quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

1973 ANDRÉIA CARVALHO GAVITA



[ DEZ POEMAS ]

A CORTESÃ DO INFINITO TRANSPARENTE

sem pactos
sem interferências
sem mais profecias a revelar

leio meu amor em um tratado de psiquiatria
e o enalteço: patologia dos espelhos
com caneta furta-cor

o meu pudor rancoroso tem sumo
uma sedutora semente de romã
mastigada durante seis meses
em que me vi no centro
da voltagem infernal
de um fetiche impiedoso

glória que abandono, mesmerizada
no rio de enguias e estrelas

(dervixes ao redor da redoma partida)

o olfato sangra o fascínio de hades
mas é tempo de voltar ao território
oco e puro
com a inocência perdida de perséfone
arquivada em pintura surreal

é tempo da alta médica
para cantar a terra próspera
repleta e desmemoriada de reflexo

solar

eternamente lapidada
pela insígnia sideral
de vênus e plutão

apenas o desejo do rapto
com anticorpos
para o raptor
uma noite, completamente branca

(dentro da redoma partida)


COMMEDIA DELL'ARTE

Interpretando a própria cruz, ao abrir os braços. Indelével para a correnteza dos palcos temporários. Os dedos recepcionam o éter e são ramificações elétricas projetadas no teatro dos séculos. Há o crepitar faiscante das reproduções captadas, logo esvaídas pela ardência trágica. Os olhos assistem o desfile sonâmbulo dos obituários poéticos. Tentando achar a vida perdida da vida, na tormenta das têmperas. Um ícone doloroso caricaturado no coração, maquiado pela aberração cromática das imagens. A face fantasma, estrela extinta, persiste na emissão de raios luminosos impregnando a memória escura. Cômico o sofrimento encenado, de punctum repetitivo: a espera deste gêmeo vitruviano, que percorre os milênios com voo estático, aprisionado no retrato dos simbolistas. Como um abraço mímico.


ANDRÓGINO REBELDE DAS ESCADAS PERDIDAS

abandono meu umbigo de boom samaritano
e filho pródigo retorno ao centro
das galáxias

muito além de mim
gautama gautama
e um pulsar açafrão

ascendo por este vértice de âmnion solar

as mitologias
escadas em caracol
os deuses
escadas em caracol
os demônios tem cachos de escadas em caracol
bacos de caravaggio

ascendo nevrálgico
a escada
encaracolerizando
a burka invisível que enforca a alma

recorto-a em tiras finas
em cósmico artesanato
de musashi

que me vinha em sonhos
como as cerejas marroquinas
nas taças de uma taberna interditada
no fim da terra

vendo os olhos da esfinge
inacabada
com cetim e tule violeta

ardendo enxofre e alfazema
bebo o despacho das queimadas galegas

a savana é meu ataúde
minha quarentena

subo os degraus
com a laringe em chamas
com a lentidão falsificada

meus pés de coelho

depois, o sono dos justos
e o fígado refeito
híbrido

andrógino andrógino
mágico


ATRAVÉS DO TEU OLHO DE IGUANA

por minuto àquele que a eternidade se enrosca gêmula molda-se carnívora translúcida a máscara na face inerte caem nos sulcos cerram as pestanas revestem as saliências faciais as argamassas delicadas tortuosas de espirais do mar maquiagem nacarada da máscara de K. finca-se na feição esta película de alma d`agua a visão de dentro desta derme pirateada é corsária e ali se domam revelações de dobras calcárias dão-se voltas e mais voltas pela ótica totalmente nova de tanta maresia colada na retina dos antiquários salões de penduricalhos sagrados ânforas balbuciam a vida que nelas dorme quando foram urnas plasma-se na tessitura do balaústre a espinha dorsal de um ente mumificado atrás do sol heliotrópio tudo que se pensa girando espículas no imenso escuro da grande muralha de corais jardins suspensos: pronuncia o hieróglifo da concha que a nuvem turva faz verter do céu austral depois desfilam botânicas de todas as espécies muitos peixes, esqueletos e barbatanas cadavre exquis oriental pedaços recortados ao acaso uns textos apócrifos uns receituários ornamentais collage pelo fino papel de arroz marinho que é a máscara debaixo da máscara sendo aquela que tudo lê na entranha da abandonada residência escavada na orla de uma pequena vila de carcaça e sal


