[ DEZ POEMAS ]
NAVEGANDO PELAS
ESTRELAS
sento ao doce piano
e entardeço
Vince Vinnus
sou
apenas um corpo despreparado
intervalos
finitos de marfim e ébano
metais,
martelos
olhos
de madeira
pele
percutida
improviso,
faina, fantasia
cravo
com suave e forte
delírio
epitelial sobre o mesmo tema
variação
de cordas cruzadas
cepo
e suas cravelhas
(que a vida se incumbe de
apertar)
versos
de se levar para um poema deserto
pedais
de acionar o mecanismo dos sonhos
sou
apenas um corpo sostenuto
aguardando
tuas mãos na marquise
da capo al fine
TRÍPTICO
Início
uma
estrada de ferro passa pelo azul de suas cabeças
do
lado esquerdo, dúvidas inumeráveis e abetos
do
lado de dentro, uma fileira de espelhos vorazes
uma
montanha infalível ressoa ao lado do vento
atrás
da janela, o cigarro da insônia queima quatro lábios
antes
da tormenta, dois piratas atravessam o barco da noite
uma
placa mostra os trechos mal humorados da cidade
após
o silêncio da colisão, a necessidade inoperante de amor
entre
a fumaça e as bandeiras, a descoberta do aclive inabitado
do
alto da avenida central avistam o estacionamento dos sonhos
atrás
do ferro-velho, dois monocórdios taquicárdicos infringem a lei do sono
em
plena estiagem, duas ferrugens encontram oxigênio e se desenham
Meio
todas
as cores sinalizam as práticas do fogo
a seda cedendo sobre a pele
cedendo-se
sedenta de epiderme
concedendo
sua centelha de alarme
os
olhos sublinham a nudez do verso rumo ao beijo
a litografia dos braços vai-se eternogravurizando
enchendo a banheira com sais
de precipício
trocando as bocas
procuradas de lugar
do
cansaço de reunir letras avulsas pelo chão
nasce o mapa que carregam na nuca
e a impressão do livro de
pulso com suas salivas
do
abandono da direção de vôo
nasce o estremecimento dos corpos
que se dobram num orgástico
origami
Sim
ainda
é cedo pra debulhar o céu
e
seus retângulos com avisos de vidro
e
subornar as águas
entre
sussurros e vapores
oscilam num ardoroso poema mudo deslocando-se na contramão
afastam-se da armadilha de ler sonhos em lençóis fantasmas
seguem presos a esse tigre tango e sentem suas pernas
avançando
entre
o enigma e a força
freiam a louca mecânica do riso que corrói corações
de flecha oscilando na luz
driblam o trinado bolorento da haste de véspera
dedilham o vento na ponta de suas asas pra chegar
ao piano das palavras
ATRÁS DAS COISAS
DA TARDE
e
agora você se coloca na moldura dos olhos
não
sei como te dizer calmamente:
o
batom dele escorre na lateral da tua boca
pra onde foge essa cor de loucos?
deslizo
par’alcançar o escorpião com os dentes
olho
pra você com vontade de ver mais
tenho
as mãos adormecidas na tua pele
perduro
nas tuas barbas
onde os sonhos fazem acrobacias
debulho
o teu sorriso cifrado
para abrir espaço pras línguas
um
afeto se faz perguntas:
caberão os corpos na nossa estréia?
vasculho
as entrelinhas da tua fumaça
e me sobe um paraíso pela nuca:
tua voz se acende às três da manhã
A BELEZA
a beleza
é uma lâmpada fria
acesa
DIE ZEIT BEIßT
é março
vou deixar o outono
desfiar o meu casaco
AS ÁRVORES
as árvores se debruçam
sobre o mundo
e murcham
AO LONGE
ao longe
o sino é um balido
de bronze
DOS GIRASSÓIS À MELANCOLIA
sobre o meu travesseiro ninguém
dorme
nem eu
me sento na cama
sobre as rendas da insônia
enquanto meus dedos se desfiam
em dores de papel perdido
o botão de uma lágrima se descostura
no canto do rosto
e o dedo leva à língua esse
objeto triste
meus olhos são dois punhais
cegos
cansados de desferir sonhos
minha gravata é um nó no pescoço
das estrelas
minha boca é uma mancha soterrada
por arestas que desejo dizer
penso em você
nas minhas mãos desfiadas
e no cansaço que é vencer cada
dúvida:
a comida de cada corvo
que aqui dentro
nunca
acaba
e a existência menos furiosa?
