[
DEZ POEMAS ]
A CORTESÃ DO
INFINITO TRANSPARENTE
sem
pactos
sem
interferências
sem
mais profecias a revelar
leio
meu amor em um tratado de psiquiatria
e
o enalteço: patologia dos espelhos
com
caneta furta-cor
o
meu pudor rancoroso tem sumo
uma
sedutora semente de romã
mastigada
durante seis meses
em
que me vi no centro
da
voltagem infernal
de
um fetiche impiedoso
glória
que abandono, mesmerizada
no
rio de enguias e estrelas
(dervixes
ao redor da redoma partida)
o
olfato sangra o fascínio de hades
mas
é tempo de voltar ao território
oco
e puro
com
a inocência perdida de perséfone
arquivada
em pintura surreal
é
tempo da alta médica
para
cantar a terra próspera
repleta
e desmemoriada de reflexo
solar
eternamente
lapidada
pela
insígnia sideral
de
vênus e plutão
apenas
o desejo do rapto
com
anticorpos
para
o raptor
uma
noite, completamente branca
(dentro
da redoma partida)
COMMEDIA DELL'ARTE
Interpretando a própria cruz, ao abrir os braços.
Indelével para a correnteza dos palcos temporários. Os dedos recepcionam o éter
e são ramificações elétricas projetadas no teatro dos séculos. Há o crepitar faiscante
das reproduções captadas, logo esvaídas pela ardência trágica. Os olhos assistem
o desfile sonâmbulo dos obituários poéticos. Tentando achar a vida perdida da vida,
na tormenta das têmperas. Um ícone doloroso caricaturado no coração, maquiado pela
aberração cromática das imagens. A face fantasma, estrela extinta, persiste na emissão
de raios luminosos impregnando a memória escura. Cômico o sofrimento encenado, de
punctum repetitivo: a espera deste gêmeo vitruviano, que percorre os milênios com
voo estático, aprisionado no retrato dos simbolistas. Como um abraço mímico.
ANDRÓGINO REBELDE
DAS ESCADAS PERDIDAS
abandono
meu umbigo de boom samaritano
e
filho pródigo retorno ao centro
das
galáxias
muito
além de mim
gautama
gautama
e
um pulsar açafrão
ascendo
por este vértice de âmnion solar
as
mitologias
escadas
em caracol
os
deuses
escadas
em caracol
os
demônios tem cachos de escadas em caracol
bacos
de caravaggio
ascendo
nevrálgico
a
escada
encaracolerizando
a
burka invisível que enforca a alma
recorto-a
em tiras finas
em
cósmico artesanato
de
musashi
que
me vinha em sonhos
como
as cerejas marroquinas
nas
taças de uma taberna interditada
no
fim da terra
inacabada
com
cetim e tule violeta
ardendo
enxofre e alfazema
bebo
o despacho das queimadas galegas
a
savana é meu ataúde
minha
quarentena
subo
os degraus
com
a laringe em chamas
com
a lentidão falsificada
meus
pés de coelho
depois,
o sono dos justos
e
o fígado refeito
híbrido
andrógino
andrógino
mágico
ATRAVÉS DO
TEU OLHO DE IGUANA
por minuto àquele que a eternidade se enrosca gêmula
molda-se carnívora translúcida a máscara na face inerte caem nos sulcos cerram as
pestanas revestem as saliências faciais as argamassas delicadas tortuosas de espirais
do mar maquiagem nacarada da máscara de K. finca-se na feição esta película de alma
d`agua a visão de dentro desta derme pirateada é corsária e ali se domam revelações
de dobras calcárias dão-se voltas e mais voltas pela ótica totalmente nova de tanta
maresia colada na retina dos antiquários salões de penduricalhos sagrados ânforas
balbuciam a vida que nelas dorme quando foram urnas plasma-se na tessitura do balaústre
a espinha dorsal de um ente mumificado atrás do sol heliotrópio tudo que se pensa
girando espículas no imenso escuro da grande muralha de corais jardins suspensos:
pronuncia o hieróglifo da concha que a nuvem turva faz verter do céu austral depois
desfilam botânicas de todas as espécies muitos peixes, esqueletos e barbatanas cadavre
exquis oriental pedaços recortados ao acaso uns textos apócrifos uns receituários
ornamentais collage pelo fino papel de arroz marinho que é a máscara debaixo da
