[ DEZ POEMAS ]
[ELE
ME DISSE]
Ele me disse: – Vc tem cheiro de cadela
no cio, cheira a prostíbulo de longe! Bem se vê tua postura de cortesã, qualquer
um percebe – Oras, como eu saberia? Nunca cheirei uma cadela, ademais não tenho
espelhos convexos. Mas ele sabia, sabia muito bem: eu era essa cachorra, sempre
fui! E ele tinha o faro apurado dos perdigueiros, aquele filhadaputa. E me sabia
demais, de um jeito constrangedor: manjava minhas dancinhas de manipular, bocejando
nas jogadas estratégicas de cabelo. Eu nunca pude com aquele homem! Nunca senti
tanto amor e ódio por alguém ao mesmo tempo. Fui embora pra nunca mais. Escondo
meu cio de lua cheia enquanto posso, precavida sempre de outros cães. Jurei que
ninguém mais iria me cheirar como ele. Por via das dúvidas comprei arnica e cânfora,
passo sempre antes de sair de casa.
[NÃO
LEMBRO NEM O NOME]
Não
lembro nem o nome
lembro
que ele usava um
sobretudo
bege e morava
num
desses apartamentos
de
cohab
também
não lembro como
fui
parar lá e no meio
da
noite sentir vontade
de
ir no banheiro
mas
lembro que o inverno
carcomia
grosso
e
eu enrolada naquele
sobretudo
bege
quentinho
lembro
que fiz xixi
ali
mesmo
não
lembro como saí
só
sei que de uma
hora
pra outra eu já
estava
fora dali
me
vi descendo do carro
(meio
que empurrada)
nem
beijinho...
ele
nunca ligou
eu
nunca lembrei o nome dele
[TINHA
ONZE ANOS QUANDO MORRI PELA PRIMEIRA VEZ]
Tinha
onze anos quando morri pela primeira vez, num domingo diabólico.
O
choro convulsivo me trouxe de volta, já não mais a mesma.
Tempos
depois morri outra vez, súbita como um soluço
e
no susto, desprevenida, acordei e vi o dia mais branco de todos
E
durante anos fui morrendo, tantas vezes que nem sei
sempre
volto sem um pedaço, sem uma cor
só
um suspiro raso e oco
an
empty shell.
e eu te levaria junto naquele cruzeiro que
ganhei num sorteio com passagem pra dois; eu te juraria amor no deck do navio e
diria amenidades enquanto te conduzo até o parapeito só pra poder te ver 'escorregar'
num tropeço torpe do seu pé torto no meu salto alto; eu te olharia com eterna compaixão
enquanto você escorregasse caindo no oceano e até verteria uma lágrima enquanto
a água te devorasse, gélida; sua cara sumindo em desespero no Pacífico; eu assistiria
tudo, pacificamente.
[E
EU SABIA IRRITAR UM HOMEM]
e eu sabia irritar um homem como ninguém
eu sabia dizer a coisa certa na hora errada pra ofender de forma sangrada e imperdoável
eu sempre soube ter a língua cheia de alfinetes porque um homem duro e impenetrável
me parece por demais enfadonho a placidez mórbida dos psiquiatras por exemplo é
inadmissível e isso vai além da minha vontade própria é quase involuntário espezinhar
por gosto e propósito só pra ouvir o grito obter resposta ver mostrar por dentro
ver até onde eles vão e nessas de brincar de 'espete o bonequinho' me lasquei bonito
quando eles explodiam geralmente os estilhaços furavam meus olhos por isso fiquei
cega toda vez que fui embora.
[ESTIVE
A PONTO]
Estive
a ponto, muito que por um triz não te matei
teu
sexo insosso me fazia querer te esfaquear de quatro
enquanto
de costas, porque não me doía nem me rasgava
perdi
tantas chances pq não tive culhões
pra
limpar toda a bagunça depois: você e seu corpo amorfo
espalhado
pelo carpete, seria um desastre
eu
não teria forças
nem
estômago
Mas
estive a ponto, foi por um triz que não te cravei a faca
na
jugular saltada desse seu pescoço gordo
Sinta-se
feliz por isso
[UMA
VIDA TODA BASEADA EM DESTRUIR]
Uma
vida toda baseada em destruir
embasada
em recomeços e sem fins
embalando
sonhos ocos
um
passafora atrás do outro,
tantos
tropeços
por
isso estes joelhos tão fodidos
–
disse a ortopedista –
[E
TINHA CERTO MAQUIAVELISMO]
E
tinha certo maquiavelismo na doçura.
O
inverso também se dava.
[VOU
RECLAMAR]
Vou
reclamar no Sindicato das Strippers!
Te
botar no PROCON por não ter pago aquela dança no colo que você pediu.
Quem
vai me ressarcir a hora perdida?
A
porra que me manchou as meias de seda, que são francesas?
O
senhor faça-me o favor! Oras, isso não é coisa que se faça.
Quanta
desfaçatez!
