[ DEZ POEMAS ]
[O CORPO-FUMAÇA ATRAVESSA]
O corpo-fumaça atravessa
a faixa de pedestres da
rua Rui Barbosa
seu rosto é lonjura – Enigma
não o vejo além da condensação
do café esdrúxulo
que bebo nesta calçada
do cigarro que findo na manhã raivosa
sua costa some entre os raios & as sombras da Cidade
minha vista cambaleia
sou & não
sou – o rosto derrapa
o
dente se parte
a Realidade é
uma brincadeira
que a infância extraviou
me desfaço assim também
como a fumaça
deste café & o corpo dissolvido
das
grandes Cidades
querendo imitar a fogueira sagrada das Velhas Tribos.
[PERDIDO
NESSA BIBLIOTECA]
Perdido nessa biblioteca
Perdido em todos os lugares
Só que agora longe das ruas entupidas com
suas multidões de desesperados
seus imigrantes
carregando entre as mãos
pequenos potes com notas de dois reais
seus olhares de garça na maré poluída
Os estudantes & seus livros didáticos
cheios de saberes
robóticos
preenchem as
praças públicas
de
TODO O MUNDO
nesse momento
Eu prefiro o silêncio dos viciados
O silêncio das prostitutas
O silêncio dos que nunca aprenderam
o artifício da
palavra
Eu prefiro o silêncio
a palidez concreta do pedregulho
ao invés de sua metafísica gasta
Eu prefiro a noite & seus meteoros-madrepérola
o garoto andrógino que quantos sonhos desbravou
nas madrugadas que nossas mães não viram
Sinto meu estômago ruir
minhas vísceras que os urubus aguardam
enquanto no céu qualquer deus desconhecido
cria fábulas & mundos tão ridículos quanto este
tenho vontade
de gritar de dor mas
não posso demonstrar fraqueza
Há olhos em todos os lugares — me
disse o professor da
escola dominical naquela manhã
em que até os pássaros choravam
& ele destilava a sagrada lição
Eu tinha dez ou onze anos
(naquele tempo
o que era Sagrado pra mim?)
& aquela igreja aquela gente querendo parecer correta
os cultos de quarta e domingo foram
a minha aprendizagem definitiva da solidão
depois veio Chet Baker
e os poetas expressionistas alemães
com suas tramas escatológicas
seus suicidas seus
vícios destrutivos
sua linguagem da
desolação
que nenhuma professora de gramática me ensinou
Escondo-me aqui entre os manuais de ética & os imensos
volumes das tragédias
gregas
da violência das manhãs
chuvosas
daquele quarto azul anil que quantos
choros meu enterrou
quando havia ainda
possibilidades
de Restauração
quando eu ainda acreditava
num amor
que não fosse sublime
desespero
Certa vez sonhei com um pajé chorando
na visão
de uma floresta em chamas
&
essa foi a primeira vez que tive medo
dos arranha-céus das grandes corporações
dos que fabricam nossos sonhos de consumo
& tento não pensar tanto assim
não pesar tanto o peito de ferrugem
da visagem do futuro
& por um instante sei que me basta:
Trakl, Baker & Dionísio.
[ME
DIGA O QUE SANGRA TUA BOCA]
o signo da derrota
por que o primeiro trago é
sempre mais profundo
por que Rimbaud largou tudo
& foi simbora
pr’África
destilar o amor
/ se deserdar
da poesia
me diga das aparições da noite
do rock fuleiro nas esquinas
escondidas da cidade velha
por que os jovens não acreditam
mais
no amor dos incêndios
& não mais subvertem as instituições
nem vandalizam a vida a rotina estabelecida
dos nobres senhores
me diga o roteiro desesperado
do nosso país
com a voz lacrimosa dos que sentem
me diga as palavras de ruína
que não estão nos dicionários
& leremos juntos os poetas latino-americanos
que morreram lutando
a loucura das revoluções
me diga esse silêncio
antes que amanheça.
[EIS
QUE O VENTO ESTANCA]
eis que o vento estanca
quando sento-me neste banco de madeira
marrom aprofundado pelo brilho da cera
o pátio aberto — a vista da
sacada dos prédios
nestas arcadas de cimento em que
nenhum homem é sagrado
afasto-me disso com um desânimo
estratosférico
adentro pois a alegria convexa
dos camelôs do comércio
meus amigos astronautas da vida
que entre as Nuvens devaneiam Deus
acendem cigarros indiferentes ao
Tempo
ao relógio à ficção das horas
meus amigos
deuses deslumbrantes do Infinito.
[O FERRO DAS CIDADES INCANDESCENDO
TEUS DIAS]
o ferro das cidades incandescendo teus dias
não há amor nas catedrais em que
oras
& sabes
disto em silêncio
(lembras então os martírios de janeiro)
o mesmo silêncio sob a lamparina do quarto
quando acaricias o cabelo
de M.
& os cabelos entre teus
dedos / metáforas
de
um caminho tão findo
quando caminhares na rodoviária
em que teus sonhos se despedem
esqueça as metáforas
esbaforidas
daqueles mesmos amores
que cultivaste em noites
turvas
Sob a invocação de Dionísio
num sonho de animais sagrados
a onça pintada o lobo-guará
o gavião de rapina
sobrevoando
teu céu
& Roberto Piva uiva horrorizando os
menininhos bem comportados
em
qualquer lugar longe daqui
com Ian Viana clamando poemas no dorso da
loucura sagrada
que Piva propagou
& é a noite que nunca mais chega
que nunca mais vai
&
o mundo morre ali mesmo
na eternidade
venal que escorre.
[MOLOTOVS
NA GARGANTA]
molotovs na garganta
seca
explodem
a palavra dilacerada
pela vida
não canta mais nada
nem aconchego
apenas cacos estilhaçados
nos meus olhos tristes.