máscara sendo aquela que tudo lê na entranha da abandonada residência escavada na
orla de uma pequena vila de carcaça e sal
MANUSCRITOS
DO DILÚVIO AO MAR NEGRO
Original? Jamais esta palavra cadavérica ostentaria
meu brasão. Apenas um pecado geológico assustado timbraria a assinatura que escapa
da ostentação das nomenclaturas. Sim, a uma cratera de címbalos no adjetivo da corça
cederia o eu oblongo, como um lençol de água obediente. Este, o cílio correndo de
vento sem a contaminação das cores. Nem igitur, nem ignição. Percebes? A meia-noite
é uma cópia obscena do helesponto. Lembra-te que no mar desta falésia deitada pelo
ciclone, dorme uma moça descuidada, com cabelos de lã tingida. Pura mitologia. Dizem
que o abalone refaz seus dias de carneiro montanhês. Prefiro os sátiros rolando
de rir pelo capim. Pata de bode. Bruxaria? Jamais esta palavra corpulenta assoviaria
a lua que regurgito, marinha até não mais naufragar. Mas se quiser, contaria a gênese
do sobressalto. Posso enfim dizer, sem originalidade, já que os mapas são assombrações
vertiginosas da memória aquática. Não há mistério, nem hermetismo, apesar das clavículas
suspensas no jardim dos ossos (flutuantes). Respira (com o diafragma nos cnidários):
há o cão mastigando um coração triplo de polvo na metamorfose de narciso (no canto
inferior direito). Seu esqueleto de formiga na costela deteriorada do cérbero expande
como uma pústula. Tão evidente como um edema irreversível. Se não vês, não me tome
pelo plágio obscuro dos pincéis cerrados sob tua pestana de centopeia densa. Catalepsia
de salamandra: porém. Podes conceder-me o oriente de tuas percepções? Ficaria gratificada.
O absoluto é extenso como um fêmur de dragão dopado na corrida espacial. Sejamos
interlocutores destes panfletos animados. A copista de fósseis imaginários também
agradece. Quando chover, pensa na genética das arcas e suas amplas galerias. Estarei
pensando em ti, como um xerox de maremoto.
a causa das lesões que induzo em minhas personagens
ficcionais é a constante presença do órfão azul entre elas. celeste e necrosado.
tento despertá-lo com a luz centralizada do holofote psíquico. tento reproduzi-lo,
mártir de beatas, como ditam os zodíacos. prefiro desta forma. ele tem o perfume
do álcool de cereais e quando se doa em autocombustão produz uma chama maníaca sobre
geleiras. embriagado de orfandade solar. meu coração real tem um pai e uma mãe,
portanto meus passos físicos sempre apontaram para uma estrela de norte possível,
embora cambaleante, já que os deixei para seguir meus próprios caminhos. mas meu
órfão azul, antracito, foi abandonado pelo cosmos, expulso de todo paraíso, caído
e usurpado. menina gritando o eco de um poço. menino calado na neblina de um sótão.
andrógino rebelde das chaves perdidas. núcleo mágico. minhas palavras-orações são
partículas eletrificadas ao redor de sua aura-carapaça. gravitam seu corpo-orfanato.
assim me embalo, imaginário. até que nossos corações não pesem mais que uma pena
de tinteiro, e se encontrem no lar de papel, seguro e volátil.
TESTAMENTO
DO FOGO
cláusula um: os livros queimados emergirão na memória
de quem os leu.
...
crianças adormecem na ficção que a mãe os entrega.
quando a noite é um barco criando raízes.
quando amanhece, o ciclorama de quem ouviu uma história
de deserto, para adormecer cheio de luz na escuridão dos leitos, estoura pelos cílios
despertos.
fui a mãe de um órfão azul
na gestação da tempestade
e o nutri com capítulos de piras funerárias
(o que restava de meus dias exorcizados)
seu corpo celeste tenta nascer.
preciso de seu leite pelas escamas.
pois foi de meu sangue desidratado a constituição
de sua musculatura carbonizada: os nervos de crânios derretendo sob a luz matinal,
pela carcaça dos corvos.
meu corpo noturno precisa da via láctea.
