouvimos agora. Hoje, podemos enfim saber o que o Hermeto ouviu a cada vez que ele empunhou o papel, trazendo-o bem perto do nariz e dos ouvidos, criando como um pintor a trajetória de cada uma dessas peças que podemos ouvir hoje.
Ao preparar e digitalizar esses arranjos únicos, pude saborear cada compasso, às vezes por uma hora inteira cada um. Não posso imaginar uma melhor referencia para se aprender a compor, arranjar e interpretar: basta estudar a música livre que jorra sem parar das encostas do Monte Pascoal; A Cachoeira do Som.
Hoje, fico muito feliz em ver esses arranjos crescerem e explodirem na realidade dos sons e texturas dessa gravação. Esse nome de “big band” é meio errôneo, pois existem bandas e orquestras maiores em número de participantes, porém a escrita e a concepção estrutural desses arranjos aqui presentes neste álbum não deixam dúvidas quanto ao seu DNA: é tudo Hermeto, cantando e contando histórias com 15 sopros da pesada e uma cozinha arretada.  Estamos ouvindo um caldo musical com todos os temperos remexidos no caldeirão do Jabour, aquele mesmo usado para cozinhar a Feijoada da Ilza.
Parabéns ao meu irmãozinho de som André Marques por ser o timoneiro desta nau, um barco que vai navegando pelas águas do Mar do Som, sem medo dos ventos escondidos nestas partituras que eu vi nascer. Um abraço aos músicos, tripulantes dessa Nau Pascoaleta, todos colaborando para uma sonoridade e uma concepção únicas no nosso planetinha azul. Hermeto ouve o Som da Esferas que os alquimistas europeus já buscavam em 1500, e irradia esse som através da sua escrita, nos apontando o caminho de hoje e do futuro.
Esses músicos maravilhosos formam uma equipe, bem como um grupo de alpinistas escalando uma escarpa íngreme. Em vez de cordas, o que os liga e protege é o suingue, a intuição e a dedicação à linguagem universal do Campeão. Subindo por uma vertente ainda não muito explorada, eles deram o melhor de si com muito amor pelo Som e pelo Monte Hermeto Pascoal, que retribuiu agora o olhar lusitano de 1500. Enfim, a Montanha olha para o Universo.
Axé,

ACAMPAMENTO MUSICAL


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JOVINO SANTOS NETO (Brasil, 1954). Músico, compositor, arranjador, editor.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado | Farnese de Andrade (Brasil, 1926-1996)
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Jovino Santos Neto
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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