quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

1979 DEMETRIOS GALVÃO



[ DEZ POEMAS ]


RECANTO

ergo um museu de silêncios
entre besouros cegos e esporões perdidos
em uma praça que fica no coração da memória.

aprendi que a verdade é um signo inflamável,
que os bares vendem ausências
e que as pessoas estão cheias de vazios.

meu recanto é uma varanda no hipotálamo
ateliê onde rumino um orfanato de cartas
e rabisco pequenos infinitos.

carrego sempre um peso a mais
um insólito equilíbrio, uma poética selvagem
para me defender do grito sanguíneo do tempo suicida

– escondo minhas relíquias no avesso da lâmpada
onde as palavras têm febre e a matéria se bifurca.


INFINITO VOLÚVEL
ao som de velvet underground

quando o fogo alteia, sobrenatural se torna
tua arcada de medusa.
as tatuagens arcaicas grafadas nos ossos
emergem faiscando.

revolvemos em nosso motor
todas as guerras modernas.
recolhemos o marfim do antiquário
e nos lançamos na heresia da selva.
travamos uma batalha por noites
no ângulo aberto dos olhos ocultos.

não avistamos o mar de onde moramos
não temos nossos nomes demarcando ruas.
nos lançamos na vertigem ébria das asas,
no jogo cego das cartas.

ainda em silêncio, sussurramos uma luz escura
entre costelas e demais estruturas.
quando no infinito das eras,
nos tornamos volúveis.

– hospedamos nosso ser estrangeiro
no clube pagão das insolências.


TUDO CHEGA DE UM MUNDO ANTIQUÍSSIMO
ao som de frank zappa

eu vi uma legião de jesuítas
silenciar florestas espontâneas
com sua pedagogia assassina.

eu vi caravanas de novos e velhos mestiços
aprisionarem peixes, lagartos e aves mensageiras
para legislar um código de honra obscuro.

eu vi um velho mar engolir desaforos
e guardá-los em envelopes de calcário
no fundo de sua paciência líquida.

eu vi homem e máquina
fundirem-se numa utopia selvagem
na cavalgada de sirenes.

eu vi a miséria da casa grande
radiografada em etiquetas de luxo
nos bazares e camelôs da cidade baixa.

eu vi um avião cair
e do alto da montanha
nascer um mito cinematográfico.

eu vi uma mãe e um santo
disciplinar um jovem dilúvio
quando em festa, alagou corações desabrigados.

eu vi begônias dizerem “eu te amo”
para um quilombo submerso
em erotismo tropical.


PALAVRA-MÁGICA

quando os pés adoecem
e esquecem os caminhos
o corpo precisa inventar voos.

os peixes nadam na profundidade da costela direita
na obscuridade do entre-ossos
migrando para o aconchego do litoral carnudo.

(a língua quando bem plantada
atinge veios profundos
manancial voluptuoso de fabulações)

busco então, a sobrenatural beleza:
as ancas africanas, a envergadura monárquica,
a anatomia incendiária.

me visto de asas e de lâmpadas
e vou ao teu encontro
com uma palavra-mágica adornando os olhos.


NOITE TURVA

um casal emplumado
encarou a tempestade de ferrugem
com a ternura de um abraço profundo.
suportaram o assombro do céu e
os ataques nervosos.

bateram-se contra às águas e os ventos
como se o peito fosse de marfim e
a coragem, uma armadura impermeável.

(o baile cambiante das pernas
na regência dos trovões vorazes
seguia em compassos de pavor)

o império turvo do céu
rogava assombros em lastros
de serpentes luminosas.

o casal lutou na rinha feroz da noite
que não oferecia extremidade
ou margem para abrigo.


A CORDILHEIRA QUE NOS INVADE

jubilosa figura ametista
teus lábios são territórios carnívoros e neles
traduzo tua forma de ser no balanço da casa:

– língua de dois conjugados
jurados até os dias últimos
pacto de selo-carne
ungidos em unidade rock
nos pátios da visão devassa. –

invado teu quarto secreto
me alio ao venenoso do teu signo
decifro a temperatura do teu pescoço-abismo
envio envelopes com serpentes sedutoras.

tua música tem fome de elaborações murmurosas
os miados são consequência de agrados sigilosos
marcamos no calendário um truque contra o tempo
num lampejo súbito libertamos desatinos circulares.

fulgurantes e contaminados, nos fazemos cordilheira
nossa essência réptil … nossos rins vegetais …
transfiguramos a mata densa em lençóis brumosos
… brotou uma orquídea lilás no alto de nossas virilhas.

naquele cemitério de asas
roubamos um voo que estava encostado
desenhamos raízes aéreas para o pouso
saltamos sem medo sobre os ombros rochosos.