…
o bebê dragão que me ouvia
espalha a silhueta de cactos altivos
na paisagem dos espantalhos
a respiração ofegante dos répteis intercala seu diálogo
contestador
a caravela enraizada está cheia de orvalho
onde as aves de fogo bebem
para manter a crosta das dunas
em perpétuo movimento
se este deserto crescer demais
não serão precisos mapas
e alucinações encobrirão a sede
tudo sucumbirá, sem a água milagrosa
degustada
e os livros que foram queimados precisam emergir
na memória de quem os leu.
LOUVA-VERBO
A louva-verbo
no embrião da linguagem. Um caramujo, um musaranho, muralha ruída na família tipográfica
da soricomorpha. Qualquer escaramuça letrada. Um verso com escorbuto na mandíbula
da mantis, em pose circense para o palco sem substantivos econômicos. Algumas luzes
estratosféricas na laqueadura dos advérbios mais abjetos. Nenhuma objeção, nenhum
adversário. Nem o marfim agonizando no lábio leporino da savana, nem a fisionomia
apática das amebas. Dizem que a revolução é coloquial, para angariar resultados
sociais eficientes. Não acredito. A democracia é apenas utópica distração, cheia
de palavras disfarçadas em urnas. Entre eleições e eloquentes promessas, voto nos
sarcófagos suturados.
CORVO DA
PAPISA
Corvo da papisa, volte para nossa casa quente. Dentro de seus olhos
frios há uma semente que não nos esquece a morada na borda afiada dos dentes de
leão. Força, escuridão de pequena criatura. Que sua mandíbula de quimera vocalize
em vento barulhento o endereço do solo fértil sob nossos silos e selos, sempre abarrotados
de ninhos e versículos. Húmus e hastes do esqueleto da noite são nossos caminhos
fáceis de decorar. Corvo da papisa, retorne em guizo e gôndola, rastreando a terra
e o mar com suas asas de braseiro. Enquanto a cortina da madrugada desce sobre as
ossadas, recito nosso nome de treva e trevo até amanhecer teu corpo rezado em missa
de trigo e rubi.
MIRANTE,
MAGRITTE
Meu grito não ostenta som qualquer quando homens sem asas inventam
aparatos para o movimento excêntrico de sua existência. Cavalos, bicicletas, redes.
Eu, replicante petit poá na pátina perfurada da mata, tenho sapatos gastos que só
me fazem escorregar na pele lisa do planeta. Quando os levito, suspensório de floresta,
circula-me uma linfa celeste, que sei não me pertencer. Deixo pegadas perseguindo
pontes em poesias de passeatas. E lá, em algum silêncio bruto de sílabas universais,
alguma alma errante lerá: arabesco fragilizado, rasante de corpo instantâneo na
ordem do caos.
[
TRÊS PERGUNTAS ]
FM
| Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela
faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
ACG | Vivo entre o trabalho em ambiente hospitalar, as atividades
culturais dos coletivos que acompanho e a rotina caseira. Em qualquer estado - ofício,
rua e casa - estou à procura de analogias, pescando sinestesias, rabiscando-as em
bloco de notas (físico ou mental). Guardo as correspondências para depois criar
outros corpos em formato de letras. Cultivar esta busca por ocorrências inusitadas
na rotina me fortalece a sensação de maravilhamento, mesmo em situações opressivas.
Os rigores da rotina nos amputam a espontaneidade do biorritmo. As rajadas de regras
nos amputam a fluidez psíquica interior. Para curar-me da constante sensação de
amputação uso a deambulação (pelo verbo). Para libertar-me da cristalização mental
uso a ambivalência (no verbo). Pela via poética, sendo leitora ou escritora, ativa-se
em mim o amor pela vida com todas as suas contradições, orgânicas e inorgânicas,
pela contemplação das colagens existenciais. Antes do hábito da escrita encontrava
essa dedicação perceptiva nas aulas de biologia, a primeira faculdade que escolhi,
justamente a que me capacitava captar as maravilhas e mistérios da natureza, seja
com microscópio ou com luneta. Era a naturalista contente com o realismo, uma antena
imóvel angariando informações. Também era poesia e amor, mas faltava a liberdade
de criatura criando. A fruição de literatura ocultista, de mitologia e a análise
astrológica são costumes antigos e ainda atuais, por me proporcionarem exemplos
de correspondências inusitadas e ricas. Foi pelo signo transmutado em verbo (principalmente
em corpo de poema) que, além de entender o meu locus, percebi a mais eficiente interação com a consciência (individual
ou coletiva) em sua libertária manipulação. Pela escrita e leitura poética capto,
mas também permuto. Amo o mundo depois que o leio, seja pela letra alheia ou pela
minha, pelas infinitas possibilidades de interpretação. Até quando trabalho, me
alimento, adoeço ou durmo, estou captando e decodificando imagens e mirando a construção
de outras. Depois do código decifrado e, portanto, amado, sinto-me impulsionada
a criar, gerando mais signos. Liberdade é quando a criatura entende-se também criador,
amorosamente percebendo que nada se cria sem a metamorfose recicladora das coisas
que a cercam, revitalizando-as ou as reconfigurando. Pela vivência voltada à produção
da escrita aplica-se a tríade surrealista em minha vida, em associação ao uso contínuo
da máxima simbolista: sugerir ao invés de nomear, ser mais um sigilo entre os sortilégios
e sonoridades da existência.
