Pediram-me para contribuir
com uma introdução a esta antologia que, quase quatro décadas depois dos funerais
do jornal, homenageia El Corno Emplumado/The
Plumed Horn. Aqueles de nós que se conheciam na ocasião - nos selvagens e significativos
anos 1960 - começaram a se reconectar. Um dos instigadores desta reconexão é o filme
sobre El Corno que está prestes a aparecer.
Uma jovem e um jovem - com as idades que tínhamos quando editávamos o jornal - interessaram-se
pela história do periódico. Suas entrevistas, suas questões, seus interesses ajudaram
a coçar nossas memórias; e ultimamente nos reuniu.
E assim hoje, quando a doutrina
de agressão preventiva de George W. Bush ameaça aniquilar a vida tal como a conhecemos,
encontrei-me a mim mesma pensando sobre aquele tempo - quando acreditávamos, com
todo o poder de nossa abertura própria à juventude, com nossa energia e naïveté
- que criatividade em rebelião contra a mediocridade e o conformismo poderia verdadeiramente
influenciar a sociedade.
Quando acreditávamos que
a poesia poderia mudar o mundo.
Há muito tempo não acredito
que a poesia possa mudar o mundo, embora poemas possam conter tudo que precisamos
saber a fim de mudá-lo. Um poema pode mudar uma pessoa. E leva as pessoas, nutridas
por tal poesia, a mudar o mundo. Nisso repousa o poder transformador da arte.
Um mês ou quase antes que
os Estados Unidos invadissem o Iraque, a primeira-dama dos EUA, Laura Bush, convidou
um grupo de poetas à Casa Branca para um simpósio sobre Walt Whitman Emily Dickinson
e Langston Hughes. Quando a administração sentiu no ar que alguns dos poetas convidados
poderiam ler poemas contra a iminente guerra da administração, ela cancelou o encontro.
Embora os três poetas que este simpósio apresentou fossem todos poetas da heterodoxia
(também, em todos os três casos, homossexuais), seus herdeiros foram claramente
julgados muito perigosos, um obstáculo aos poderes que venham a existir.
É claro, como todos os atos
repressivos, o cancelamento deste simpósio acendeu a faísca de uma imediata e vibrante
resposta da parte de poetas por todo o país. Dúzias e depois milhares enviaram poemas
de protesto pelo espaço cibernético. Web sites disponibilizam centenas deles. Leituras
aconteceram em toda parte. Antologias entraram em produção. Durante a guerra dos
EUA no Vietnã, levaram-se vários anos para se construir o “Angry Arts”, o movimento
de protesto dos artistas do período. Com computadores e a internet, poucos dias
são tudo de que precisamos para partilhar nossa rebelião criativa. Se a poesia sozinha
não pode mudar nosso massacrado mundo, ela tem claramente um papel a desempenhar.
Mas eu quero voltar àquele
tempo remoto, quando jovens poetas na Cidade do México, Buenos Aires, Caracas, Manágua,
Havana, Santiago de Chile, Kyoto, Helsinki, Nova Deli, Nova Iorque, Paris e em tantos
outros centros culturais, acreditavam que nossas palavras e nossa comunidade poderiam
transformar o que percebíamos como valores estagnantes e atitudes conformistas numa
vida de que precisávamos desesperadamente. Revisitando esse tempo, minha memória
está precisa em relação a muito do que sonhamos e fizemos, vaga em relação a alguns
dos detalhes. Mas eu me lembro vividamente de nossa excitação e senso de possibilidade;
eles abarcam-me agora tal como outrora.
Aqueles de nós dos Estados
Unidos foram formados pela repressão mccarthista nos anos 1950. Ela resfriou as
pessoas criativas, especialmente. Os escritores e artistas que estavam ganhando
reconhecimento, vencendo os prêmios e se estabelecendo na segurança dos empregos
acadêmicos, foram aqueles cuja obra evitava “desordem política”, eram limpos e sem
espírito e seguros. Nossos irmãos e irmãs da América Latina estavam mais em contato
com as decisões políticas e sociais que afetavam as suas vidas; seus poemas eram
testamentos para essa consciência e esse engajamento. Por todo o mundo pessoas pareciam
estar lutando contra um tipo de asfixia mutiladora. A ideia de que um poema político
era, por definição, um poema ruim, era uma premissa absolutamente falsa. Independência
da parte da autoridades das “escolas” respeitáveis era um pré-requisito para nossa
liberdade.
Criamos nossos próprios movimentos
- com paixão. La nueva solidaridad, lançada por Miguel Grinberg, foi um destes.
