[ DEZ POEMAS ]
RECANTO
ergo um museu de silêncios
entre besouros cegos e esporões perdidos
em uma praça que fica no coração da
memória.
aprendi que a verdade é um signo inflamável,
que os bares vendem ausências
e que as pessoas estão cheias de vazios.
meu recanto é uma varanda no hipotálamo
ateliê onde rumino um orfanato de
cartas
e rabisco pequenos infinitos.
carrego sempre um peso a mais
um insólito equilíbrio, uma poética
selvagem
para me defender do grito sanguíneo
do tempo suicida
– escondo minhas relíquias no avesso
da lâmpada
onde as palavras têm febre
e a matéria se bifurca.
INFINITO
VOLÚVEL
ao
som de velvet underground
quando o fogo alteia, sobrenatural
se torna
tua arcada de medusa.
as tatuagens arcaicas grafadas nos
ossos
emergem faiscando.
revolvemos em nosso motor
todas as guerras modernas.
recolhemos o marfim do antiquário
e nos lançamos na heresia da selva.
travamos uma batalha por noites
no ângulo aberto dos olhos ocultos.
não avistamos o mar de onde moramos
não temos nossos nomes demarcando
ruas.
nos lançamos na vertigem ébria das
asas,
no jogo cego das cartas.
ainda em silêncio, sussurramos uma
luz escura
entre costelas e demais estruturas.
quando no infinito das eras,
nos tornamos volúveis.
– hospedamos nosso ser estrangeiro
no
clube pagão das insolências.
TUDO
CHEGA DE UM MUNDO ANTIQUÍSSIMO
ao
som de frank zappa
eu vi uma legião de jesuítas
silenciar florestas espontâneas
com sua pedagogia assassina.
eu vi caravanas de novos e velhos
mestiços
aprisionarem peixes, lagartos e aves
mensageiras
para legislar um código de honra obscuro.
eu vi um velho mar engolir desaforos
e guardá-los em envelopes de calcário
no fundo de sua paciência líquida.
eu vi homem e máquina
fundirem-se numa utopia selvagem
na cavalgada de sirenes.
eu vi a miséria da casa grande
radiografada em etiquetas de luxo
nos bazares e camelôs da cidade baixa.
eu vi um avião cair
e do alto da montanha
nascer um mito cinematográfico.
eu vi uma mãe e um santo
disciplinar um jovem dilúvio
quando
em festa, alagou corações desabrigados.
eu vi begônias dizerem “eu te amo”
para um quilombo submerso
em
erotismo tropical.
quando
os pés adoecem
e
esquecem os caminhos
o
corpo precisa inventar voos.
os
peixes nadam na profundidade da costela direita
na
obscuridade do entre-ossos
migrando
para o aconchego do litoral carnudo.
(a
língua quando bem plantada
atinge
veios profundos
manancial
voluptuoso de fabulações)
busco
então, a sobrenatural beleza:
as
ancas africanas, a envergadura monárquica,
a
anatomia incendiária.
me
visto de asas e de lâmpadas
e
vou ao teu encontro
com uma palavra-mágica adornando os olhos.
NOITE TURVA
um
casal emplumado
encarou
a tempestade de ferrugem
com
a ternura de um abraço profundo.
suportaram
o assombro do céu e
os
ataques nervosos.
bateram-se
contra às águas e os ventos
como
se o peito fosse de marfim e
a
coragem, uma armadura impermeável.
(o
baile cambiante das pernas
na
regência dos trovões vorazes
seguia
em compassos de pavor)
o
império turvo do céu
rogava
assombros em lastros
de
serpentes luminosas.
o
casal lutou na rinha feroz da noite
que
não oferecia extremidade
ou margem para abrigo.
A CORDILHEIRA QUE NOS INVADE
jubilosa
figura ametista
teus
lábios são territórios carnívoros e neles
traduzo
tua forma de ser no balanço da casa:
–
língua de dois conjugados
jurados
até os dias últimos
pacto
de selo-carne
ungidos
em unidade rock
nos
pátios da visão devassa. –
invado
teu quarto secreto
me
alio ao venenoso do teu signo
decifro
a temperatura do teu pescoço-abismo
envio
envelopes com serpentes sedutoras.
tua
música tem fome de elaborações murmurosas
os
miados são consequência de agrados sigilosos
marcamos
no calendário um truque contra o tempo
num
lampejo súbito libertamos desatinos circulares.
fulgurantes
e contaminados, nos fazemos cordilheira
nossa
essência réptil … nossos rins vegetais …
transfiguramos
a mata densa em lençóis brumosos
… brotou uma orquídea lilás no alto de nossas virilhas.
naquele cemitério de asas
roubamos um voo que estava encostado
desenhamos raízes aéreas para o pouso
saltamos sem medo
sobre os ombros rochosos.