MANUSCRITOS DO DILÚVIO AO MAR NEGRO

Original? Jamais esta palavra cadavérica ostentaria meu brasão. Apenas um pecado geológico assustado timbraria a assinatura que escapa da ostentação das nomenclaturas. Sim, a uma cratera de címbalos no adjetivo da corça cederia o eu oblongo, como um lençol de água obediente. Este, o cílio correndo de vento sem a contaminação das cores. Nem igitur, nem ignição. Percebes? A meia-noite é uma cópia obscena do helesponto. Lembra-te que no mar desta falésia deitada pelo ciclone, dorme uma moça descuidada, com cabelos de lã tingida. Pura mitologia. Dizem que o abalone refaz seus dias de carneiro montanhês. Prefiro os sátiros rolando de rir pelo capim. Pata de bode. Bruxaria? Jamais esta palavra corpulenta assoviaria a lua que regurgito, marinha até não mais naufragar. Mas se quiser, contaria a gênese do sobressalto. Posso enfim dizer, sem originalidade, já que os mapas são assombrações vertiginosas da memória aquática. Não há mistério, nem hermetismo, apesar das clavículas suspensas no jardim dos ossos (flutuantes). Respira (com o diafragma nos cnidários): há o cão mastigando um coração triplo de polvo na metamorfose de narciso (no canto inferior direito). Seu esqueleto de formiga na costela deteriorada do cérbero expande como uma pústula. Tão evidente como um edema irreversível. Se não vês, não me tome pelo plágio obscuro dos pincéis cerrados sob tua pestana de centopeia densa. Catalepsia de salamandra: porém. Podes conceder-me o oriente de tuas percepções? Ficaria gratificada. O absoluto é extenso como um fêmur de dragão dopado na corrida espacial. Sejamos interlocutores destes panfletos animados. A copista de fósseis imaginários também agradece. Quando chover, pensa na genética das arcas e suas amplas galerias. Estarei pensando em ti, como um xerox de maremoto.


MADRASTA MANDRÁGORA

a causa das lesões que induzo em minhas personagens ficcionais é a constante presença do órfão azul entre elas. celeste e necrosado. tento despertá-lo com a luz centralizada do holofote psíquico. tento reproduzi-lo, mártir de beatas, como ditam os zodíacos. prefiro desta forma. ele tem o perfume do álcool de cereais e quando se doa em autocombustão produz uma chama maníaca sobre geleiras. embriagado de orfandade solar. meu coração real tem um pai e uma mãe, portanto meus passos físicos sempre apontaram para uma estrela de norte possível, embora cambaleante, já que os deixei para seguir meus próprios caminhos. mas meu órfão azul, antracito, foi abandonado pelo cosmos, expulso de todo paraíso, caído e usurpado. menina gritando o eco de um poço. menino calado na neblina de um sótão. andrógino rebelde das chaves perdidas. núcleo mágico. minhas palavras-orações são partículas eletrificadas ao redor de sua aura-carapaça. gravitam seu corpo-orfanato. assim me embalo, imaginário. até que nossos corações não pesem mais que uma pena de tinteiro, e se encontrem no lar de papel, seguro e volátil.


TESTAMENTO DO FOGO

cláusula um: os livros queimados emergirão na memória de quem os leu.

...

crianças adormecem na ficção que a mãe os entrega. quando a noite é um barco criando raízes.

quando amanhece, o ciclorama de quem ouviu uma história de deserto, para adormecer cheio de luz na escuridão dos leitos, estoura pelos cílios despertos.

fui a mãe de um órfão azul
na gestação da tempestade
e o nutri com capítulos de piras funerárias
(o que restava de meus dias exorcizados)
seu corpo celeste tenta nascer.
preciso de seu leite pelas escamas.
pois foi de meu sangue desidratado a constituição de sua musculatura carbonizada: os nervos de crânios derretendo sob a luz matinal, pela carcaça dos corvos.

meu corpo noturno precisa da via láctea.


o bebê dragão que me ouvia
espalha a silhueta de cactos altivos
na paisagem dos espantalhos
a respiração ofegante dos répteis intercala seu diálogo
contestador
a caravela enraizada está cheia de orvalho
onde as aves de fogo bebem
para manter a crosta das dunas
em perpétuo movimento

se este deserto crescer demais
não serão precisos mapas
e alucinações encobrirão a sede

tudo sucumbirá, sem a água milagrosa
degustada

e os livros que foram queimados precisam emergir na memória de quem os leu.


