A designação “maldito”,
aplicada a artistas, não corresponde a uma censura nem a uma condenação por parte
dos críticos e historiadores. Pelo contrário, mostra que os reverenciamos, que temos
na conta de luminosa a obra que nos deixaram. O artista maldito é quase uma personagem
de tragédia, pelo muito sofrimento e desconcerto que vida e obra revelam, e pelo
valor que nós atribuímos a esses factos. Foi o movimento romântico a criar o conceito.
O romantismo pôs em cena o poeta maldito para classificar artistas de muito valor
e de vida conturbada. Ao opor-se ao racionalismo clássico, ao valorizar o génio
e a loucura, e com estes a originalidade, o sentimento, a aventura longe das normas
sociais, ao trazer ao palco as lutas interiores do indivíduo com Deus e com o Demónio,
o romantismo também criou a figura do artista maldito.
Não espanta assim
que os românticos tenham classificado como maldito François Villon, poeta do século
XV, cujo poema “Balada dos enforcados” muito impressionou Herberto Helder – pelo
menos duas vezes usou a abertura, no poema “A máquina de emaranhar paisagens” e
no livroServidões. Ladrão, boémio, amante de beber e de andar à pancada,
Villon é considerado um precursor do romantismo. Bocage não anda longe desta imagem,
e a ela acresce a vocação satírica, expressa num poemário de cariz sexual. O que
diz respeito ao sexo é uma das vertentes que acompanham o poeta maldito. A sociedade
ainda hoje reprova o erotismo e a sexualidade, pelo muito que encerram de subversivo,
apesar de remontarem a uma arte muito antiga,
quantas vezes praticada por clérigos e na escultura das catedrais. Diz-se “arte
fescenina”, foi praticada por gente da Igreja nas escolas catedralícias. Estas escolas,
assim chamadas por estarem adstritas às catedrais, vieram a dar origem às universidades.
Em Coimbra ainda se reedita uma obra coletiva, com essas características libertinas,
O palito métrico. Entre os seus autores, contam-se padres. O título alude
à praxe que exigia dos caloiros que medissem a ponte sobre o Mondego com um palito.
A tradição da literatura
fescenina é a que melhor define um dos três malditos que vos trago, Luiz Pacheco,
autor de O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor. Luiz
Pacheco relacionou-se várias vezes com meninas muito jovens e por isso respondeu
perante a Justiça. Uma das suas obras mais importantes, Comunidade, retrata
a vida marginal que levava, com mulher e filhos, e sem meios de os sustentar. Viviam
todos num quarto alugado. Há um pormenor de Comunidade para mim inesquecível,
de tão comovente: como o quarto era muito pequeno, as crianças dormiam nos gavetões
da cómoda.
Voltando aos românticos,
Alfred de Vigny faz dizer a uma personagem de teatro que a raça dos poetas é maldita
pelos poderosos da terra.
O poeta tem o dom
da palavra, mas nem sempre agrada aos poderosos o que os escritores têm para dizer.
Por isso, logo que os ditadores chegam ao poder, uma das suas primeiras medidas
costuma ser a imposição de censura. Na juventude de Luiz Pacheco, Herberto Helder
e Manuel de Castro, em Portugal os livros e jornais passavam pela censura prévia,
porque era proibido falar de certos assuntos, e não era só de política que não se
podia falar: de sexo, também não. Os três escritores eram amigos, os três frequentavam
o Café Gelo, onde se reuniam os surrealistas portugueses. Herberto e Manuel de Castro
chegaram a partilhar a mesma casa por duas vezes. Luiz Pacheco morreu há uns quatro
ou cinco anos, mas Manuel de Castro morreu em 1971, muito jovem. Só Herberto Helder
ainda é vivo. Todos tiveram problemas por causa da censura. Apresentação do rosto,
um dos primeiros livros de Herberto Helder, foi mesmo apreendido pela Polícia.
Na segunda metade
do século XIX, o qualificativo “maldito”
ganhou raízes mais fundas quando Verlaine o usou na sua obra Les poètes
maudits, para classificar poetas como Mallarmé, Rimbaud e outros. A partir daí
o descritivo passa aos movimentos da modernidade, e em Portugal encontramo-lo associado
sobretudo aos surrealistas. Luiz Pacheco, por exemplo, aplica-o a si mesmo, em Textos malditos.
Então o que caracteriza
a expressão “maldito”? A maldição diz-se daqueles a quem grandes desgraças acontecem,
como se os deuses os tivessem abandonado ou estivessem castigando. Em parte assim
é, ninguém busca deliberadamente para si a infelicidade. Porém, encontramos muitas
vezes uma opção de vida tão fora do comum que leva a que se considere maldito o
autor. Essa opção é em geral a mesma por parte de todos os artistas, diz respeito
à rejeição do modo de vida habitual dos cidadãos. O artista foge à vulgaridade,
sobretudo quando a vulgaridade decorre de sistemas de ideias opressivos, limitadores
da liberdade. Então entram num ciclo de ruptura com as instituições, a começar pela
família, que os refreia. Nenhuma família normal quer para os filhos o destino de
poeta, sabendo que isso pode trazer fama, mas com mais certeza trará pobreza e infelicidade.
