sexta-feira, 23 de novembro de 2018

MARGARET RANDALL | El Corno Emplumado


Pediram-me para contribuir com uma introdução a esta antologia que, quase quatro décadas depois dos funerais do jornal, homenageia El Corno Emplumado/The Plumed Horn. Aqueles de nós que se conheciam na ocasião - nos selvagens e significativos anos 1960 - começaram a se reconectar. Um dos instigadores desta reconexão é o filme sobre El Corno que está prestes a aparecer. Uma jovem e um jovem - com as idades que tínhamos quando editávamos o jornal - interessaram-se pela história do periódico. Suas entrevistas, suas questões, seus interesses ajudaram a coçar nossas memórias; e ultimamente nos reuniu.
E assim hoje, quando a doutrina de agressão preventiva de George W. Bush ameaça aniquilar a vida tal como a conhecemos, encontrei-me a mim mesma pensando sobre aquele tempo - quando acreditávamos, com todo o poder de nossa abertura própria à juventude, com nossa energia e naïveté - que criatividade em rebelião contra a mediocridade e o conformismo poderia verdadeiramente influenciar a sociedade.
Quando acreditávamos que a poesia poderia mudar o mundo.
Há muito tempo não acredito que a poesia possa mudar o mundo, embora poemas possam conter tudo que precisamos saber a fim de mudá-lo. Um poema pode mudar uma pessoa. E leva as pessoas, nutridas por tal poesia, a mudar o mundo. Nisso repousa o poder transformador da arte.
Um mês ou quase antes que os Estados Unidos invadissem o Iraque, a primeira-dama dos EUA, Laura Bush, convidou um grupo de poetas à Casa Branca para um simpósio sobre Walt Whitman Emily Dickinson e Langston Hughes. Quando a administração sentiu no ar que alguns dos poetas convidados poderiam ler poemas contra a iminente guerra da administração, ela cancelou o encontro. Embora os três poetas que este simpósio apresentou fossem todos poetas da heterodoxia (também, em todos os três casos, homossexuais), seus herdeiros foram claramente julgados muito perigosos, um obstáculo aos poderes que venham a existir.
É claro, como todos os atos repressivos, o cancelamento deste simpósio acendeu a faísca de uma imediata e vibrante resposta da parte de poetas por todo o país. Dúzias e depois milhares enviaram poemas de protesto pelo espaço cibernético. Web sites disponibilizam centenas deles. Leituras aconteceram em toda parte. Antologias entraram em produção. Durante a guerra dos EUA no Vietnã, levaram-se vários anos para se construir o “Angry Arts”, o movimento de protesto dos artistas do período. Com computadores e a internet, poucos dias são tudo de que precisamos para partilhar nossa rebelião criativa. Se a poesia sozinha não pode mudar nosso massacrado mundo, ela tem claramente um papel a desempenhar.
Mas eu quero voltar àquele tempo remoto, quando jovens poetas na Cidade do México, Buenos Aires, Caracas, Manágua, Havana, Santiago de Chile, Kyoto, Helsinki, Nova Deli, Nova Iorque, Paris e em tantos outros centros culturais, acreditavam que nossas palavras e nossa comunidade poderiam transformar o que percebíamos como valores estagnantes e atitudes conformistas numa vida de que precisávamos desesperadamente. Revisitando esse tempo, minha memória está precisa em relação a muito do que sonhamos e fizemos, vaga em relação a alguns dos detalhes. Mas eu me lembro vividamente de nossa excitação e senso de possibilidade; eles abarcam-me agora tal como outrora.
Aqueles de nós dos Estados Unidos foram formados pela repressão mccarthista nos anos 1950. Ela resfriou as pessoas criativas, especialmente. Os escritores e artistas que estavam ganhando reconhecimento, vencendo os prêmios e se estabelecendo na segurança dos empregos acadêmicos, foram aqueles cuja obra evitava “desordem política”, eram limpos e sem espírito e seguros. Nossos irmãos e irmãs da América Latina estavam mais em contato com as decisões políticas e sociais que afetavam as suas vidas; seus poemas eram testamentos para essa consciência e esse engajamento. Por todo o mundo pessoas pareciam estar lutando contra um tipo de asfixia mutiladora. A ideia de que um poema político era, por definição, um poema ruim, era uma premissa absolutamente falsa. Independência da parte da autoridades das “escolas” respeitáveis era um pré-requisito para nossa liberdade.
