quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

1975 JEANINE WILL



[ DEZ POEMAS ]


NAVEGANDO PELAS ESTRELAS

sento ao doce piano
e entardeço

Vince Vinnus

sou apenas um corpo despreparado
intervalos finitos de marfim e ébano
metais, martelos
olhos de madeira
pele percutida

improviso, faina, fantasia
cravo com suave e forte
delírio epitelial sobre o mesmo tema
variação de cordas cruzadas
cepo e suas cravelhas
                        (que a vida se incumbe de apertar)

versos de se levar para um poema deserto
pedais de acionar o mecanismo dos sonhos
sou apenas um corpo sostenuto
aguardando tuas mãos na marquise
da capo al fine


TRÍPTICO

Início

uma estrada de ferro passa pelo azul de suas cabeças
do lado esquerdo, dúvidas inumeráveis e abetos
do lado de dentro, uma fileira de espelhos vorazes

uma montanha infalível ressoa ao lado do vento
atrás da janela, o cigarro da insônia queima quatro lábios
antes da tormenta, dois piratas atravessam o barco da noite

uma placa mostra os trechos mal humorados da cidade
após o silêncio da colisão, a necessidade inoperante de amor
entre a fumaça e as bandeiras, a descoberta do aclive inabitado

do alto da avenida central avistam o estacionamento dos sonhos
atrás do ferro-velho, dois monocórdios taquicárdicos infringem a lei do sono
em plena estiagem, duas ferrugens encontram oxigênio e se desenham

Meio

todas as cores sinalizam as práticas do fogo
a seda cedendo sobre a pele
            cedendo-se sedenta de epiderme
                        concedendo sua centelha de alarme

os olhos sublinham a nudez do verso rumo ao beijo
            a litografia dos braços vai-se eternogravurizando
                        enchendo a banheira com sais de precipício
                                   trocando as bocas procuradas de lugar

do cansaço de reunir letras avulsas pelo chão
            nasce o mapa que carregam na nuca
                        e a impressão do livro de pulso com suas salivas
do abandono da direção de vôo
            nasce o estremecimento dos corpos
                        que se dobram num orgástico origami

Sim

ainda é cedo pra debulhar o céu
e seus retângulos com avisos de vidro
e subornar as águas

entre sussurros e vapores
oscilam num ardoroso poema mudo deslocando-se na contramão
afastam-se da armadilha de ler sonhos em lençóis fantasmas
seguem presos a esse tigre tango e sentem suas pernas avançando

entre o enigma e a força
freiam a louca mecânica do riso que corrói corações de flecha oscilando na luz
driblam o trinado bolorento da haste de véspera
dedilham o vento na ponta de suas asas pra chegar ao piano das palavras


ATRÁS DAS COISAS DA TARDE

há dez anos desembrulho essa cidade
e agora você se coloca na moldura dos olhos

não sei como te dizer calmamente:
o batom dele escorre na lateral da tua boca
            pra onde foge essa cor de loucos?

deslizo par’alcançar o escorpião com os dentes
olho pra você com vontade de ver mais

tenho as mãos adormecidas na tua pele
perduro nas tuas barbas
            onde os sonhos fazem acrobacias

debulho o teu sorriso cifrado
            para abrir espaço pras línguas

um afeto se faz perguntas:
caberão os corpos na nossa estréia?

vasculho as entrelinhas da tua fumaça
            e me sobe um paraíso pela nuca:
tua voz se acende às três da manhã


A BELEZA

a beleza
é uma lâmpada fria
acesa



DIE ZEIT BEIßT

é março
vou deixar o outono
desfiar o meu casaco


AS ÁRVORES

as árvores se debruçam
sobre o mundo
e murcham


AO LONGE

ao longe
o sino é um balido
de bronze



DOS GIRASSÓIS À MELANCOLIA

sobre o meu travesseiro ninguém dorme
                        nem eu
me sento na cama
                        sobre as rendas da insônia
enquanto meus dedos se desfiam
                        em dores de papel perdido