[NÃO
POSSO ESPERAR, MEU AMOR]
não posso esperar, meu amor,
eu sou uma pistola automática de solidão
o céu violeta pré-crepuscular
nos teus olhos
um vírus singrando teus orifícios
eu definitivamente não posso esperar
o fim do mundo está demorando demais
& malwares se espalham
por tua vida desconhecida
tua boca diz o silêncio ornamentado
dos leões-marinhos
na rua em que andamos distantes
um do outro
como estranhos que jamais
se tocaram
nos escusos sótãos da madrugada
no delírio pós-festa adocicado
do tesão lunar
se queres segredos, os contarei
se queres prazer, minha língua umedecida
percorrerá teu corpo kármico-espiritual
beijarei teus lábios maiores & menores
à luz das lamparinas diáfanas
mas se queres amor de mim, só
terás engano, serei sincero.
[AGORA
ME PROCURAM OS SERÁFICOS TROVADORES]
agora me procuram os seráficos trovadores
que
tocaram a aurora
os pagãos que adoraram
flores ervas animais
extintos do subúrbio
os heréticos de todas as espécies
me
falarão esta noite
meus amigos tristemente dopados se confessando
a putas de corações
sensibilíssimo
por fim santifiquemos as putas as bruxas
& as mulheres
todas
que nos amaram
santifiquemos
o pecado
o desejo a sedução
& Deus talvez
nos perdoe quando
pela primeira
vez adormecer ébrio
nos seios de
uma mulher.
[VEJO FOTOGRAFIAS
NOS CALOS]
vejo fotografias nos calos
agudos do teu peito
imagens de desolação
uma criança no capô de um carro
acenando aos
teus olhos tristes
a
poeira é tanta aqui
nossos sonhos
morreram
nessas finitudes,
meu amigo,
morreram
sim / as fotografias
calam-se nesse
teu mundo
de
visões perdidas
& no barranco que desfibrila o nosso medo
hastes
erguem-se
centelhas rugem
da tua voz
do
alto desse barranco o céu
parece
tão perto
que lobos uivam
enquanto nos
amamos
[SOMBRA
SEM FUTURO]
sombra sem futuro
que se estende
a poeira da rodovia
que o vento leva
a
canção que trago
nas
costas
pesa
quase
tanto
que tropeço em
notas menores
de
um violão desafinado
que
um índio toca
na beira da transamazônica.
[
TRÊS PERGUNTAS ]
FM
| Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela
faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
RW
| Esses elementos convergiram em mim, de forma sucessiva, sem que eu me desse conta,
já na infância. Só li meu primeiro livro com 11/12 anos, era uma história sobre
futebol que eu reli meses a fio. Foi quando eu descobri o que era liberdade, mesmo
sem saber. Antes disso minha mente reduzia-se ao ambiente cristão em que fui criado,
essa coisa limitadora, que se a gente não se esquivar, vai nos castrando desde cedo.
Uma simples história de futebol me levou a tantas outras, nem tão simples, mas igualmente
libertadoras. O amor veio cedo, doente, como ainda o é, como requer a poesia. E
fui saber disso mais tarde, já nos primeiros poemas. A poesia exige um estado de
estranhamento, de delírio interno, desordem, pelo menos pra mim. Poesia & vida:
uma só coisa. Eu crio tendo esse norte único, e infinitamente diverso por si só.
Tem um poema do Claudio Willer que termina com um verso assim: “meu vínculo é com
a palavra – só”. É isso, e a vida tá vinculada
aí também, no subentendido.
FM
| Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia,
não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas
afinidades tuas na criação artística?
RW
| Hilda Hilst e Roberto Piva, principalmente, me transfiguraram. Eu era outro antes
de lê-los, e ainda hoje, sempre que pego algum livro da Hilda ou do Piva, leio com
um êxtase de descobrimento, o encanto é o mesmo. Mudo, me transfiguro, a cada leitura
deles: nunca é igual. Hilda pela sua busca infinita do intocável, de sua aproximação
do desconhecido, sua vontade de desvelá-lo, amiga da morte, de chamá-la por apelidos!,
está sempre comigo, na transgressão e ousadia que penso ter. Piva pelo ensinamento
fundamental da poesia, que guardo como um talismã. Pela vidência, irreverência.
Seus livros repletos de visões. Essencial.
FM
| Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento
na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de
uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto
reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?
RW
| Acho que estamos interessados em todas as possibilidades. Nós vamos lá e lemos
os concretistas, os expressionistas, os modernistas etc., e absorvemos o que podemos
deles todos, transformando essas leituras na epiderme da nossa própria escrita,
já diferentemente modelada, mas que não preocupamos em nomear porque ela não é uma
coisa só, varia muito de poeta pra poeta. Não creio que haja uma homogeneidade nas
poéticas atuais, quer dizer, no que é pra mim a poética atual: um inconformismo
total. Ou seja, não levo em conta os Bukowskis da internet, as páginas de textos
bonitinhos com milhares de seguidores. Eu falo da escrita de pessoas como Roberta
Tostes Daniel, como Bruno Sanctus, radicalmente diferentes, mas igualmente autênticas.
Entram aí vários exemplos. Mas o que eu quero dizer é isso: nós queremos tudo, não
dispensamos nada. Exceto, é claro, o dispensável. rs.
[ FOLHA DE VIDA
]
Roge Weslen (Pará, 2001). Poeta. Vive
entre o Sonho & o Som.
*****
EDIÇÃO
COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista
convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)
Agulha Revista de
Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 127 | Fevereiro
de 2019
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente |
MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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FLORIANO MARTINS
revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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