Sergio Mondragón e eu, fundadores e co-editores do quinzenal bilíngue mexicano El Corno Emplumado/The Plumed Horn, estávamos
no centro deste sonho. Como estava Grinberg e seu Eco Contemporáneo, Thelma Nava e seu Pájaro Cascabel, o grupo Techo de Ll Ballena em Caracas, os Nadaistas
na Colômbia, Ulises Estrella e os Tzantzicos no Equador, poetas e artistas cubanos
vivendo os primeiros gloriosos anos de sua inusitada nova revolução, e tantos outros.
Jornais independentes, grupos de teatro, publicações de riscos e galerias promoviam
fóruns para nossos esforços. Uma laboriosa rede de trabalho de comunicação lenta
por correio e visitas realizada com êxito via planos do tipo “viaje agora, pague
mais tarde” nos ajudou a construir uma comunidade de longo alcance.
Quando eu invoco aquele esplêndido
senso de comunidade, as imagens que me vêm mais poderosamente à mente são aquelas
do Primer Encuentro de Poetas que nós organizamos na Cidade do México em fevereiro
de 1962. Nós anunciamos nossa reunião, e a chegada de dúzias de poetas ofuscou os
encontros de psiquiatras e oncologistas que se realizavam ao mesmo tempo. Poetas
locais hospedavam os visitantes - em sofás-camas e no chão. Leituras em grupo no
parque Chapultepec e no Clube da Imprensa Nacional duravam horas, até mesmo dias.
Era onde muitos de nós nos encontramos pessoalmente pela primeira vez. Precisávamos
uns dos outros.
O que queríamos? Liberdade,
por uma coisa. Liberdade da parte das estruturas oficiais de controle e repressão.
Alguns de nós chamávamos esta liberdade de liberação ou socialismo nacional. Outros
gravitaram para espiritualidades mais pessoais. Aqueles de nós que se identificavam
com la nueva solidaridad sustentavam uma pluralidade de ideias criativas;
estávamos em ressonância com: a dor explosiva de Allen Ginsberg, a sensibilidade
monástica de Ernesto Cardenal, o surrealismo evocativo de Raquel Jodorowsky, o humor
revolucionário de Roque Dalton, os poemas visuais “concretos” de nossos irmãos brasileiros,
e os anseios sociais de nossos irmãos e irmãs de Cuba.
Clamávamos contra a hipocrisia.
Padrões duplos do regime oficial e oportunismo pareciam evidentes para nós. O que
não era ainda tão evidente - estamos falando da década de 1960, depois de tudo -
era o racismo que muitos de nós carregávamos dentro de nós desde o nascimento, a
misogenia e a homofobia tão inerentes a todas as nossas estruturas sociais, ou nosso
pouco caso em relação à terra e ao meio ambiente. Poemas escritos por mulheres formavam
uma distinta minoria nas páginas de nossas publicações; uma consciência feminista
ainda não existia. Poetas pardos ou negros, quando nós os publicávamos, eram ainda
anomalias. Houve o poema ocasional do Movimento dos Direitos Civis dos EUA ou poucas
traduções de um dos numerosos grupos indígenas do continente. Quase nenhum grupo
se identificava ainda como abertamente gay.
Ainda la nueva solidaridad
era certamente um antecedente necessário para nossa ulterior habilidade em identificar
como orgulhosamente Negro ou Índio, conscientemente feminista, desafiadoramente
lésbica ou gay, ecologicamente correto. Como poetas vivendo no ponto central do
século vinte, conduzimos o caminho para nossa exploração do Outro, e nossa vontade
de explorar o Outro em nós mesmos.
La nueva solidaridad também vislumbrou pontes
- entre povos e culturas. Na mistura dos poetas norte-americanos que vieram do sul,
poetas latino-americanos que foram para o norte, e poetas europeus, africanos, asiáticos
e australianos que leram nosso trabalho e partilharam o seu conosco, nós todos aprendemos
muito mais um sobre o outro e sobre nós mesmos. Pensávamos de nós mesmos como pontes,
criativamente funcionávamos como tal, e - com um suporte financeiro e institucional
desprezivelmente limitado - assumimos o papel com grande sucesso. Algumas das traduções
a emergir desses anos têm ainda que ser igualadas. E, para além do próprio trabalho,
o que muitos de nós iríamos fazer com nossas vidas, as viagens nas quais iríamos
embarcar, traçar nossas raízes para aquele tempo mágico e energizado.
Nossas experiências durante
esses anos foram corajosas e profundas. Usávamos alucinógenos e outras drogas; alguns
de nós perdemos nossas mentes para eles. Exploramos uma variedade de relações humanas,
algumas das quais rejeitamos como inaproveitáveis, ao passo que outras se tornaram
modelos para futuras interações humanas. Não tínhamos medo, como se entrássemos
num terreno desconhecido. Aprendemos que nossas histórias eram indispensáveis para
nosso senso de personalidade, e respeitávamos as linguagens nas quais contávamos
essas histórias. Na maioria das vezes, experimentávamos com honestidade: fazendo
nossos valores fixados integrais à maneira como vivíamos.