Vou
te denunciar, estou indo fazer o B.O. agora, que eu sou profissional do SECSO, entendeu?
Eu
vivo disso, meus gatos dependem disso, como vou agora comprar ração?
Explique
você para os bichinhos, eles estão aqui miando e te maldizendo.
Vou
fazer uma macumba para cair seu pinto.
Pague
meu dinheiro
Apenas
Você
daria uma boa mulherzinha para casar, ele disse, enquanto eu abotoava o corpete;
te vi limpando aquele chão com tanto esmero, e mesmo o bolo horroroso de mandioca
que você fez eu comeria toda manhã com alegria enquanto você passa café para dois.
Você é tão risonha! Eu seria capaz de te ver rindo toda noite assim.
Você
daria uma boa mulherzinha mesmo, me alcançando a toalha como fez agora, depois do
banho. Você é muito atenciosa servindo-se de corpo e boca aberta para mim, daria
uma boa mulherzinha!
Minha
esposa não faz isso, menos ainda “aquilo”, que você faz com tanto carinho! (sim,
ele disse)
Dei
de ombros, peguei meu dinheiro e bati a porta com força.
‘esse
daí nunca mais’, pensei
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM |
Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela
faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
AF
| Pois vamos lá: o que permeia a arte da escrita senão devaneios,
mesmo utilizando-se da auto-ficção?
Por este viés, podemos pensar a poesia e
a literatura como formas de onirismo, válvulas pelas quais se faz possível escaparmos
da realidade através das palavras.
O conceito em si é de uma riquíssima beleza
per se: poemas como sonhos ou viagens, nas quais continuamos sentados no mesmo lugar
(ao menos o corpo, supõe-se, está).
FM |
Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não
apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades
tuas na criação artística?
AF
| Sobre as afinidades com os clássicos e/ou contemporâneos da literatura
brasileira e internacional, incorporei uma influência quase inconsciente da escrita
de Ana Cristina Cesar. Gosto muito também dos contraventores, subversivos,
ditos malditos e marginais.
Gosto muito das tragédias em Nelson Rodrigues,
a brutalidade e a crueza do Rubem Fonseca, o humor ácido e a ironia do Luiz Fernando
Veríssimo, entre outros. Quem me marcou deverasmente foi a Maura Lopes Cançado em
Hospício é Deus, ótimo livro para revisitar
sempre que posso.
Dos escritores de fora, li muito a Hilda,
Anais Nin e o próprio Bukowski, apesar de não usá-los como influência direta, acredito
que sempre nos quedam resquícios na estilística da criação literária, de uma forma
ou de outra.
Vladimir Nabokov, Walt Whitman, o “pai do
verso livre”, grande poeta da Revolução Americana, são escritores que igualmente
permeiam quase que de forma involuntária grande parte dos meus exercícios (ou tentativas
de) na produção textual.
FM |
Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento
na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de
uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto
reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?
AF
| Não utilizo recursos contextuais sócio-políticos, históricos,
ou movimentos sociais quando escrevo. Geralmente falo muito acerca de tragédias
pessoais e histórias relacionadas a minha própria experiência de existir. Há uma
ordem cronológica de acordo com os acontecimentos catastróficos recorrentes na minha
história, essa linha do tempo permeada de escombros e alegria absurda e incrivelmente
efêmera. Viver a vida na plenitude das coisas mundanas me fez criar uma observação
arquivística que transponho no papel de
forma tanto autobiográfica quanto ficcional, mesclando verdades e mentiras que confundem
leitores e, às vezes, até a mim mesma. Sobre catalogar esse tipo de literatura com determinado rótulo
geracional (“poetas nascidos a partir de 1980”), realmente não acredito que no meu
caso se aplique, pois estaríamos tentando racionalizar a fluência e expressão libertária
que é característica da poesia. Apenas sigo escrevendo sem afetações. “E isto avança”.
[ FOLHA DE VIDA ]
Ana Farrah (Rio Grande do Sul, 1981). Teve
sua escrita notada nas redes sociais quando seus textos começaram a ser publicados
em blogs e revistas eletrônicas de literatura contemporânea no Brasil e em Portugal.
Participou da coletânea de contos Sete Pecados, pela editora Scenarium Plural e
da antologia Contemporâneas, na revista
Vidas Secretas, editada por João Gomes. Publicou poemas também no Livro da Tribo,
pela Editora da Tribo. É colaboradora/curadora na Mallarmargens, revista virtual
de poesia e arte contemporânea. Escreve sem eira em poesia sarcástica, mas transita
entre outros estilos. No momento, Ana trabalha com Estética e escreve nos intervalos
entre uma massagem e outra. Publicou o livro Orquídea Trepadeira e outras flores ordinárias, em 2017, pela Editora
Benfazeja; em 2018 publicou Os Mortos do Apartamento
21, pela Editora Patuá. Seu próximo livro, Demônio de Pelúcia, tem previsão para lançamento neste 2019.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO
1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)
Agulha
Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número
127 | Fevereiro de 2019
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC
Edições © 2019
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