LOUVA-VERBO

A louva-verbo no embrião da linguagem. Um caramujo, um musaranho, muralha ruída na família tipográfica da soricomorpha. Qualquer escaramuça letrada. Um verso com escorbuto na mandíbula da mantis, em pose circense para o palco sem substantivos econômicos. Algumas luzes estratosféricas na laqueadura dos advérbios mais abjetos. Nenhuma objeção, nenhum adversário. Nem o marfim agonizando no lábio leporino da savana, nem a fisionomia apática das amebas. Dizem que a revolução é coloquial, para angariar resultados sociais eficientes. Não acredito. A democracia é apenas utópica distração, cheia de palavras disfarçadas em urnas. Entre eleições e eloquentes promessas, voto nos sarcófagos suturados.


CORVO DA PAPISA

Corvo da papisa, volte para nossa casa quente. Dentro de seus olhos frios há uma semente que não nos esquece a morada na borda afiada dos dentes de leão. Força, escuridão de pequena criatura. Que sua mandíbula de quimera vocalize em vento barulhento o endereço do solo fértil sob nossos silos e selos, sempre abarrotados de ninhos e versículos. Húmus e hastes do esqueleto da noite são nossos caminhos fáceis de decorar. Corvo da papisa, retorne em guizo e gôndola, rastreando a terra e o mar com suas asas de braseiro. Enquanto a cortina da madrugada desce sobre as ossadas, recito nosso nome de treva e trevo até amanhecer teu corpo rezado em missa de trigo e rubi.


MIRANTE, MAGRITTE

Meu grito não ostenta som qualquer quando homens sem asas inventam aparatos para o movimento excêntrico de sua existência. Cavalos, bicicletas, redes. Eu, replicante petit poá na pátina perfurada da mata, tenho sapatos gastos que só me fazem escorregar na pele lisa do planeta. Quando os levito, suspensório de floresta, circula-me uma linfa celeste, que sei não me pertencer. Deixo pegadas perseguindo pontes em poesias de passeatas. E lá, em algum silêncio bruto de sílabas universais, alguma alma errante lerá: arabesco fragilizado, rasante de corpo instantâneo na ordem do caos.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

ACG | Vivo entre o trabalho em ambiente hospitalar, as atividades culturais dos coletivos que acompanho e a rotina caseira. Em qualquer estado - ofício, rua e casa - estou à procura de analogias, pescando sinestesias, rabiscando-as em bloco de notas (físico ou mental). Guardo as correspondências para depois criar outros corpos em formato de letras. Cultivar esta busca por ocorrências inusitadas na rotina me fortalece a sensação de maravilhamento, mesmo em situações opressivas. Os rigores da rotina nos amputam a espontaneidade do biorritmo. As rajadas de regras nos amputam a fluidez psíquica interior. Para curar-me da constante sensação de amputação uso a deambulação (pelo verbo). Para libertar-me da cristalização mental uso a ambivalência (no verbo). Pela via poética, sendo leitora ou escritora, ativa-se em mim o amor pela vida com todas as suas contradições, orgânicas e inorgânicas, pela contemplação das colagens existenciais. Antes do hábito da escrita encontrava essa dedicação perceptiva nas aulas de biologia, a primeira faculdade que escolhi, justamente a que me capacitava captar as maravilhas e mistérios da natureza, seja com microscópio ou com luneta. Era a naturalista contente com o realismo, uma antena imóvel angariando informações. Também era poesia e amor, mas faltava a liberdade de criatura criando. A fruição de literatura ocultista, de mitologia e a análise astrológica são costumes antigos e ainda atuais, por me proporcionarem exemplos de correspondências inusitadas e ricas. Foi pelo signo transmutado em verbo (principalmente em corpo de poema) que, além de entender o meu locus, percebi a mais eficiente interação com a consciência (individual ou coletiva) em sua libertária manipulação. Pela escrita e leitura poética capto, mas também permuto. Amo o mundo depois que o leio, seja pela letra alheia ou pela minha, pelas infinitas possibilidades de interpretação. Até quando trabalho, me alimento, adoeço ou durmo, estou captando e decodificando imagens e mirando a construção de outras. Depois do código decifrado e, portanto, amado, sinto-me impulsionada a criar, gerando mais signos. Liberdade é quando a criatura entende-se também criador, amorosamente percebendo que nada se cria sem a metamorfose recicladora das coisas que a cercam, revitalizando-as ou as reconfigurando. Pela vivência voltada à produção da escrita aplica-se a tríade surrealista em minha vida, em associação ao uso contínuo da máxima simbolista: sugerir ao invés de nomear, ser mais um sigilo entre os sortilégios e sonoridades da existência.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