o botão de uma lágrima se descostura no canto do rosto
e o dedo leva à língua esse objeto triste
meus olhos são dois punhais cegos
cansados de desferir sonhos
minha gravata é um nó no pescoço das estrelas
minha boca é uma mancha soterrada por arestas que desejo dizer

penso em você
nas minhas mãos desfiadas
e no cansaço que é vencer cada dúvida:
            a comida de cada corvo
                                               que aqui dentro
                                                                       nunca acaba

e a existência menos furiosa?
plástico endurecido numa vitrine desbotada do centro
onde olhos morrediços vão se espelhar
em meu corpo que se quebra a cada sentido
em meu coração vencido
                                   [a golpes de arco em cello
num céu adiado


SEM TÍTULO

o peixe se deita ao lado da faca
ouve seu fio de prata
em sua cabeça
tantas coisas queimam

o corpo inútil
as escamas penteadas
o palácio de Vênus obstruído
a tropopausa de Júpiter saqueada
os ofícios de Netuno paralisados

sobre a mesa
sobre a mesma indiferença
sobre a mesma surdez plasmada
sobre o mesmo aniquilamento de séculos
sobre a mesma pedra sem nome
sobre todas as cascas
sobretudos e casacas
sobre tudo, os coronéis de todos os lados
sobre todos, os generais opostos
sobre todas as leis dispostas
sobre todas as cláusulas pétreas
sobre a manipulação das águas
sobre a multiplicação do nada
sobre a hemeroteca dos recuados da história

envolto
            em sacos de sobras
            em emergências alheias
            em notícias de futuro
            em papéis de segunda mão

sulcado
ferido
salgado

o peixe morto
            boiando no mar de lixo dessa cidade
            fedendo no rosto da madrugada

a náusea empapando a calçada
a tarefa do oceano ainda inacabada



DOLOR REMIX

bajo la noche las manos se pierden
                                   en gestos de dolor y danza
la cortina de nubes oculta
los ojos de la incertidumbre
el sueño tiene el rostro hermoso de flor
                                   y manos agudas de espinas
la vida tiene hambre voraz de león
                                   y comida para pajaritos
todo el agua del mundo no mata la sed
                                   pero te ahoga ahora
el cielo se insinúa
                                   pero las alas no salvan del abismo
los poemas emborronan hojas y hojas
                                   y luego llenan una hoguera
en el puerto, en los muelles
                                   la boca pende del anzuelo
ganchos enamorados
                                   se acercan a los párpados
sin saber, andamos descalzos
                                   por encima del vidrio de las lágrimas
la piedra encuentra el rostro
                                   y esparce sus minerales
el hacha hiende el silencio
                                   y nos pone mareados
el cuchillo se divierte:
                                   bajo las uñas
una pulsera de hojas de afeitar
                                   sigue rastros, quiere pulsos
los espinos buscan la piel
                                   e inauguran llagas
la sonrisa vaga desplazada
                                   y araña los labios
la sangre se desvanece
                                   y el alambre de acero se escapa por las venas
el viento intenta deshacerse de comprometedoras cenizas
                                   pero se enreda en los cabellos de las algas
un magnífico collar de púas
                                   reina en el cuello
los clavos y su tétano
                                   quieren subírsete a los pies
láminas de metal engendran
                                   cicatrices heladas
el filo de la navaja
                                   sigue los puntos

¡cansancio – sí – cansancio!
el cansancio deletreado
una separación de sílabas
las palabras solitarias
la sensación solitaria
no volverá a llover en los labios baldíos

la esperanza tiembla
                                   no sé cuántas lámparas mantiene el sueño encendido

si hubiera alma, huiría
                                   para no quedar sola en un rincón de la vida

el día quedará preso en el escaparate para siempre
                                   porque no hay afecto habitado
Descifrándome a solas

mi calle como la tuya cruza muchos países
y en el medio del camino:
el diamante del amor y una espina

me siento al borde de mi abismo
y con la mano rota sostengo el lápiz
y dibujo algodón para la sangre que se derrama

¿qué me dirías se me escuchases?
¿reprocharías mi dibujo?
¿me aconsejarías a buscar consuelo en la playa?