Criamos nossos próprios movimentos - com paixão. La nueva solidaridad, lançada por Miguel Grinberg, foi um destes. Sergio Mondragón e eu, fundadores e co-editores do quinzenal bilíngue mexicano El Corno Emplumado/The Plumed Horn, estávamos no centro deste sonho. Como estava Grinberg e seu Eco Contemporáneo, Thelma Nava e seu Pájaro Cascabel, o grupo Techo de Ll Ballena em Caracas, os Nadaistas na Colômbia, Ulises Estrella e os Tzantzicos no Equador, poetas e artistas cubanos vivendo os primeiros gloriosos anos de sua inusitada nova revolução, e tantos outros. Jornais independentes, grupos de teatro, publicações de riscos e galerias promoviam fóruns para nossos esforços. Uma laboriosa rede de trabalho de comunicação lenta por correio e visitas realizada com êxito via planos do tipo “viaje agora, pague mais tarde” nos ajudou a construir uma comunidade de longo alcance.
Quando eu invoco aquele esplêndido senso de comunidade, as imagens que me vêm mais poderosamente à mente são aquelas do Primer Encuentro de Poetas que nós organizamos na Cidade do México em fevereiro de 1962. Nós anunciamos nossa reunião, e a chegada de dúzias de poetas ofuscou os encontros de psiquiatras e oncologistas que se realizavam ao mesmo tempo. Poetas locais hospedavam os visitantes - em sofás-camas e no chão. Leituras em grupo no parque Chapultepec e no Clube da Imprensa Nacional duravam horas, até mesmo dias. Era onde muitos de nós nos encontramos pessoalmente pela primeira vez. Precisávamos uns dos outros.
O que queríamos? Liberdade, por uma coisa. Liberdade da parte das estruturas oficiais de controle e repressão. Alguns de nós chamávamos esta liberdade de liberação ou socialismo nacional. Outros gravitaram para espiritualidades mais pessoais. Aqueles de nós que se identificavam com la nueva solidaridad sustentavam uma pluralidade de ideias criativas; estávamos em ressonância com: a dor explosiva de Allen Ginsberg, a sensibilidade monástica de Ernesto Cardenal, o surrealismo evocativo de Raquel Jodorowsky, o humor revolucionário de Roque Dalton, os poemas visuais “concretos” de nossos irmãos brasileiros, e os anseios sociais de nossos irmãos e irmãs de Cuba.
Clamávamos contra a hipocrisia. Padrões duplos do regime oficial e oportunismo pareciam evidentes para nós. O que não era ainda tão evidente - estamos falando da década de 1960, depois de tudo - era o racismo que muitos de nós carregávamos dentro de nós desde o nascimento, a misogenia e a homofobia tão inerentes a todas as nossas estruturas sociais, ou nosso pouco caso em relação à terra e ao meio ambiente. Poemas escritos por mulheres formavam uma distinta minoria nas páginas de nossas publicações; uma consciência feminista ainda não existia. Poetas pardos ou negros, quando nós os publicávamos, eram ainda anomalias. Houve o poema ocasional do Movimento dos Direitos Civis dos EUA ou poucas traduções de um dos numerosos grupos indígenas do continente. Quase nenhum grupo se identificava ainda como abertamente gay.
Ainda la nueva solidaridad era certamente um antecedente necessário para nossa ulterior habilidade em identificar como orgulhosamente Negro ou Índio, conscientemente feminista, desafiadoramente lésbica ou gay, ecologicamente correto. Como poetas vivendo no ponto central do século vinte, conduzimos o caminho para nossa exploração do Outro, e nossa vontade de explorar o Outro em nós mesmos.
La nueva solidaridad também vislumbrou pontes - entre povos e culturas. Na mistura dos poetas norte-americanos que vieram do sul, poetas latino-americanos que foram para o norte, e poetas europeus, africanos, asiáticos e australianos que leram nosso trabalho e partilharam o seu conosco, nós todos aprendemos muito mais um sobre o outro e sobre nós mesmos. Pensávamos de nós mesmos como pontes, criativamente funcionávamos como tal, e - com um suporte financeiro e institucional desprezivelmente limitado - assumimos o papel com grande sucesso. Algumas das traduções a emergir desses anos têm ainda que ser igualadas. E, para além do próprio trabalho, o que muitos de nós iríamos fazer com nossas vidas, as viagens nas quais iríamos embarcar, traçar nossas raízes para aquele tempo mágico e energizado.