ACG | Simbolismo, Surrealismo, Mitologia, Astrologia, Astronomia, Ciências Naturais, Ocultismo: são fontes constantes para incitar o meu processo de escrita, pelas acrobacias imagéticas, invocações de símbolos, sugestões pictóricas, ritualística verbal e narrativas envolvidas com a vida selvagem, os estudos naturais e a psicanálise. Cito alguns autores que executam com excêntrica magnitude os temas e movimentos abordados, mesclando-os em suas obras, e dos quais tenho livros sempre lidos, artigos pesquisados ou pinturas contempladas: André Breton, Augusto dos Anjos, Carl Gustav Jung, Charles Baudelaire, Charles Darwin, Cruz e Sousa, Fancisca Júlia, Herberto Helder, Isidore Ducasse, J. K. Huysmans, Leonora Carrington, Maria Gabriela Llansol, Marosa di Giorgio, Murilo Mendes, Natália Correia, Oscar Wilde, Remedios Varo, Roberto Piva, Sylvia Plath.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

ACG | Poetas nascidos na década de 1980 cresceram com a benção caótica do advento da internet como rotina educativa e usam profusamente o meio digital como plataforma instantânea para exposição de suas criações. Além disto, foram educados em época facilitadora para o acesso a fontes de qualquer época ou local do globo, o que os treinou para angariar muito material para leitura ou pesquisa e consequente produção enriquecida por diversos estilos e temas. O compartilhamento do trabalho de outros poetas e a associação a grupos criados para divulgação literária amplia a repercussão da causa que os une, a naturalização da literatura enquanto agente de conscientização social. O excesso de informações, as opções de entretenimento e a interferência midiática digital também alteram a metodologia de suas construções, tornando-as fragmentadas, espontâneas e militantes. Colagens, rotas e plataformas que deixariam Mallarmé eletrificado, por perceber que a dicção moderna carrega em um único texto uma analogia à legião de tipos e referências que sugeria seu livro infinito. Assim observo esta voz adulta, que hoje está em evidência temporal, totalmente influenciada pelos recortes do mundo digital e imersa (quase perdida) na profusão de vozes que se intercambiam, mas altas o suficiente para que saiam do anonimato, pois usam as ferramentas tecnológicas para gerar, expor e disseminar suas criações.


[ FOLHA DE VIDA ]

Andréia Carvalho Gavita (PR): escritora paranaense nascida em 1973. Reside em Curitiba, onde trabalha nas áreas de farmácia hospitalar e web-design. É mediadora nos grupos feministas Capitu e Coletivo Marianas. Participa do corpo editorial das revistas literárias Zunái e mallarmargens. Autora dos livros A cortesã do infinito transparente (Lumme, 2011); Camafeu escarlate (Lumme, 2012); Grimório de Gavita (Maçã de Vidro Edições/Lumme, 2014); Papel leophardo (Bolsa Nacional do Livro/Marianas Edições, 2016); Panfletos de Pavônia (Leonella Editorial, 2017) e Cílios prostíbulos (Patuá, 2018).



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 127 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019




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