quizás de golpe en este monólogo
nazca una pared azul y yo me vaya a habitarla

¿pero qué hacer de lo inesperado que me mira desde el parapeto?
tal vez quiera que me duerma - ¿pero y los ojos?
seguirán queriendo tus respuestas

¿cómo explicarte que no tengo tantos rostros y el único que llevo, lo llevo roto?
¿cómo explicarte que mis hombros no soportan el mundo
y mi tiempo es siempre intento de obliteración?

yo te esperaba en cada gesto vivido
en cada ojo mirado
y te acepté sin preguntas mientras tú
con tu preventiva cordura te defendías de quererme

¿cómo tocar este silencio lleno de agujas y contarte mis dudas?

escribir esta carta es llorar.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

JW | Apesar destes tempos de hiper-conexão, comecei a trilhar o surrealismo sem saber disso. Talvez, ao começar a dirigir meu “caminhão de mudança” que era só blog e agora também é livro. Era a máquina, a minha liberdade, que eu precisava para conquistar meu mundo e carregar minhas tralhas, meu casco de tartaruga mecânica, minha casa móvel. Muito antes de qualquer ligação com Breton. Só muito depois fui saber disso e gostei muito desse acaso. A poesia é a carga disforme (ora poema, ora foto, ora arte) que o caminhão carrega e o amor é o combustível que faz a máquina se movimentar.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

JW | As coisas começaram, bem ou mal, com a coleção Vagalume e a coleção de romances Júlia, Sabrina e Bianca e com Cecília Meireles, Mario Quintana, Vinicius de Moraes, Henriqueta Lisboa, José de Alencar e Erico Verissimo nos livros didáticos da escola. Enquanto isso, eu ouvia Madonna, Menudos, Dominó, Balão Mágico, Ritchie, Michael Jackson. E fui incendiada pelo amarelo d'Os Girassóis de Van Gogh estampados no caderno de cultura do Diário Catarinense enquanto lia uma matéria especial sobre Nureyev e Baryshnikov e sonhava ser astronauta e bailarina. Aqui e ali já anotava meus poemas, mas nada relevante. Não fui nenhum talento precoce.
O cinema pop dos anos 80 (Rocky, Flashdance, Top Gun, Karatê Kid, Tootsie e todos os filmes que ganharam Oscar de melhor canção original).
Em seguida, vieram Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Pablo Neruda, Idea Vilariño, Mario Benedetti e Eduardo Galeano e María Elena Walsh.
E então, chego ao Claudio Willer e suas oficinas que giravam em torno do surrealismo e da criação poética; ao Herberto Helder, à Hilda Hilst, ao Lindolf Bell.
Eu me sinto um mosaico formado por uma peça de cada um(a) desses(as) autores(as) e artistas e momentos da minha história. Não sei qual contribuiu mais ou menos para escrever o que escrevo.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

JW | Embora eu não esteja atenta às datas de nascimento, encontrei muita gente boa e solidária nas oficinas poéticas das quais venho participando desde 2012. Principalmente, em atividades coordenadas e/ou lideradas pelo Claudio Willer. Realmente, não me parece configurado como um movimento organizado. Antes, uma afinidade de temas e espaços que vão nos levando a esses lugares e a certas pessoas. Como as ondas intuitivas e sucessivamente procuram a areia.


[ FOLHA DE VIDA ]

Jeanine Will (Santa Catarina, 1975). Poeta, tradutora e artista visual. Evadida dos cursos de letras português, artes cênicas, comércio exterior e letras alemão e do cursinho para medicina. Formada em tradução e interpretação inglês/português pela Unibero. Publicou pela Editora Córrego os livros de poemas Caminhão de Mudança (2017) e Para-choques (2018). Desde 2006, mantém consigo uma oficina permanente de criação poética no blog http://www.caminhaodemudanca.blogspot.com/. Lá publica seus poemas, fotopoemas, videopoemas, qualquer-coisa-poema, desenhos, fotos e colagens. Contato: caminhaodemudanca@yahoo.com.br.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 127 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019




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