Nossas experiências durante esses anos foram corajosas e profundas. Usávamos alucinógenos e outras drogas; alguns de nós perdemos nossas mentes para eles. Exploramos uma variedade de relações humanas, algumas das quais rejeitamos como inaproveitáveis, ao passo que outras se tornaram modelos para futuras interações humanas. Não tínhamos medo, como se entrássemos num terreno desconhecido. Aprendemos que nossas histórias eram indispensáveis para nosso senso de personalidade, e respeitávamos as linguagens nas quais contávamos essas histórias. Na maioria das vezes, experimentávamos com honestidade: fazendo nossos valores fixados integrais à maneira como vivíamos.
Anos se passaram, como sempre passam. Não poderíamos tê-lo predito outrora, mas o mundo é um lugar infinitamente menos saudável e mais perigoso do que era quando éramos
tão confiantes de que poderíamos consertá-lo, ou, ao menos, melhorá-lo. Para um grau terrificante, pelo menos aqui nos EUA, as forças de terror e ganância têm vencido a batalha contra as consciências humanas. A paz está em perigo como nunca antes. O poder está nas mãos de um pequeno grupo de (na maioria brancos) homens, que engendraram um golpe judicial em um país com preeminência quase não desafiada. O medo conduz uma sociedade cuja arma primária é a violência, uma sociedade que maneja seu enorme poder de modelar outras nações à sua imagem, e manipula a própria linguagem a serviço dessa ganância.
Esta manipulação da linguagem é de particular interesse de poetas. Há muito tempo a Democracia não descreve um sistema de controle mútuo pelas diversas repartições governamentais, onde visões opostas são avaliadas e o governo representa seus cidadãos. Hoje, democracia significa um sistema submisso às necessidades dos EUA. Armas de destruição em massa não têm relação com as dezenas de milhares de armas armazenadas pelos EUA, mas sim com aquelas que nosso pseudo presidente declara - contra toda evidência do contrário - serem possuídas por Estados que ele rotula como “malévolos” ou pertencentes a um “eixo do mal”. Seres humanos tornam-se “prejuízo colateral”. “Confiança do consumidor” é o novo temo para gastar o dinheiro que não se tem. O termo “liberal”, uma vez usado para definir alguém que é menos sólido em suas políticas progressivas, tornou-se uma palavra suja na América do século XXI. Políticos apenas levemente de centro-esquerda são acusados de serem liberais. O secretário de Justiça dos EUA, John Ashcroft, recentemente afirmou que a Declaração de Direitos dos EUA não se refer realmente a direitos, mas a privilégios. Eu poderia continuar e continuar.
Mas os poetas continuam a falar. Nós continuamos a viver uma solidariedade que, se já há muito tempo não é nova, permanece inclusiva, interessada, e acesa com o espírito humano. Não acredito que seja uma coincidência que por todo o ano passado ou retrasado alguns de nós daqueles anos tenhamos nos reencontrado. O jovem casal dano-mexicano trabalhando no filme sobre El Corno Emplumado reuniu alguns de nós. Sergio Mondragón, Thelma Nava, Leandro Katz, Miguel Grinberg, Ulises Estrella e Regina Katz estão entre os poetas irmãos e irmãs com quem eu estou emocionada de estar em contato novamente.
Pago tributo aos rapazes e moças que éramos nos anos 1960, e com a sabedoria retrospectiva que agora possuímos para aqueles que carregam a tocha para frente: uma nova geração de pessoas jovens que estão inventando novos modos de olhar para os desafios que encaramos, que estão desenvolvendo novos métodos de luta. A paz e a justiça de que tão desesperadamente precisávamos no ponto central do século passado ainda delas precisamos - e até mesmo mais desesperadamente. Cúpulas de poder e ganância estão até mesmo mais entrincheiradas hoje. E o risco inerente em não encontrar soluções viáveis é certamente mais terrificante.
Nos anos de 1960 encaramos problemas de racismo, classismo, sexismo, homofobia, extinção cultural, guerra, injustiça e censura. Em 2004 nós encaramos desastre ecológico e a morte da vida como nós a conhecemos tanto quanto as doenças previamente notadas. Pelo bem de todos os nossos filhos eu ferventemente espero que os visionários de hoje sejam bem mais sucedidos que os visionários de minha geração em apontar um caminho para isso.


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Edição preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arshile Gorky (Armênia, 1904-1948), artista convidado da presente edição.


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Agulha Revista de Cultura
Número 124 | Dezembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES




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