ESCORPIÃO
NA CASA DE CAPRICÓRNIO
chove um som verde
na paz dos musgos e os crimes se libertam nos quartos de motéis: nos encontramos
com a fúria de dois cometas que se chocam, movimentos selvagens, contradições na
faringe metálica e sexo na contorção fumegante dos corpos irresponsáveis – ( os
olhos são ogivas de cilício sobressaltando as costas ) – nossos fluidos escorrem
para o mangue da alma: rio caudaloso a desmantelar a neurose dos ponteiros em estranhas
experiências, como se toda a história fosse só um agora – ( o que sobra são os garranchos
sobrepostos e os escombros molhados ) – violamos o que de mais íntimo nossos pés
tocam, saltamos as pontes, as linhas de trem e o azimute do horizonte – ( é inútil
pensar que sairemos ilesos à noite ) – nossos delírios conjugados cavalgam as luas
de saturno enviando sinais jamais pronunciados – ( os braços que nos cercam são
noctâmbulos ) – as carícias desmancham armaduras, recolhendo para a dispensa a utilidade
das unhas de aço: nosso amor fosforescente se escreve na avenida eros.
SONO
NU
é por isso que não se deve orar
senão com palavras desconhecidas.
paul valéry
um sono nu invade o dia
transforma a matéria sisuda
faz um novo voo para o besouro.
perplexos diante do sonho
dançamos a caligrafia torta
na margem esquerda dos olhares insólitos.
saudamos o vento-desmembrado na ciranda
etílica
quando o mundo se despendia perto
do coração.
bandeiras e procissões celebravam
o elogio da carne –
a insensatez iluminada do caralho
imperador.
as goteiras dentro dos discos dissolveram
a guerra
e os desenhos feitos no papel de embrulho.
nossas sombras se despediam pelas
ruas de pessoas surdas
no sentido do pátio da consolação
–
encontro dos cartazes esfarrapados.
a violência do toque cheirava á noite
–
restava lamber os astros da tua cosmologia.
o olho em falso vacila na transversal:
no cheiro do medo, o faro desmedido
no horizonte, uma procissão de pássaros
fosforescentes
há sol em cada canto do dia e os orixás
fazem poemas-crianças
modigliani montado em um ganso
alimenta os peixes com a estranha
beleza de suas mulheres.
uma tempestade de insônias sopra nos
olhos:
os faróis acendem uma cadeia de mandíbulas
os vestidos caem do céu no museu-retina-de-porcelana
uma fi lha de lilith rola à beira
do lago das danações
grandes doses de pílulas de café são
dadas às estátuas da cidade e
baudelaire translúcido fl ana na rua
do hospício.
– os corações saltam de pára-quedas
e os turistas fazem festas nos cartões-postais
do fim do mundo.
CONSTELAÇÃO DAS
ÁGUAS TURVAS
na lascividade do território-carne
nos absorvemos no desejo inebriado
– trânsito nas
costas-alamedas dentro da flecha de eros –
nos perdemos no cinema, na angústia dos outros
acordamos enjoados, tontos
ou não dormimos
pensamos em quem descansa dentro da ventania
olhando o sol dissipar as águas turvas da madrugada
do outro lado da cidade antiga
nossos delírios se acomodam
entre o ronronado dos gatos e canto dos galos
por vezes nos encontramos em tempos furtivos
na varanda fugaz dos nossos peitos
– meteoros volúveis se cruzam no
parque de diversões de nossas bocas.
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
DG | A meu ver, nenhum outro movimento literário
conseguiu potencializar as dimensões da poesia, do amor e da liberdade como o surrealismo
fez. Talvez pela sua radicalidade e pelo mergulho profundo em sua proposta com a
linguagem. Essa energia mágica e selvagem, psicológica e antropológica ao mesmo
tempo, construindo as dimensões do onírico, um para além do óbvio. Imagino que os
surrealistas ampliaram o poder da poesia e foi essa força, esse efeito de deslocar
as coisas do lugar que me pegou e a partir disso, alguns elementos do surrealismo
passaram a fazer parte do meu pensamento e da minha escrita.
Uma
coisa importante é o pensar em campo aberto com liberdade para elaborar as mais
diferentes combinações, movido pelas forças do desejo e do amor, em seus vários
sentidos. Disso, o meu “ver o mundo” passou a pulsar em outro compasso, atendendo
ao fluxo das imagens e à necessidade de construir realidades não convencionais.