Anos se passaram, como sempre
passam. Não poderíamos tê-lo predito outrora, mas o mundo é um lugar infinitamente
menos saudável e mais perigoso do que era quando éramos
tão confiantes de que poderíamos consertá-lo, ou, ao menos, melhorá-lo. Para um grau terrificante, pelo menos aqui nos EUA, as forças de terror e ganância têm vencido a batalha contra as consciências humanas. A paz está em perigo como nunca antes. O poder está nas mãos de um pequeno grupo de (na maioria brancos) homens, que engendraram um golpe judicial em um país com preeminência quase não desafiada. O medo conduz uma sociedade cuja arma primária é a violência, uma sociedade que maneja seu enorme poder de modelar outras nações à sua imagem, e manipula a própria linguagem a serviço dessa ganância.
tão confiantes de que poderíamos consertá-lo, ou, ao menos, melhorá-lo. Para um grau terrificante, pelo menos aqui nos EUA, as forças de terror e ganância têm vencido a batalha contra as consciências humanas. A paz está em perigo como nunca antes. O poder está nas mãos de um pequeno grupo de (na maioria brancos) homens, que engendraram um golpe judicial em um país com preeminência quase não desafiada. O medo conduz uma sociedade cuja arma primária é a violência, uma sociedade que maneja seu enorme poder de modelar outras nações à sua imagem, e manipula a própria linguagem a serviço dessa ganância.
Esta manipulação da linguagem
é de particular interesse de poetas. Há muito tempo a Democracia não descreve um
sistema de controle mútuo pelas diversas repartições governamentais, onde visões
opostas são avaliadas e o governo representa seus cidadãos. Hoje, democracia significa
um sistema submisso às necessidades dos EUA. Armas de destruição em massa não têm
relação com as dezenas de milhares de armas armazenadas pelos EUA, mas sim com aquelas
que nosso pseudo presidente declara - contra toda evidência do contrário - serem
possuídas por Estados que ele rotula como “malévolos” ou pertencentes a um “eixo
do mal”. Seres humanos tornam-se “prejuízo colateral”. “Confiança do consumidor”
é o novo temo para gastar o dinheiro que não se tem. O termo “liberal”, uma vez
usado para definir alguém que é menos sólido em suas políticas progressivas, tornou-se
uma palavra suja na América do século XXI. Políticos apenas levemente de centro-esquerda
são acusados de serem liberais. O secretário de Justiça dos EUA, John Ashcroft,
recentemente afirmou que a Declaração de Direitos dos EUA não se refer realmente
a direitos, mas a privilégios. Eu poderia continuar e continuar.
Mas os poetas continuam a
falar. Nós continuamos a viver uma solidariedade que, se já há muito tempo não é
nova, permanece inclusiva, interessada, e acesa com o espírito humano. Não acredito
que seja uma coincidência que por todo o ano passado ou retrasado alguns de nós
daqueles anos tenhamos nos reencontrado. O jovem casal dano-mexicano trabalhando
no filme sobre El Corno Emplumado reuniu
alguns de nós. Sergio Mondragón, Thelma Nava, Leandro Katz, Miguel Grinberg, Ulises
Estrella e Regina Katz estão entre os poetas irmãos e irmãs com quem eu estou emocionada
de estar em contato novamente.
Pago tributo aos rapazes
e moças que éramos nos anos 1960, e com a sabedoria retrospectiva que agora possuímos
para aqueles que carregam a tocha para frente: uma nova geração de pessoas jovens
que estão inventando novos modos de olhar para os desafios que encaramos, que estão
desenvolvendo novos métodos de luta. A paz e a justiça de que tão desesperadamente
precisávamos no ponto central do século passado ainda delas precisamos - e até mesmo
mais desesperadamente. Cúpulas de poder e ganância estão até mesmo mais entrincheiradas
hoje. E o risco inerente em não encontrar soluções viáveis é certamente mais terrificante.
Nos anos de 1960 encaramos
problemas de racismo, classismo, sexismo, homofobia, extinção cultural, guerra,
injustiça e censura. Em 2004 nós encaramos desastre ecológico e a morte da vida
como nós a conhecemos tanto quanto as doenças previamente notadas. Pelo bem de todos
os nossos filhos eu ferventemente espero que os visionários de hoje sejam bem mais
sucedidos que os visionários de minha geração em apontar um caminho para isso.
Edição preparada por Floriano
Martins. Página ilustrada com obras de Arshile Gorky (Armênia, 1904-1948), artista
convidado da presente edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 124 | Dezembro de
2018
editor geral | FLORIANO MARTINS
| floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO
SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO
MARTINS
revisão de textos & difusão
| FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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