A sociedade levanta obstáculos ao artista, por isso os artistas rejeitam a sociedade,
a família, a moral e o sistema político. Rejeitam tudo, incluída a arte que esse
sistema apadrinha ou promove, pois, para ser aceite pelos poderosos, tem de calar
a boca.
A arte conforme
os modelos em vigor é em geral a oriunda das instituições - academias e universidades.
Daí que a grande confrontação se estabeleça normalmente entre académicos e não-académicos.
Os malditos estão do lado dos contestatários. Um dos mais famosos libelos contra
os académicos, em Portugal, foi o Manifesto anti-Dantas. O autor, Almada
Negreiros, declamou o poema subindo para cima de uma mesa do café “A Brasileira”,
no Chiado – foi um escândalo. Júlio Dantas, um escritor tão bem comportado que era
presidente da Academia das Ciências de Lisboa, tornou-se o símbolo do academismo,
apesar de ter obras deliciosas, que eu não consideraria académicas, caso de O
amor em Portugal no século XVIII. Toda a gente conhece a declaração de guerra
“Morra o Dantas, morra, pim!”, que representa aquilo que todos os artistas da modernidade
condenam: o academismo, com a sua sujeição às regras.
A vida à margem
fica sujeita a sanções, a sociedade reprova o que considera imoral. Rimbaud, um
poeta admirável, dos primeiros a quem foi aplicado o epíteto de “maldito”, ia sendo
assassinado a tiro por Verlaine, seu companheiro. Morreu muito jovem, vítima de
cancro, depois de ter trocado a curta vida de poeta pela de traficante de café e
armas.
Herberto Helder
é muito sensível à distinção entre originalidade e academismo, entre revolta e escravidão
às regras. Tão sensível que no seu livro mais recente, Servidões, o anti-academismo
é um tópico repetido. Este poeta está em ruptura com todas as instituições, a começar
pela língua: ele escreve contra as regras da gramática; está em ruptura com a sociedade,
não se mostrando em público; e os seus próprios sentimentos são vigiados, quando
se previne: “acautela a tua dor, não se torne académica”.
Os malditos têm
sempre um drama recuado, vivido na infância, ou que acompanha os seus movimentos
diários. Luiz Pacheco, num artigo sobre Manuel de Castro, fala de um drama de Herberto
Helder, mas não diz qual é. Herberto perdeu a mãe em criança, não sei em que circunstâncias,
e por isso ignoro se o drama será esse. Sei é dos dramas dos artistas amigos deles,
companheiros das tertúlias no Café Gelo, porque Herberto Helder no-los revela num
artigo publicado em Luanda (Notícia, 18 de setembro de 1971) sobre a morte
de Manuel de Castro. Escreve ele: “o Gonçalo Duarte e o António Gancho enlouqueceram,
o João Rodrigues, o Manuel d’ Assumpção e o Pressler suicidaram-se, o Luiz Pacheco
e o Manuel de Castro entram e saem dos hospitais para fazer e desfazer curas de
desintoxicação alcoólica. Agora foi-me dito que, com o Manuel de Castro, já se poderia
contar com um cadáver definitivo”.
A morte precoce,
por suicídio ou outra razão violenta, costuma ensombrar a biografia destes autores,
dando peso à maldição.
Manuel de Castro
só agora está a ser descoberto. É um poeta altíssimo que a bem dizer ninguém conhece
ainda. Em vida, publicou apenas dois livros pequenos, Paralelo W e A estrela
rutilante. Graças a esforços de amigos e admiradores, saiu no final do ano passado
um volume que junta a esses dois livros uma série de poemas publicados dispersamente,
Bonsoir, Madame. O próximo número da revista Ideia, organizado por
António Cândido Franco, é dedicado a Manuel de Castro.
Mais não digo,
a não ser este soneto de Manuel de Castro:
Houve um apelo
ao deus que me conduz
à solidão sem regresso
e sem perdão…
O caminho decidido
até à luz
é meu tema, meu
desastre e meu condão…
Sagrei os olhos
para um novo mundo…
Porém…, porém…,
o fio daquela adaga
que grava a claridade
do mais profundo
de cada um… desfez
a Saga
do coração. Um
dia alguém virá contar
a história do semi-vivo
homem…
Alguém lerá, cintil,
no ar,
a origem do antigo
sofrimento.
E encontrará a
grande mãe,
a Terra. E seu
abraço enorme e lento.
[Manuel de Castro,
Bonsoir, Madame]
Página ilustrada
com obras de Sérgio Bonzón (Argentina,
1959), artista convidado desta edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 109 | Abril de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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os artigos assinados não refletem necessariamente
o pensamento da revista
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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