quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

1996 PEDRO DZIEDZINSKI



[ DEZ POEMAS ]

[A ÁGUA DENTRO DA GENTE]

a água dentro da gente
em outra linha do tempo. Teus anos luz de tristeza avançam,
aplaudem-se pálpebras
antes,
tombam afora as fachadas

slow motion
irritadiço
o gozo antes
milésimo. Nosso século afiado. Um menino à porta observa e deixa-se a morte. Teses
tuas à loucura - chove agudo o granizo.

Dormem primeiro os
que choram.


[DISPAROS EM TUA JANELA]

disparos em tua janela - Eros
como um sniper
aljavas trocam-se em coldres
lampejam teleguiados projéteis
teu rosto
a cada noite desfigurado para mim
se recompunha em
queimaduras de primeiro grau

foste por muito
o alvo em meu espelho a prova de balas

por tanto
dispensei-me à patrulha

teus olhos gregos deram início
a terceira guerra mundial


[QUARENTA ANOS VIVEM]

quarenta anos vivem
os rinocerontes - para que em seguida
desfaleçam como capim,
ventania. Disse um amigo que morreríamos
antes de loucura
que surgimos sem chifre, que o couro animal
seria usado para revestir
a cela em que montariam outro - passadas as gerações, atropelados
os homens em bando. Aos vinte e dois anos
eu atravessava a avenida de olhos fechados
como no carnaval dos quadrúpedes
posto de frieza
certo de que sobreviveria.


[EM PARALELO]

em paralelo
aprovamos a escatologia - a defendemos
como a mãe
de todos os passivos, como o filho
que nunca nascerá
pois antes terminaremos, o tempo que não
envelhecerá pois ainda
este mês seremos os dois aniquilados. Eu chorava
ontem por ontem e hoje
via um funeral a minha volta, salivava
cacos de vidro
e me velavam lindos os escatológicos
com promessas de memorial e estátuas minhas de pau
pra fora. Do outro lado, deprecio a loucura
que me silencia aos poucos, pois antes terminará comigo. Eu chorei
hoje por hoje e para sempre,
de cansaço e resolução
vejo um funeral a minha volta, salivo
cacos de vidro
- ainda não subo aos gostos de sangue
mas sei que já falta pouco
e ainda menos para que me anoiteçam.


[UM POEMA VERMELHO]

um poema vermelho
rasga a tarde flama, e assim como
noutros dias
visto-me de rato aos gatinhos. Olhos
rubi à paz invejável
digo, iniciem pelas orelhas, pois não quero
ouvi-los em arrependimento
se começarem - e imploro que comecem - vão
até o fim. Não preocupem-se com a boca
não reclamarei de nada, pelo contrário
poderão ouvir minhas mais sinceras palavras
de incentivo. Um poema vermelho
rasga a tarde flama, entregue, rendido
mas amável. Estico-me bem para que abocanhem,
despudor, os olhos vivos à experiência.
A morte terá o gosto do meu sangue
para sempre
entre seus dentes de sabre.


[O FIM DO MUNDO PROVAVELMENTE]

o Fim do mundo provavelmente
se fundamentará
sem que se perceba. Estaremos neutros,
executando apenas o cotidiano, artífices do
duro Nada. Não ecoarão trombetas, milongas,
nenhuma onda negra assumirá os céus. Na última noite,
enquanto tu de certo abria o registro do chuveiro
para lavar o corpo, e eu sonhava
com um carro a esfarelhar-se comigo sobre
todas as paredes do centro histórico,
tive a certeza de que não morreríamos agora
pois nada está calmo o suficiente
para pegar-nos sem graça,
de surpresa. Sabemos da piedade e do apocalipse; um homem
apaixona-se, um segundo se suicida
enquanto o terceiro lava pratos. É preciso que os três
estejam alheios sobre a louça
para o cataclismo.


[ASSIM COMO PREZAM OS HOMENS-BOMBA]

assim como prezam os homens-bomba
entregues ao apocalipse
para o amor devemos
instalar o aparato periculoso das palavras. Caberá, como nunca
a sutileza, para que se diga: Te amo, mas
não venha. Te quero, mas afasta. Sê a fuga que já me assassina
como o funeral explosivo dos instrumentos. Há de se cuidar também os silêncios, de bums esperançosos. Em suma, cuide para que nada
torne a explodir
pois todos carregam inflames
desníveis de humanidade. Um rombo bastará, e renasceremos
desfigurados. Haverá festa destes artifícios. Serei morto, sei, em algum momento
pois plantaram-me o fogo
pois sinto o corpo pesar à cama

hei de surgir agora.


[COM TUDO, PAUSADO NO PULO EM QUE ME ENCONTRO]

com tudo, pausado no pulo em que me encontro
e nisto dizendo - dormindo
enquanto não estou humanamente
despencando -
fiz para que sonhasse tranquilo
            em tema livre
um mínimo de duas longas noites seguidas.


[LEMBRO-ME QUE AINDA ONTEM]

lembro-me que ainda ontem
te queriam para
a vida. E como me tinham a ela,
a mim diziam todas as barbaridades. Mal o amanhã
chegava e já o teu nome
antes da alvorada. Mal os ouvidos assimilavam os pigarros
e terminavas meu dia
por tabela. Lembro-me que ontem, ainda,
sonhei contigo
e por piedade não deviam ter
me acordado. Foste cruel, inconsciente
como a memória. Anamnese feito o amor de uma Deusa
a um terreno. Tanta barbárie para dormir tranquilo e esquecer-te, se
te desejo esquecer. E quando não lembro, quando desvaneço,
desassossego e
durmo
voltam a querer-te inteira
para a vida.


[É COMO TER-SE PERDIDO SOB TERRÍFICAS]

é como ter-se perdido sob terríficas
estrelas - mas ter ido a lua, antes, acompanhando a primeira mulher
para compreender a tempo o medo
colosso que levo da terra.



[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

PD | Para mim, principalmente a liberdade – sinto-me apto a escrever, a amar e a todo o resto quando finjo liberto.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

PD | Gosto muito do Roberto Piva pela surpresa aniquiladora dos versos. Do Herberto Helder, pela simplicidade. A Hilda Hilst é sem sombra de dúvidas a minha maior referência. É viva.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

PD | Estamos todos mais corajosos para ir adiante com qual seja a ideia. Sinto que se abriram as porteiras e pode-se finalmente fazer o que quiser.


[ FOLHA DE VIDA ]

Pedro Dziedzinski Rocha nasceu em Barra do Ribeiro em 1996. Atualmente reside em Porto Alegre e escreve poemas.


*****

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 127 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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