ESCORPIÃO NA CASA DE CAPRICÓRNIO

chove um som verde na paz dos musgos e os crimes se libertam nos quartos de motéis: nos encontramos com a fúria de dois cometas que se chocam, movimentos selvagens, contradições na faringe metálica e sexo na contorção fumegante dos corpos irresponsáveis – ( os olhos são ogivas de cilício sobressaltando as costas ) – nossos fluidos escorrem para o mangue da alma: rio caudaloso a desmantelar a neurose dos ponteiros em estranhas experiências, como se toda a história fosse só um agora – ( o que sobra são os garranchos sobrepostos e os escombros molhados ) – violamos o que de mais íntimo nossos pés tocam, saltamos as pontes, as linhas de trem e o azimute do horizonte – ( é inútil pensar que sairemos ilesos à noite ) – nossos delírios conjugados cavalgam as luas de saturno enviando sinais jamais pronunciados – ( os braços que nos cercam são noctâmbulos ) – as carícias desmancham armaduras, recolhendo para a dispensa a utilidade das unhas de aço: nosso amor fosforescente se escreve na avenida eros.


SONO NU

é por isso que não se deve orar
senão com palavras desconhecidas.
paul valéry


um sono nu invade o dia
transforma a matéria sisuda
faz um novo voo para o besouro.

perplexos diante do sonho
dançamos a caligrafia torta
na margem esquerda dos olhares insólitos.

saudamos o vento-desmembrado na ciranda etílica
quando o mundo se despendia perto do coração.
bandeiras e procissões celebravam o elogio da carne –
a insensatez iluminada do caralho imperador.

as goteiras dentro dos discos dissolveram a guerra
e os desenhos feitos no papel de embrulho.
nossas sombras se despediam pelas ruas de pessoas surdas
no sentido do pátio da consolação –
encontro dos cartazes esfarrapados.

a violência do toque cheirava á noite –
restava lamber os astros da tua cosmologia.


CARTÕES-POSTAIS DO FIM DO MUNDO

o olho em falso vacila na transversal:

no cheiro do medo, o faro desmedido
no horizonte, uma procissão de pássaros fosforescentes
há sol em cada canto do dia e os orixás fazem poemas-crianças
modigliani montado em um ganso
alimenta os peixes com a estranha beleza de suas mulheres.

uma tempestade de insônias sopra nos olhos:

os faróis acendem uma cadeia de mandíbulas
os vestidos caem do céu no museu-retina-de-porcelana
uma fi lha de lilith rola à beira do lago das danações
grandes doses de pílulas de café são dadas às estátuas da cidade e
baudelaire translúcido fl ana na rua do hospício.

– os corações saltam de pára-quedas
e os turistas fazem festas nos cartões-postais do fim do mundo.


CONSTELAÇÃO DAS ÁGUAS TURVAS

na lascividade do território-carne
nos absorvemos no desejo inebriado

 – trânsito nas costas-alamedas dentro da flecha de eros –

nos perdemos no cinema, na angústia dos outros
acordamos enjoados, tontos
ou não dormimos
pensamos em quem descansa dentro da ventania
olhando o sol dissipar as águas turvas da madrugada

do outro lado da cidade antiga
nossos delírios se acomodam
entre o ronronado dos gatos e canto dos galos

por vezes nos encontramos em tempos furtivos
na varanda fugaz dos nossos peitos

– meteoros volúveis se cruzam no
parque de diversões de nossas bocas.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

DG | A meu ver, nenhum outro movimento literário conseguiu potencializar as dimensões da poesia, do amor e da liberdade como o surrealismo fez. Talvez pela sua radicalidade e pelo mergulho profundo em sua proposta com a linguagem. Essa energia mágica e selvagem, psicológica e antropológica ao mesmo tempo, construindo as dimensões do onírico, um para além do óbvio. Imagino que os surrealistas ampliaram o poder da poesia e foi essa força, esse efeito de deslocar as coisas do lugar que me pegou e a partir disso, alguns elementos do surrealismo passaram a fazer parte do meu pensamento e da minha escrita.
Uma coisa importante é o pensar em campo aberto com liberdade para elaborar as mais diferentes combinações, movido pelas forças do desejo e do amor, em seus vários sentidos. Disso, o meu “ver o mundo” passou a pulsar em outro compasso, atendendo ao fluxo das imagens e à necessidade de construir realidades não convencionais. Aprendi a não ficar preso ao campo da representação e ir além, não representar nada, mas inventar, sair do campo contingencial das reproduções. A minha poética dialoga com o surrealismo, em alguns momentos mais, em outros, um pouco menos. Não sei se o que faço é surrealista de fato, talvez nem seja, mas algumas de minhas principais referências vêm de lá.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

