1. Arp
e Huidobro: parceria luminosa
Hans
Arp e Vicente Huidobro, III novelas
exemplares & 20 poemas intransigentes: tradução, nota preliminar e ilustrações
de Floriano Martins, Sol Negro Edições, de Natal, RN; Edições Nephelibata de São
Pedro de Alcântara, SC; 2012. Tiragem limitada de exemplares numerados; pode ser
encomendada às editoras através de suas páginas de internet, solnegroeditora.blogspot.com.br ou edicoesnephelibata.blogspot.com.br.
Embriaguez poética, é o que
provoca essa edição tão bem preparada por Floriano Martins. Dá a impressão de cada
frase com metáforas inusitadas de Os
cantos de Maldoror de Lautréamont abrir-se,
caixinha misteriosa, para dela saltarem novas imagens que, por sua vez, se multiplicam.
Resultado da parceria de dois artistas exponenciais, o franco-alemão (ou alemão
naturalizado francês) Hans Arp e o chileno Vicente Huidobro. Em 1931, passavam férias
juntos e resolveram escrever as três “novelas exemplares” (o título é alusão à série
de relatos de Cervantes).
Basta citar o começo, para
dar uma ideia:
Era um dia de Natal, o 1º de maio. Do céu caiam homens
de neve e tonéis cheios de trovões. Sobre o mundo, flutuavam os três últimos corações
calafetados: a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade. Era o último dia do ano novo.
A árvore do idealismo, essa árvore sentimental na qual se balançavam os ninhos dos
filósofos materialistas, foi abatida pelo golpe de um só trovão de hélio.
O restante segue assim, na
mesma fusão de lirismo e ironia. Lembra as escritas automáticas de Benjamin Péret.
Surrealismo? Huidobro, autor de poderosas prosas poéticas e de uma epopeia moderna, Altazor – sua atualização do Corpus Hermeticum dos primeiros séculos d.C –, foi o iniciador
e a meu ver o poeta de maior peso dos vanguardismos hispano-americanos; e um paranoico,
polemista desenfreado que não poupou Breton e seus parceiros (além de haver acusado
Pierre Reverdy de plagiá-lo e das recorrentes brigas com Neruda): sua biografia
aventuresca o torna interessante como personagem, e não só como autor.
Arp, famoso por sua contribuição
às artes visuais, também foi um excelente poeta; artista completo. Teve participação
no surrealismo. Ambos se encontraram no movimento Dadá, por volta de 1918. Independentemente
do mapeamento em grupos e tendências, as três prosas em parceria e as duas séries
de poemas reunidos por Floriano Martins exibem um espírito surrealista pelas imagens
poéticas, pela criação espontânea e coletiva, e pelo inconformismo e rebeldia de
seus autores. Celebram a imaginação criadora.
Em vez de comentar e interpretar,
prefiro transcrever trechos de poemas de cada um, Arp e Huidobro. Leitores entenderão
do que estou falando:
HANS ARP:
Ela desaparece, desaparece
em sua própria luz.
Ela desaparece, desaparece
Em sua pureza, em sua doçura
Sonhaste sobre o índice do
céu
entre os dois últimos flocos
da noite
A terra se cobriu de lágrimas
de gozo.
O dia despertou em uma mão
de cristal.
VICENTE HUIDOBRO:
As viagens dos sonâmbulos
em luz de finura
Respiram minhas divagações
Quando chegam os poetas com
os rios amigos
Para levar as almofadas da
ternura
Ponho sapatos novos em minhas
canções
Os ladrões buscam pirâmides
nos olhos em calma e sem música
Nos belos olhos dos dromedários
Ou nas espirais de ar
Que deslocam as bailarinas
geográficas
Da mesma editora Sol Negro,
também saiu Abismanto, série de
poemas de Viviane de Santana Paulo e Floriano Martins: intensa, mostra algo da melhor
poesia contemporânea brasileira. E outra leitura necessária, Visões das Filhas de Albion de William Blake, em tradução impecável de Márcio
Simões, criador dessa editora.
Impressiona, neste começo
de 2013, o volume de matérias com bobagens recorrentes sobre vendas de livros. Deveriam
dar atenção às edições de qualidade, como estas; que, não obstante, acharão seus
leitores.
2. Aldo
Pellegrini, o grande poeta surrealista argentino, é publicado no Brasil
Em comum a usuários de drogas
e leitores de poesia de qualidade: para achar bons produtos, é preciso ter conexões,
bons contatos. A observação, em uma entrevista recente, foi a propósito das editoras
à margem do mercado como a Sol Negro de Márcio Simões, de Natal, RN, – com o luminoso III novelas exemplares & 20 poemas
intransigentes de Hans Arp e Vicente
Huidobro. Da Nephelibata de São Pedro de Alcântara, SC. A Lumme, de Bauru, SP, com
o provável melhor lançamento de 2013, Poesia
reunida de Radovan Ivsic. Os novos poetas brasileiros pela Patuá, Dobra,
Kazuá. O ensaio A arqueologia do resíduo:
os ossos do mundo sob o olhar selvagem de
Marcus Rogério Salgado, Antiqua, São Paulo: Flávio de Carvalho tratado como merece
(voltarei a comentar).
