[ 10 POEMAS ]
ESTRANGEIRISMO
teu toque tapuia
não
conduz-me ao
salto
sequer à queda
nessa
garganta
infinita com
armas empunhadas
por um
corpo convicto
dos teus cartéis e da
tua chuva
transbordando a
palavra
exercitando o
derretimento
matando os
sicários da
minha ilusão
dia-a-dia
viciou-me a
vista essa mania de
te adentrar de
te perfurar com
a leveza dos
meus canhões
de te fazer
acreditar e desacreditar
acreditar e
destruir
erguer-me e
negar
se esgueirar
entre minhas intenções
equilibrando
ideias recém
copiadas porque
nada é tão
novo assim
nada é tão puro
tão virgem
tão original
quanto seus olhinhos
amêndoas ao me
ver chegar
e partir
não há problema
algum em
criar a doença e
a cura, meu bem
nos queimamos só
para abafarmos o
fogo com algum
tipo de memória
ligeiramente
fria e
está tudo bem
mas só enquanto
eu
tiver teus
olhinhos amêndoasescapismo
fazendo brotar a
paz dos
que trepam com a
miragem e só
com ela
A BOCA DE JEAN-LUC GODARD
NO CORPO DE SAFO
língua daquele
homem
eu preciso
varrer o resto de república e
instaurar o
regime do prazer
o regime da
língua daquele homem
minha estrela
d’alva em abate enquanto
ele risca
cometas nas minhas costas
as veias da
língua
as veias do
braço
as veias do sexo
em teiartemísia
tudo aponta
religiosamente para a
hora do lobo
para a hora da
caça e do corpomorfina
pelos que
crescem na direção do kaos
pelos que
inundam-me a fome
um peito deus
que quer morrer ao menos
uma vez entre
minhas pernas
e por isso
furta-me a áurea
o músculo da
língua desse homem me
elevou ao
patamar de Safo como
a primeira numa
ilha do Egeu a fundar
a lírica do
ocidente
mentiu-me
Zaratustra como quem
funda a primeira
religião monoteísta do oriente
fui eu
de mim
toda a ética e
toda a transgressão que
divide o mundo
em dois aquários
rachados e sujos
foi instituída pela
mesma língua
a que pincelou o
aro da minha
existência e de
outra
há sempre outra
outro aro
mais brilhoso
menos rijo que
nunca se rompe de tanto lustrar-se
avant la naissance
après la mort
meu corpo
molhado em
retalhos
anunciando a ruptura
o sono dos
tigres
o sono da língua
desse homem
a delicadeza é
definitivamente
uma outra
dimensão
TRANSVERSADA
todas as coisas
me são lícitas mas
nem tudo me
atravessa nem
tudo me arruina
o desamparo nem
tudo me convém
aliciar minúcias
engolir
também a
silhueta do
poema e seus
espasmos
psicossomáticos
me convém seus
olhos grandes
regando minha
orfandade
me convém
dividir contigo aquele
abacate com
açúcar no meio da tarde
me convém
afundar teus pés numa
mordida num mel
no riacho do meu ventre
me convém arar
teus pensamentos com
meus cílios de
não caber
todas as coisas
me são lícitas mas
nem tudo me
atravessa
é preciso
ritualizar a vida a cidade o
sexo a nuca tua
cintura a gota que escorre
carinhando o
vidro e arrastando a carcaça dos dias
todas as coisas
são sagradas e
se transformam
amiúde
elas lhe invadem
e isso você não
controla
me convém ser
atravessada pelo descontrole
me convém rasgar
o véu da
realidade e me
deitar com
Caeiro e sua
balada lúcida de meio
mundo e um fado
me convém a
ruptura o descumprimento
a fratura da
nossa inutilidade o kaos de
grandes dentes e
alívio
todas as coisas
me são lícitas mas
nem tudo me
atravessa
MAIS FRITA MENOS FARTA
ímpetos e
deslizes
a nova textura
de um fio
que aumenta a
cada fisgada
um anzol
percorrendo meu corpo
rasgando a carne
que não mais aguenta
-
desencantamento
o sangue dessa
carne levando parasitas e
mordidas aflitas
o líquido o
calor o líquido teu labor
liquido meu
sabor
desatino teu
vapor
meu peito como
um tambor desvairado
tão gigante que
quase não cabe teu
verso dobrado
tampouco a gota
dilúvio e seu
deserto inundado