DG | Vou pontuar, especificamente, o meu percurso com os autores e a leitura do universo surrealista.
O meu primeiro contato com o surrealismo vem com o livro Paranoia, do Roberto Piva, uma pancada. Uma avalanche que me tomou por completo e nunca mais fui o mesmo. A velocidade e o movimento da poesia do Piva me fez largar tudo o que conhecia de poesia e ir buscar as referências que ele carregava. Em seguida, cheguei ao Claudio Willer e aos seus livros Jardins da Provocação e Estranhas Experiências. Ampliando o leque, ganhei de presente a antologia Ser Infinitas Palavras, do Afonso Henriques Neto e aí, o delírio foi total. A partir dessa introdução maravilhosa, senti a necessidade de aprofundar as leituras nesse campo e passei a pesquisar a poesia do Murilo Mendes e Jorge de Lima, dois monstros da literatura brasileira na vertente surrealista.
O meu próximo passo nesse território foi com o livro O Começo da Busca, uma pequena antologia de poetas surrealistas das Américas organizado e traduzido pelo Floriano Martins. Tenho, inclusive, um carinho muito grande por esse livro. Pois, andei com ele por longo tempo na mochila, recitando poemas em sarau e apresentando para vários amigos. Foi através desse livro que conheci Aldo Pellegrini e Enrique Molina.
O mais radical ainda estava por vir e ao final de 2005 cheguei ao poeta mais surrealista que eu havia lido. Depois de várias caminhadas já conhecia a maravilhosa poesia do André Breton e de outros franceses. Mas, foi com o chileno Vicente Huidobro que me deparei com uma experiência de vertigem, com um salto no abismo entre as palavras. Altazor foi o livro que me fez ver o infinito e que sempre revisito, para ter goles de êxtase e prazeres sensoriais.
Outra etapa das leituras surrealistas veio com a obra poética do Floriano Martins a começar pelo livro Estudos de Pele e fui seguindo por outros tantos. Até hoje a poesia do Floriano é presente nas minhas leituras. Desse contato, por transmissão direta, cheguei a vários poetas portugueses, dentre eles, dois que considero gigantes, Herberto Helder e Antonio Ramos Rosa. Artesões do abismo e do maravilhoso, são poetas de uma grandeza e de um poder absurdo.
Por último, poderia citar uma experiência transformadora que tive com a leitura do poeta árabe de pseudônimo Adonis. Dono de uma imagética suave e mística que mudou, recentemente, os encaminhamentos da minha escrita.
Esses autores e obras são algumas de minhas experiências com a linguagem e a estética surrealista. Desse percurso todo, ficaram os aprendizados sobre a elaboração das imagens, a pulsação libertária do desejo e as visões que derivam do exercício com a palavra.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

DG | Acredito que uma marca da poesia brasileira pós anos 1970, seja a diversidade estética que se expressa na liberdade de abordagens e de diálogos com os mais diferentes movimentos que existiram anteriormente. Se por um lado, existem poetas que buscam um apuro formal ou uma densidade elaborada na escrita. Outros, fazer a crônica do cotidiano, do café da manhã e da previsão do tempo. Certo é que tem espaço e leitores para todo mundo, em um cenário que o tal do “centro” tem sido cada vez menos decisivo e as “margens” têm ocupado os espaços com a sua lírica de palavra erguida.
Importante mencionar o papel das plataformas digitais (revistas, sites, blogs, redes sociais) e do impulso das editoras independentes. Esses elementos são decisivos para amplificar a poesia contemporânea e dar visibilidade para os escritores. Mas, no meio disso tudo, percebo que a boa poesia está onde não há tanto barulho.


[ FOLHA DE VIDA ]

Demetrios Galvão (Piauí, 1979). Poeta, professor e historiador, mestre em História do Brasil. Autor dos livros de poemas Fractais Semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), O Avesso da Lâmpada (2017) e do objeto poético Capsular (2015). Em 2005 lançou o CD de poemas Um Pandemônio Léxico no Arquipélago Parabólico. Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi um dos editores do blog Poesia Tarja Preta (2010-2012) e da AO-Revista (2011-2012). Edita a revista Acrobata.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 127 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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