Aprendi a não ficar preso ao campo da representação e ir além, não representar nada,
mas inventar, sair do campo contingencial das reproduções. A minha poética dialoga
com o surrealismo, em alguns momentos mais, em outros, um pouco menos. Não sei se
o que faço é surrealista de fato, talvez nem seja, mas algumas de minhas principais
referências vêm de lá.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
DG | Vou pontuar, especificamente, o meu percurso
com os autores e a leitura do universo surrealista.
O
meu primeiro contato com o surrealismo vem com o livro Paranoia, do Roberto Piva, uma pancada. Uma avalanche que me tomou por
completo e nunca mais fui o mesmo. A velocidade e o movimento da poesia do Piva
me fez largar tudo o que conhecia de poesia e ir buscar as referências que ele carregava.
Em seguida, cheguei ao Claudio Willer e aos seus livros Jardins da Provocação e Estranhas
Experiências. Ampliando o leque, ganhei de presente a antologia Ser Infinitas Palavras, do Afonso Henriques
Neto e aí, o delírio foi total. A partir dessa introdução maravilhosa, senti a necessidade
de aprofundar as leituras nesse campo e passei a pesquisar a poesia do Murilo Mendes
e Jorge de Lima, dois monstros da literatura brasileira na vertente surrealista.
O
meu próximo passo nesse território foi com o livro O Começo da Busca, uma pequena antologia de poetas surrealistas das
Américas organizado e traduzido pelo Floriano Martins. Tenho, inclusive, um carinho
muito grande por esse livro. Pois, andei com ele por longo tempo na mochila, recitando
poemas em sarau e apresentando para vários amigos. Foi através desse livro que conheci
Aldo Pellegrini e Enrique Molina.
O
mais radical ainda estava por vir e ao final de 2005 cheguei ao poeta mais surrealista
que eu havia lido. Depois de várias caminhadas já conhecia a maravilhosa poesia
do André Breton e de outros franceses. Mas, foi com o chileno Vicente Huidobro que
me deparei com uma experiência de vertigem, com um salto no abismo entre as palavras.
Altazor foi o livro que me fez ver o infinito
e que sempre revisito, para ter goles de êxtase e prazeres sensoriais.
Outra
etapa das leituras surrealistas veio com a obra poética do Floriano Martins a começar
pelo livro Estudos de Pele e fui seguindo
por outros tantos. Até hoje a poesia do Floriano é presente nas minhas leituras.
Desse contato, por transmissão direta, cheguei a vários poetas portugueses, dentre
eles, dois que considero gigantes, Herberto Helder e Antonio Ramos Rosa. Artesões
do abismo e do maravilhoso, são poetas de uma grandeza e de um poder absurdo.
Por
último, poderia citar uma experiência transformadora que tive com a leitura do poeta
árabe de pseudônimo Adonis. Dono de uma imagética suave e mística que mudou, recentemente,
os encaminhamentos da minha escrita.
Esses
autores e obras são algumas de minhas experiências com a linguagem e a estética
surrealista. Desse percurso todo, ficaram os aprendizados sobre a elaboração das
imagens, a pulsação libertária do desejo e as visões que derivam do exercício com
a palavra.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas
nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto
na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido
de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento.
O que observas a este respeito?
DG | Acredito que uma marca da poesia brasileira
pós anos 1970, seja a diversidade estética que se expressa na liberdade de abordagens
e de diálogos com os mais diferentes movimentos que existiram anteriormente. Se
por um lado, existem poetas que buscam um apuro formal ou uma densidade elaborada
na escrita. Outros, fazer a crônica do cotidiano, do café da manhã e da previsão
do tempo. Certo é que tem espaço e leitores para todo mundo, em um cenário que o
tal do “centro” tem sido cada vez menos decisivo e as “margens” têm ocupado os espaços
com a sua lírica de palavra erguida.
Importante
mencionar o papel das plataformas digitais (revistas, sites, blogs, redes sociais)
e do impulso das editoras independentes. Esses elementos são decisivos para amplificar
a poesia contemporânea e dar visibilidade para os escritores. Mas, no meio disso
tudo, percebo que a boa poesia está onde não há tanto barulho.
[ FOLHA
DE VIDA ]
Demetrios Galvão (Piauí, 1979). Poeta, professor e historiador,
mestre em História do Brasil. Autor dos livros de poemas Fractais Semióticos (2005), Insólito
(2011), Bifurcações (2014), O Avesso da Lâmpada (2017) e do objeto poético
Capsular (2015). Em 2005 lançou o CD de
poemas Um Pandemônio Léxico no Arquipélago
Parabólico. Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi um dos editores
do blog Poesia Tarja Preta (2010-2012)
e da AO-Revista (2011-2012). Edita a revista
Acrobata.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO
1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)
Agulha
Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número
127 | Fevereiro de 2019
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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& design | FLORIANO MARTINS
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de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC
Edições © 2019
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