dirá esse poema
de pele surrada
e corpo molhado
as coisas miúdas
aquecendo o túnel
dos meus olhos
afrouxando e
excitando poros
ninando delírios
estirados no meu colo
sou a eternidade
de um
desabrochar de
hiatos e pernas tamanhas
e esse poema com
rima é
uma rinha entre
eu e algumas entranhas
A CONFISSÃO DA LEOA
há um bicho no
meu quarto
unhando-me os
poemas
rasgando minhas
estrias com
perguntas
cauterizadas
palavras andando
de quatro
subindo pelas
paredes
rastejando
mentiras aliciadoras
garras
atravessando coisas elucidadas
exorcizando meus
instintos como se algo lhes
habitasse
meus olhos em
direção à chuva ácida da
desordem
derretendo tudo que é
monumental
as paredes
despindo-se do branco reivindicando
a nudez das
serpentes
minha pele
ardendo de prazer cantando o
desespero dos
signos prostrados ante
o farelo das
cores da vontade
há um bicho no
meu quarto bebendo
da minha
natureza
no hiato da
palavra o cabe nascendo
e morrendo
incessantemente
há mais da morte
na vida que na
própria morte
ver tudo pela
primeira vez
esquecer tudo
pela última vez
há um bicho no
meu quarto e
não há mais
ninguém aqui
O OITAVO DIA
quero ventar no
olho do teu furacão
quero introduzir
a inquietude das
crianças nas
suas palavras sem cólera
quero traduzir
teu olhar pro tupi
quero que a
textura da sua língua não
caiba num poema
quero desamarrar
teu peito e te esparramar
pelos meus
nervos excitados
quero que as
aldeias pagãs prestem culto às tuas
coxas
quero que as
meninas sem imaginação tombem diante do
vulcão do seu
canto
eu criei uma
enxurrada de palavras que
me fizessem
esquecer teu pouco delírio
eu fugi pro colo
dos poetas putos beberrões que
evitam os
jumentos e somente eles
eu bebi o sêmen
que escorre dos sonhos
dos bebês no
ventre de suas mães
eu dei uma
piscadela pro rapaz no metrô
como prova de
que não estou entregue
como prova de
que nada foge do meu alcance
como prova de
que meus pensamentos têm
pernas braços
curvas e vontades próprias
como prova de
que estou definitivamente derretendo
os monumentos
erguidos em dezoito anos de castidade
eu criei o
furacão o olho o fogo as coisas
frias também
eu criei você e
o que você pensa eu criei
seu olhar sobre
mim e criei seu tato que me lembra
outra memória
criada
criei o suspiro
que você me entrega nos dias
em que o pássaro
dos seus dedos me toca
eu criei o
pássaro e o voo embriagado das suas ideias
criei as
cintilâncias das minhas pernas quando
a fome das suas
as devoram
fui criando uma
estória para cada sinal
do seu corpo na
medida em que teus olhos
iam plantando
dálias nos meus olhos
por isso criei
um canteiro e um regador amarelo
pra cuidar das
suas dálias nos meus olhos
criei até a rede
trançada a fio de letra onde coloco
nossos filhos
para dormir nas noites em que
me canso de
criar
criei esse poema
e o homem a quem eu lhe dedico
depois criei a falta
que ele me fez
até o momento
e sei que o
poema e o homem
são tão reais
quanto essa cadeira de couro
vermelho 2001 em
que me sento
nessa madrugada
úmida de verão
CICATRIZ DO DESEJO
desencarnar a
memória eu
já estraçalhei o
sonho proibido
resto inquisidor
mentes quando
juras que
me engoliu
sei da minha
coxa entre seus
dentes
pendurada à
última centelha de
carne e
desilusão
semidevorada
ainda há tanto
nervo
me entenda meu
amor
as coisas nascem
para morrer e
amanhã já não
será eu quem
lhe choverá
eu escuto
religiosamente nosso CD e tua
ciência nas
minhas entranhas nossos
astros a
primavera a caminho teu
cabelo veloz e o
cheiro do cigarro
no pescoço da
minha perda
me entenda meu
amor eu
colheria todas
as dálias da tua
angústia
eu visitaria
seus primos em Niterói com
minha áurea de
não caber-te eu