plástico endurecido numa vitrine
desbotada do centro
onde olhos morrediços vão se
espelhar
em meu corpo que se quebra a
cada sentido
em meu coração vencido
[a golpes de arco em cello
num céu adiado
SEM TÍTULO
o peixe se deita ao lado da
faca
ouve seu fio de prata
em sua cabeça
tantas coisas queimam
o corpo inútil
as escamas penteadas
o palácio de Vênus obstruído
a tropopausa de Júpiter saqueada
os ofícios de Netuno paralisados
sobre a mesa
sobre a mesma indiferença
sobre a mesma surdez plasmada
sobre o mesmo aniquilamento
de séculos
sobre a mesma pedra sem nome
sobre todas as cascas
sobretudos e casacas
sobre tudo, os coronéis de todos
os lados
sobre todos, os generais opostos
sobre todas as leis dispostas
sobre todas as cláusulas pétreas
sobre a manipulação das águas
sobre a multiplicação do nada
sobre a hemeroteca dos recuados
da história
envolto
em sacos de sobras
em emergências alheias
em notícias de futuro
em papéis de segunda mão
sulcado
ferido
salgado
o peixe morto
boiando no mar de lixo dessa cidade
fedendo no rosto da madrugada
a náusea empapando a calçada
a tarefa do oceano ainda inacabada
bajo la noche las manos se pierden
en
gestos de dolor y danza
la cortina de nubes oculta
los ojos de la incertidumbre
el sueño tiene el rostro hermoso de flor
y
manos agudas de espinas
la vida tiene hambre voraz de león
y
comida para pajaritos
todo el agua del mundo no mata la sed
pero
te ahoga ahora
el cielo se insinúa
pero
las alas no salvan del abismo
los poemas emborronan hojas y hojas
y
luego llenan una hoguera
en el puerto, en los muelles
la
boca pende del anzuelo
ganchos enamorados
se
acercan a los párpados
sin saber, andamos descalzos
por
encima del vidrio de las lágrimas
la piedra encuentra el rostro
y
esparce sus minerales
el hacha hiende el silencio
y
nos pone mareados
el cuchillo se divierte:
bajo
las uñas
una pulsera de hojas de afeitar
sigue
rastros, quiere pulsos
los espinos buscan la piel
e
inauguran llagas
la sonrisa vaga desplazada
y
araña los labios
la sangre se desvanece
y
el alambre de acero se escapa por las venas
el viento intenta deshacerse de comprometedoras cenizas
pero
se enreda en los cabellos de las algas
un magnífico collar de púas
reina
en el cuello
los clavos y su tétano
quieren
subírsete a los pies
láminas de metal engendran
cicatrices
heladas
el filo de la navaja
sigue
los puntos
¡cansancio – sí – cansancio!
el cansancio deletreado
una separación de sílabas
las palabras solitarias
la sensación solitaria
no volverá a llover en los labios baldíos
la esperanza tiembla
no
sé cuántas lámparas mantiene el sueño encendido
si hubiera alma, huiría
para
no quedar sola en un rincón de la vida
el día quedará preso en el escaparate para siempre
porque
no hay afecto habitado
Descifrándome a solas
mi calle como la tuya cruza muchos países
y en el medio del camino:
el diamante del amor y una espina
me siento al borde de mi abismo
y con la mano rota sostengo el lápiz
y dibujo algodón para la sangre que se derrama
¿qué me dirías se me escuchases?
¿reprocharías mi dibujo?
¿me aconsejarías a buscar consuelo en
la playa?
quizás de golpe en este monólogo
nazca una pared azul y yo me vaya a habitarla
¿pero qué hacer de lo inesperado que me
mira desde el parapeto?
tal vez quiera que me duerma - ¿pero y
los ojos?
seguirán queriendo tus respuestas
¿cómo explicarte que no tengo tantos rostros
y el único que llevo, lo llevo roto?