Abulia da crítica e mercado:
lançamentos como esses e, agora, dois livros de Aldo Pellegrini – Construção da destruição, poemas, tradução
de Rodrigo Barbosa, e Sobre surrealismo,
organização, tradução e prefácio de Floriano Martins, ambos pela Sol Negro, mais
uma vez em edições visualmente sedutoras – terem como principal divulgação este
blog (sorte de meus assinantes).
Com Aldo Pellegrini (1903–1973),
chega a nós a grande poesia argentina do século 20. Inclui, além de Pellegrini,
Enrique Molina, Alejandra Pizarnik, Francisco Madariaga, Oliverio Girondo (único
com livro publicado aqui, Masmédula pela Iluminuras). Todos com imagens, tocados
ou inspirados pelo surrealismo. Pioneiro, Pellegrini descobriu o surrealismo em
primeira mão, em 1924. Em 1926, já lançava a revista Qué e liderava o primeiro grupo surrealista em língua
espanhola. Além de outras publicações, fez com Molina e Madariaga a revista A partir de cero em 1952. Traduziu Lautréamont. Preparou antologias
e publicou outros poetas, como Girondo. Muito apropriado o paralelo, por Floriano
Martins, do pensamento de Pellegrini sobre poesia em Sobre surrealismo e aquele de Octavio Paz em O arco e a lira.
A seguir, dois excertos de Construção da destruição. Quem desejar
mais, acesse http://solnegroeditora.blogspot.com.br/.
Rua de duendes de primavera
que atrai os homens sedentos e sacode sua poeira à direita das respirações, por
um caminho de olhares furtivos, oh brancos seios, em que esquecimento de horas de
perigo os encontrei?
Ardendo até que nos detém
uma frágil muralha de calma, um despertar de ruídos e perfumes.
Já não quero retroceder nos
caminhos, acossado pelas migrações das medusas.
Para o oriente as mãos apontam
a partida do sol da gravidade.
Já não quero envelhecer nos
hotéis carcomidos pelas proibições, onde os transeuntes se imobilizam envoltos em
seu sonho enquanto os cipós crescem ávidos até a vertente dos pássaros.
Um mar distante e o próximo
sangue travam o diálogo da frieza e do ardor. Os teatros estão desertos.
Os passos se afastam na solidão
que tu respiras e os rostos balançam.
Os desconhecidos se saúdam
profundamente até o limite da petrificação.
Aspirando a um retorno de
outros climas em que a vegetação se acende e o desejo faz ferver sua surda potência
até consumir-se a si mesmo sem chamas, sem cinzas.
Voracidade do hálito ao atravessar
impávido o fosso que a tudo separa.
Estamos no limite do diálogo
refugiados nos portais onde um sol sem esperança renuncia a iluminar a amarga quietude.
Moendeiros da moleza suportando incrédulos a consagração da inocência.
Estamos no limite do diálogo,
ali onde se alcança o coração do conhecimento. Assim se logra arrebatar sua mercadoria
dos traficantes do mistério e da solidão, assim se afugenta os mercadores do silêncio.
OS PERIGOS DA DANÇA
[…]
Uma chuva de formas nascentes
restabelece o mundo dos objetos
tuas mãos chamam em vão para o coração das coisas
tuas mãos ávidas do dinheiro que compra a pureza
Tuas mãos ávidas do dinheiro que compra a beleza
hoje recolhem apenas o martírio do ar, a névoa das respirações
conserva no oco das mãos
o tempo de teu cansaço
Quando os olhares se consomem
quando se recolhem as coisas familiares em seu vazio e sua sombra
neste limite da terra onde as horas não passam
a espera
como um grande vento gelado te despoja.
3. Enrique Molina,
Vicente Huidobro, Dolfi Trost
Por uma editora
alternativa, a Sol Negro de Márcio Simões. Edições artesanais, numeradas. Podem
ser adquiridos em solnegroeditora.blogspot.com.br
O surrealista
Enrique Molina é um dos meus prediletos. Representa a grande poesia argentina do
século 20, junto com a alucinante Alejandra Pizarnik (quando teremos uma boa edição
brasileira dela?), Aldo Pellegrini, Julio Llinás, Francisco Madariaga e Oliverio
Girondo. Impressiona-me seu fluxo de imagens, do qual transcrevo a seguir um exemplo,
“Mercado”, um dos poemas deste Costumes
Errantes ou A Redondeza da Terra, traduzido por Floriano Martins, que
organizou e prefaciou.