FM
| Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia,
não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas
afinidades tuas na criação artística?
ACG | Simbolismo, Surrealismo, Mitologia, Astrologia, Astronomia,
Ciências Naturais, Ocultismo: são fontes constantes para incitar
o meu processo de escrita, pelas acrobacias imagéticas, invocações de símbolos,
sugestões pictóricas, ritualística verbal e narrativas envolvidas com a vida selvagem,
os estudos naturais e a psicanálise. Cito alguns autores que executam com excêntrica
magnitude os temas e movimentos abordados, mesclando-os em suas obras, e dos quais
tenho livros sempre lidos, artigos pesquisados ou pinturas contempladas: André Breton, Augusto dos Anjos, Carl Gustav Jung,
Charles Baudelaire, Charles Darwin, Cruz e Sousa, Fancisca Júlia, Herberto Helder, Isidore
Ducasse, J. K. Huysmans, Leonora Carrington, Maria Gabriela Llansol, Marosa
di Giorgio, Murilo Mendes, Natália
Correia, Oscar Wilde, Remedios Varo, Roberto Piva, Sylvia
Plath.
FM
| Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento
na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de
uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto
reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?
ACG | Poetas nascidos na década de 1980 cresceram com a benção caótica
do advento da internet como rotina educativa e usam profusamente o meio digital
como plataforma instantânea para exposição de suas criações. Além disto, foram educados
em época facilitadora para o acesso a fontes de qualquer época ou local do globo,
o que os treinou para angariar muito material para leitura ou pesquisa e consequente
produção enriquecida por diversos estilos e temas. O compartilhamento do trabalho
de outros poetas e a associação a grupos criados para divulgação literária amplia
a repercussão da causa que os une, a naturalização da literatura enquanto agente
de conscientização social. O excesso de informações, as opções de entretenimento
e a interferência midiática digital também alteram a metodologia de suas construções,
tornando-as fragmentadas, espontâneas e militantes. Colagens, rotas e plataformas
que deixariam Mallarmé eletrificado, por perceber que a dicção moderna carrega em
um único texto uma analogia à legião de tipos e referências que sugeria seu livro
infinito. Assim observo esta voz adulta, que hoje está em evidência temporal, totalmente
influenciada pelos recortes do mundo digital e imersa (quase perdida) na profusão
de vozes que se intercambiam, mas altas o suficiente para que saiam do anonimato,
pois usam as ferramentas tecnológicas para gerar, expor e disseminar suas criações.
[
FOLHA DE VIDA ]
Andréia Carvalho Gavita (PR): escritora paranaense nascida em 1973.
Reside em Curitiba, onde trabalha nas áreas de farmácia hospitalar e web-design.
É mediadora nos grupos feministas Capitu e Coletivo Marianas. Participa do corpo
editorial das revistas literárias Zunái e mallarmargens. Autora dos livros A cortesã do infinito transparente (Lumme,
2011); Camafeu escarlate (Lumme, 2012);
Grimório de Gavita (Maçã de Vidro Edições/Lumme,
2014); Papel leophardo (Bolsa Nacional
do Livro/Marianas Edições, 2016); Panfletos
de Pavônia (Leonella Editorial, 2017) e Cílios
prostíbulos (Patuá, 2018).
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA
| CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada:
Eugenia Loli (Grécia, 1973)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 127 | Fevereiro de
2019
editor geral | FLORIANO MARTINS
| floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO
SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO
MARTINS
revisão de textos & difusão
| FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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