¿cómo explicarte que mis hombros no soportan
el mundo
y mi tiempo es siempre intento de obliteración?
yo te esperaba en cada gesto vivido
en cada ojo mirado
y te acepté sin preguntas mientras tú
con tu preventiva cordura te defendías de quererme
¿cómo tocar este silencio lleno de agujas y contarte
mis dudas?
escribir esta carta es llorar.
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
JW | Apesar destes tempos de hiper-conexão,
comecei a trilhar o surrealismo sem saber disso. Talvez, ao começar a dirigir meu
“caminhão de mudança” que era só blog e agora também é livro. Era a máquina, a minha
liberdade, que eu precisava para conquistar meu mundo e carregar minhas tralhas,
meu casco de tartaruga mecânica, minha casa móvel. Muito antes de qualquer ligação
com Breton. Só muito depois fui saber disso e gostei muito desse acaso. A poesia
é a carga disforme (ora poema, ora foto, ora arte) que o caminhão carrega e o amor
é o combustível que faz a máquina se movimentar.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
JW | As coisas começaram, bem ou mal, com a
coleção Vagalume e a coleção de romances Júlia,
Sabrina e Bianca e com Cecília Meireles, Mario Quintana, Vinicius de Moraes, Henriqueta
Lisboa, José de Alencar e Erico Verissimo nos livros didáticos da escola. Enquanto
isso, eu ouvia Madonna, Menudos, Dominó, Balão Mágico, Ritchie, Michael Jackson.
E fui incendiada pelo amarelo d'Os Girassóis de Van Gogh estampados no caderno de
cultura do Diário Catarinense enquanto
lia uma matéria especial sobre Nureyev e Baryshnikov e sonhava ser astronauta e
bailarina. Aqui e ali já anotava meus poemas, mas nada relevante. Não fui nenhum
talento precoce.
O
cinema pop dos anos 80 (Rocky, Flashdance,
Top Gun, Karatê Kid, Tootsie e todos os filmes que ganharam Oscar de melhor
canção original).
Em
seguida, vieram Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Pablo Neruda,
Idea Vilariño, Mario Benedetti e Eduardo Galeano e María Elena Walsh.
E
então, chego ao Claudio Willer e suas oficinas que giravam em torno do surrealismo
e da criação poética; ao Herberto Helder, à Hilda Hilst, ao Lindolf Bell.
Eu
me sinto um mosaico formado por uma peça de cada um(a) desses(as) autores(as) e
artistas e momentos da minha história. Não sei qual contribuiu mais ou menos para
escrever o que escrevo.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas
nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto
na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido
de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento.
O que observas a este respeito?
JW | Embora eu não esteja atenta às datas de
nascimento, encontrei muita gente boa e solidária nas oficinas poéticas das quais
venho participando desde 2012. Principalmente, em atividades coordenadas e/ou lideradas
pelo Claudio Willer. Realmente, não me parece configurado como um movimento organizado.
Antes, uma afinidade de temas e espaços que vão nos levando a esses lugares e a
certas pessoas. Como as ondas intuitivas e sucessivamente procuram a areia.
[ FOLHA DE VIDA ]
Jeanine Will (Santa Catarina, 1975).
Poeta, tradutora e artista visual. Evadida dos cursos de letras português, artes
cênicas, comércio exterior e letras alemão e do cursinho para medicina. Formada
em tradução e interpretação inglês/português pela Unibero. Publicou pela Editora
Córrego os livros de poemas Caminhão de Mudança
(2017) e Para-choques (2018). Desde 2006, mantém consigo uma oficina permanente
de criação poética no blog http://www.caminhaodemudanca.blogspot.com/. Lá publica seus poemas, fotopoemas, videopoemas,
qualquer-coisa-poema, desenhos, fotos e colagens. Contato: caminhaodemudanca@yahoo.com.br.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO
1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)
Agulha
Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número
127 | Fevereiro de 2019
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC
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