Vicente Huidobro
é enorme. Sua obra não se resume a Altazor,
paráfrase do hermetismo e um dos grandes livros de poesia do século 20. Tremor do céu é prosa poética
“caminhando sobre o fogo das idéias e conceitos”, como observa Floriano Martins,
que prefacia e traduz. Abre com um dos manifestos do criacionismo, “A poesia”, sobre
a significação mágica da linguagem, “a única que nos interessa.” Huidobro completa
o grande trio de vanguardistas hispano-americanos, com o também chileno Pablo Neruda
e o peruano Cesar Vallejo (completa? inicia, penso). Há chilenos que não partilham
essa opinião: acham-no demasiado europeu (viveu na Europa, escreveu parte de sua
obra em francês). Quero ler uma biografia de Huidobro. Que aventureiro paranoico.
Comunista roxo, reivindicou títulos de nobreza; esteve nos fronts da guerra civil
espanhola e da segunda guerra mundial; foi sequestrado e espancado; protagonizou
um duelo; polemizou com meio mundo, Neruda, Reverdy, surrealistas, disparando acusações
de plágio. Poeta-personagem, intenso.
Uma excelente
surpresa, o surrealista romeno Dolfi Trost. Não conhecia. Imagens fosforescentes foi preparado
por Alcebiades Diniz Miguel, um especialista no assunto achado por Márcio Simões.
Traduz, contextualiza, informa sobre o autor desta narrativa onírica, característica
de um leitor de Raymond Roussel. Alcebiades também trata do surrealismo romeno de
Gherasim Luca, Paulo Paün, Gelli Naum e Virgil Teodorescu. Edição que soma informação
à fruição poética.
Macio Simões
é um editor que não descansa. Envia também o volumoso e original )poemaIrio( de
Eli de Araújo, reunião de cinco de seus livros. A ser comentado.
Antes de mostrar
um dos poemas de Enrique Molina, duas palavras sobre o que, eufemisticamente, poderia
ser chamado de “mercado editorial” no Brasil, neste momento. Isto, postei no Facebook:
Soube de livraria – grande rede – ameaçando
incinerar livros (bons) se editor não pagasse o custo da remessa de volta da consignação.
Aqui, alguns – muitos? – encaram doação como concorrência e não como estímulo e
formação de novos leitores. Por essa e outras que alguns editores só operam por
venda pelo próprio site.
E isto, já havia
postado aqui, neste blog, junto com a chamada para o lançamento do meu A verdadeira história do século 20:
… recentemente, ao dar palestra fora de São Paulo
sobre Geração Beat, nenhum dos meus livros a respeito estava disponível em livrarias
locais. Isso, pelo simples e raso motivo de que essas livrarias locais deviam acertos
de consignações para minha editora, impossibilitando colocar novos exemplares. Então,
PARA MIM CHEGA.
Aos alternativos,
portanto. Através dos quais sai o que já recomendei a editores, sem resultado –
a importante coletânea de Gregory Corso por Márcio Simões, agora publicada pela
Nephelibata, ou Liberdade ou o amor!
de Robert Desnos, traduzido por Eclair Antonio Almeida Filho e Odulia Capelo, idem
pela Nephelibata, ou nada menos que Connaissance
par les gouffres de Henri Michaux, sem que ninguém se tocasse… Etc.
ENRIQUE MOLINA
MERCADO
Música das colinas áridas
Em cujo som o vento permuta
Pedras por resinas de prata
Areia por legumes cálidos
Solidão por grãos ansiosos
Mantas por borboletas de asas ardentes como a cobiça
Tesouros errantes postos ao acaso da festa
Cujos chapéus de fogo protegem da sombra
Nos pátios abertos como a ferida eterna do desconhecido
Oculta por cabeças de leão e espelhos que lampejam
No sangue das estações
Oh estes grandes fogaréus sólidos plantados sobre
pedras!
Estas caixas de luxúria estas presas de flancos devorados
pela folhagem do sol!
Estas escadarias de saque!
Estas fúrias nascidas nos mais altos êxodos do ano!
Estes cueiros e avelórios e serpentes e ferros e
cobertores e tinturas e sacos e comidas e cóleras!
Destilando o obscuro veneno da terra
As fórmulas mais puras do desejo
Que tão somente interroga o vagabundo de olhar tristíssimo
Sempre na beira da alma
Sempre molhando com seu sangue instantâneo as fauces
do oráculo
O homem do coração às cegas
Sentindo desabar enquanto passa o poder de um país
decapitado
Cuja enorme cabeça deslumbrante rola a seus pés
Com o negro estrondo da distância
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 111 | Abril de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO
| FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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