te escreveria a
letra de fat old sun no
teto da minha
universidade eu
lamberia teu
ócio calcado nos jogadores
latino-americanos
como sempre fiz
tudo isso para
não te perder do
perímetro da
memória eu
não quero
esquecer a tarde em que você
entrou pela
cintura e saiu pelos olhos não
quero perder a
tua imagem rasgando a
lua gigante com
a inocência dum beija-flor
que espalha a
fuga pelo meu corpo
me entenda meu
amor
o sabor da tua fruta
mordida no
céu da minha
boca me dá gana
a mesma gana
daqueles adolescentes que
brigaram no bar
enquanto falávamos da
república em
ruínas
a gana que
forjou-te de marra
cobre e algodão
me entenda meu
amor
the following footsteps never
catches the dreamboat queen foi
você que me
ensinou você que
me encucou o voo
você acendeu
o pavio e
queimou minha largada
me entenda meu
amor
são tempos de
que fazer e a
roda que
dilacera os campos sempre
segue você sabe
a denúncia o
palanque da contradição a
desmesura la revolución do ímpeto
daquelas
magnólias felinas o movimento
é disso que se
trata esse poema
me entenda meu
amor
a queima das
minhas palavras deve seguir e
a fuligem dos
meus lábios que impregnou-te
a sede não cessa
nunca
por isso sei que
é chegada a hora
de ir embora
TEM ÁGUA DE ITIQUIRA NESSE
SEU TIBIRIÇÁ
para Ricardo
Marujo
a ecologia do
espírito lustroso
solar
cintilância criando
imagens
incessantes do
coito das araras
o
vermelho e o
azul balbuciando
minhas coxas
eremitas a
voz de Amelinha
cavando minha
derrelição
o silêncio que
rabisca e
mói meu
pensamento
minha poesia
farinha de
mandioca o
último alimento que
acaba nunca ceia
permanente
fartura e fome
minha língua
dilacerada
umedecendo o
chicote da sua
vaidade
a catequese da
sua
fibra
encantamento como
horizonte
orgásmico ante a
juventude míope
não querer ruir
em delírio e
pretender vida
pretender
sonho e fantasia
esquivando-se da
hora do lobo
as araras pouco
se importam com
o favo com o
beijo antes o
frenesi a lâmina
das bromélias a
morte suspensa
nos cílios a
violação da
pergunta a
intrepidez do
amarelo manga tropical
MARY SHELLEY
eu roda morta
dilacerando a feira
você vendendo
caranguejo no
varejo da minha
sedução nossos
filhos pedindo o
segundo caldo
de cana e você
inundando de
açúcar minha má
vontade e ai
da minha
obsessão querer
dizimar suas
intenções eu
queria não
pensar tanto na estética
dos meus
términos eu queria
não revisitar o
sexo dos homens
que amei eu
queria não ligar tanto para a
estética desses
sexos eu queria
queimar essa
vontade de não realizar de
beber ausência
de beber eu
queria não
contaminar-te com a
velocidade do
meu signo ar já
contaminando já
sem acreditar nessas
gentes carentes
de respostas de mapas de
espelhos essas
gentes
que amaciam o
verbo mas só
rangem os dentes
eu sou de ar sim e
não me amarra a
vírgula teu suor
finco a promessa
de amor no elemento
terra da sua
mentira e mantenho
aceso seu
suspiro fogo nossa
nuvem de ternura
e fuligem
existo em
pedaços em fendas na
metáfora
perfeita onde tudo vale
onde o autor
nasce no pensamento e sai
morto porque é
quando abro a boca que a
cabeça sai
rolando minha garganta guilhotina
meu coração
marat na banheira de sangue
denunciando a
revolução do progresso e da
autoria tudo
para assistir-te vendendo
caranguejos no varejo
da minha sedução por
mais um dia
[ TRÊS PERGUNTAS
]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De
que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
JM | A vida é a criação, e vice-versa. Sem amor a poesia não irrompe,
é broxa; e a liberdade dá o ritmo de tudo. Viver é um constante caminho para
dentro e para fora, é quase sempre uma questão de equilibrar essas distâncias.
