[ DEZ POEMAS ]
ABERTURA
um cavalo brilhante de crina negra afunda
os cascos nos umbigos do espírito da terra
suas pernas são de fome e marcham dureza
como teimam todas as asas mal resolvidas
atravessa a cidade sob gritos de tempestade
o raio bestial tateia a pele exposta do mundo
mulheres abrem as pernas para suas janelas
invocando a lua sob o nome de seus amores
frutos despencam das copas ao mesmo tempo
ouvindo o coro dos corpos que agem por cima
e assim vibram juntos os herdeiros das flores
entregues ao delírio oceânico ao mel cadente
o orgasmo – essa anarquia de toda a natureza
ANTIGÊNESE
no princípio era a morte
em ruínas estáticas de esgotamento
a desintegração em tecido único
um não-espelhamento em ponto cego
o breu exalando seu odor rançoso
à falta de caminhos possíveis
em seguida veio o verbo
a mão que se ergue no aglomerado
convocando a luz o reinício do pulso
desamassar ao convexo a face composta
fazer das cinzas seu sustenido etéreo
gerar da queda o ímpeto reverso
PROCISSÃO DE BACO
recolhei os profanos sóbrios
os praticantes do contradelírio
recolhei, recolhei as estátuas
de lábios de gesso
as carnes navais estão passando
bailando na ciranda do desejo
recolhei suas crias selvagens
Baco irá comê-las mudas e cruas
para que não germinem
comê-las cruas e cedo
as carnes navais estão passando
bailando na ciranda do desejo
seus pais e mães, as gêneses do perverso,
dos ovos mal fecundados recolhei
toda a casta impura dos muros do sossego
as carnes navais estão passando
bailando na ciranda do desejo
assim como seus pares, cônjuges soturnos
que nunca derramaram uma gota de vinho
em seus corpos de sucumbida virgindade
recolhei, recolhei os estáticos companheiros
as carnes navais estão passando
bailando na ciranda do desejo
as palavras me engatam a garganta pelas úngulas
escalando paredes massudas de vazio acumulado
sinto o amargo dos farelos as camadas raspadas
a saliva confinada nas grossas grades da afasia
sinto cada gota desse sumo chorumoso e espesso
desgarrado à força na degeneração dos silêncios
tento cobrir a boca reprimir o ímpeto delinquente
numa hipótese vã de fazer descerem os demônios
chego a engolir pressionar empurrar impelir sigilos
mas vozes correm em desespero entre meus dedos
explodindo faringe laringe mandíbula cordas vocais
fere a carne coagula o verbo na arma que impunha
as palavras me sepultam a mudez pela insistência
arrebentando pontos repetidos de eternas suturas
APETITE
basta o desgastante falar das maturações
do tempo do verbo que nunca se alcança
tez algodoada de um azul inquebrantável
onde a palavra é lúcida e a poesia é mansa
que o fruto ainda verde caia sobre as mãos
em um só sentido, uníssono e irreversível
desfazendo-se em grãos ao puir nos dentes
e confronte a etérea solombra atmosférica
com toda a força desgarrada das urgências
interrompendo o tempo sacro da semente
bendita seja a palavra daquilo que se consome
bendita a rebelião do lado de dentro da fome
PRIMAVERA
terra fria de chuva se aloja sob as unhas
germinando arrepios e relvas pele afora
entrelaçando dedos as barbas do jardim
arranham cada partícula da raiz exposta
das mãos espalmadas no campo regado
vem, da garganta de abelhas circulando
e ricocheteia as paredes da minha carne
pelo faro carmim dos Antúrios Sagrados
vem e me descama do súber até a seiva
caído em flor no nosso chão de orvalho
MISE EN PLACE
há um copo de farinha sob a cama
para salvar sonhos aprisionados
meninos com amido entre os dedos
fazem ciranda no limite da ebulição
dourando seus pés no Fogo Sagrado
saltitando em suas simetrias caloríficas
para não se queimarem
meninos um a um desgarrados
trazendo resquícios de brasa na face
nunca retornam ao breve estado do ser
o sal da terra
é duro de moer
entidade ocupada por portais semiabertos
artífice diluidor das palavras do dicionário
antenas captadoras de sopros imagéticos
sintonizando universos não-catalogados
maestro a reger vozes isócronas avulsas
lentes refratoras das luzes inesgotáveis
extraindo a arte para fora das molduras
linha tênue entre insurgente e selvagem
glândula cravejada no corpo do mundo
imersa na estrutura e sob a pele grossa
vítima preliminar de seu próprio produto
orador das percepções não empilhadas,
é tecelão em tarefa constante e laboriosa:
costurar do homem todas as camadas
COSTAS
eu te conheço pelas costas, irmã
pela forma como tua pele se acomoda na carne
entre pintas salpicadas e marcas de nascença
nadando soltas em cada curvatura
te saberia de longe, essas costas orquideais
por onde passa toda a tua seiva e sumo
: compostas tom a tom em paletas brancas,
pétalas deificamente bem delineadas, banhadas
de odor abaunilhado, cria das serpentes órficas
da nuca ao último ponto que tua espinha toca
CASCA
o tempo da delicadeza se dissipa feito a espuma
que se forma na crista da taça de vinho corrente
insiste no gozo sereno, nas bolhas que explodem
entre o tato da janela aberta e seu cálice-ventre
na carne que habito, sutileza é puro impropério
há finas fagulhas que se desprendem do inferno
e pairam em meus poros e esperam pelo sangue
na linha tênue da pele que se afunda em cordas
o meu corpo se debate sob gritos escorchados,
refém de estalos intrínsecos e manias sórdidas
e nós gozamos sob o cheiro de atrito do couro,
sob o sangue que irrompe, sob velas queimadas
: pelo prazer das nossas camadas descascadas.
ENSAIO
cheirava ameixas como quem cheira seu próprio pulso
sugando a atmosfera-fêmea do fruto pulmões adentro
praticava beijos os lábios tocavam cada curva da casca
os dedos quase tangendo o rosto as mãos em conchas
englobando cada vestígio de saliva sobre a película
fina
o cuidado de manter cada fruto sem marcas de dentes
e ensaiava a delicadeza dos movimentos preconcebidos
como quem dança a língua em círculos no mesmo lugar
como quem sabe o rumo o destino final da própria boca
o momento certo para rasgar a casca e mastigar a polpa
abrir uma única ameixa e tê-la inteira desvelada e maciça
cumprir a necessidade do fruto em apenas uma mordida
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
AV | Analisando cada parte desse tríptico, inicialmente,
a poesia me é essencial por ressignificar minha existência. Apenas sob suas lentes
é que consigo gerar e desenvolver ideias, percepções, visões que me fazem criar,
e tenho ela como a minha razão de ser e estar no mundo, meu principal elemento da
vida. O amor me é essencial por fazer tudo isso pulsar com uma intensidade e uma
energia inexistentes em qualquer outro sentimento. Ele representa a vontade, o ímpeto,
a força criativa. A liberdade é um suporte pelo qual a poesia e o amor possam ser
genuínos, é uma folha de papel em branco e a caneta voando da mesa para as nuvens
– é um pássaro mártir.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
AV | Minhas principais afinidades são Roberto
Piva, Hilda Hilst, Marceli Becker, Adélia Prado, Fiori Ferrari e Cecília Meireles,
por serem autores que sempre movimentam engrenagens escondidas, abandonadas em minha
mente. Me despertam para o novo a cada leitura. Surpreendem, assombram. Vão abrindo
infinitas janelas de possibilidades.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas
nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto
na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido
de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento.
O que observas a este respeito?
AV | Também consigo perceber esse renascimento
na poesia pós-1980. A poesia vem tentando cavar cada vez mais fundo na alma e se
cristalizar. O desejo pelo eterno é latente. Os poetas vêm mantendo redes interessantes
entre si, apesar de ainda bastante pulverizadas. Ainda há muitas pontas para conectar,
mas estamos andando num caminho bonito e afetuoso.
[ FOLHA DE VIDA ]
Amanda
Vital (Minas Gerais, 1995) cursa Letras com ênfase em Estudos Literários na UFMG,
em Belo Horizonte, transferida da UFPB. Autora dos livros Lux (Editora Penalux, 2015) e Passagem
(Editora Patuá, 2018). Entre 2014 e 2016, participou do grupo de declamação Aedos, em João Pessoa. Atualmente posta seus
poemas nos blogs “Amanda Vital Poesia” e “Zona da Palavra”, e também produz videopoemas
experimentais. É colaboradora da revista de arte e literatura Mallarmargens.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO
1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)
Agulha
Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número
127 | Fevereiro de 2019
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC
Edições © 2019
Parabéns,lindos poemas,gostosos de ler.
ResponderExcluirParabéns pelos poemas e pela entrevista, Amanda e Floriano!
ResponderExcluirAbraços.