Quem escreve um poema arde nos dois sentidos do caminho, porque o amor é quente
e fecundo. Ainda não sei bem da liberdade, às vezes penso ser só uma sensação e
nada mais, nada por trás. O que há são palavras, sempre só palavras, isso já me
satisfaz. As contradições da tríade não deixam a bolsa estourar; e o poeta está
sempre gestando, o que há são sensações de parto.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até
mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos,
poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
JM | Se a escrita é um ritmo, Hilda Hilst é meu grande embalo, ganhei
um livro seu de outra referência – Ian Viana, e desde então estou aprisionada
em seu voo. O motivo está espalhado por toda a obra de Hilda, pelo corpo e pela
metafísica, pelos cachorros e pela busca de Deus, pela loucura paterna e pelo
sexo; é o entendimento do todo que é pura linguagem e abandono. Hilda e Pessoa
funcionam como alicerces, os outros são alimentos, uns mais digestivos que
outros. Já passei meses lendo Florbela Espanca incessantemente na insistência
de engolir delicadeza e morte de uma vez; entendi que foram feitas para
estagnarem na garganta. Breton e os surrealistas foram um salto – agonia e
alívio –, me deram dispositivos e possibilidades preciosas. Marquês de Sade foi
me comendo pelas beiradas, cheguei a pensar que estava ficando louca; foi
quando Octavio Paz me ajudou a entendê-lo. Mautner é o sol tropical
antropofágico, o demiurgo dos meus sonhos, quem, em minha opinião, melhor
transita na zona da infância, juntamente com a potência Manoel de Barros.
Somado à literatura, sou estudante de história, quem me apresentou Hayden
White, o ponto de partida do meu interesse em teoria e na análise dos discursos
historiográficos. Wittgenstein, Foucault, Auerbach, Florence Dupont, são todos
grandes expoentes que já me afetaram em algum momento e que pretendo conhecer
mais a fundo. Penso que a afinidade está mais entre as angústias de quem
escreve que entre os escritos propriamente. A despeito das preferências, é
preciso devorar de tudo, comer a poesia – em especial a brasileira – com farofa
e pimenta; a erudição é a munição do poeta.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de
1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da
escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma
solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O
que observas a este respeito?
JM | Bom, não sei sobre o renascimento dessa lírica, quando termina e
quando ressurge, mas sei da solidariedade explícita e da densidade de uma voz
própria. Nossa geração é desgarrada de tradição, o que nos une é a angústia, a
derrelição. Bebemos movimentos o tempo inteiro, mas quem somos nós? Me parece
que falta a causa, a individualização nos alcançou e o zeitgeist está sufocado.
Essa coisa da voz própria é parte da resposta à aceleração e à reclusão. Aqui
em Brasília criamos um Coletivo Poético chamado Assum Preto, porque assim como
os olhos do pássaro, os nossos vêm sendo furados, mas o canto não pode deixar
de sair. Eu acredito sempre no grupo, em conjuntos de pessoas, na partilha;
ninguém faz nada sozinho. Quem sabe a conjuntura política que enfrentaremos
daqui em diante não nos coloque contra a parede e extraia o álcool da nossa
unidade, creio no potencial das crises.
[ FOLHA DE VIDA ]
Júlia Moura (Brasília,
1999). É graduanda em História na Universidade de Brasília. Por meio de seu
pai, escritor, desde pequena foi estimulada a mergulhar no mundo da literatura.
Integra o Coletivo Poético Assum Preto, junto com outros artistas que pulsam a
veia das nuances latino-americanas, relacionam-se tanto com o verso arma como
com o verso lírio. Militante da poesia, declara fazer parte dessa luta que de
tão vã, se torna imprescindível. Inédita em livro. Contato: juifmoura@gmail.com.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Eugenia
Loli (Grécia, 1973)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 127 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário