quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

1999 JULIA MOURA



[ 10 POEMAS ]


ESTRANGEIRISMO

teu toque tapuia não
conduz-me ao salto
sequer à queda nessa
garganta infinita com
armas empunhadas por um
corpo convicto dos teus cartéis e da
tua chuva transbordando a
palavra exercitando o
derretimento matando os
sicários da minha ilusão
dia-a-dia
viciou-me a vista essa mania de
te adentrar de
te perfurar com a leveza dos
meus canhões
de te fazer acreditar e desacreditar
acreditar e destruir
erguer-me e negar
se esgueirar entre minhas intenções
equilibrando ideias recém
copiadas porque nada é tão
novo assim
nada é tão puro tão virgem
tão original quanto seus olhinhos
amêndoas ao me ver chegar
e partir
não há problema algum em
criar a doença e a cura, meu bem
nos queimamos só para abafarmos o
fogo com algum tipo de memória
ligeiramente fria e
está tudo bem
mas só enquanto eu
tiver teus olhinhos amêndoasescapismo
fazendo brotar a paz dos
que trepam com a miragem e só
com ela


A BOCA DE JEAN-LUC GODARD NO CORPO DE SAFO

eu preciso escrever um poema sobre a
língua daquele homem
eu preciso varrer o resto de república e
instaurar o regime do prazer
o regime da língua daquele homem
minha estrela d’alva em abate enquanto
ele risca cometas nas minhas costas
as veias da língua
as veias do braço
as veias do sexo em teiartemísia
tudo aponta religiosamente para a
hora do lobo
para a hora da caça e do corpomorfina
pelos que crescem na direção do kaos
pelos que inundam-me a fome
um peito deus que quer morrer ao menos
uma vez entre minhas pernas
e por isso furta-me a áurea
o músculo da língua desse homem me
elevou ao patamar de Safo como
a primeira numa ilha do Egeu a fundar
a lírica do ocidente
mentiu-me Zaratustra como quem
funda a primeira religião monoteísta do oriente
fui eu
de mim
toda a ética e toda a transgressão que
divide o mundo em dois aquários
rachados e sujos foi instituída pela
mesma língua
a que pincelou o aro da minha
existência e de outra
há sempre outra
outro aro
mais brilhoso menos rijo que
nunca se rompe de tanto lustrar-se
avant la naissance
après la mort
meu corpo molhado em

retalhos anunciando a ruptura
o sono dos tigres
o sono da língua desse homem
a delicadeza é definitivamente
uma outra dimensão


TRANSVERSADA

todas as coisas me são lícitas mas
nem tudo me atravessa nem
tudo me arruina o desamparo nem
tudo me convém
aliciar minúcias engolir
também a silhueta do
poema e seus espasmos
psicossomáticos
me convém seus olhos grandes
regando minha orfandade
me convém dividir contigo aquele
abacate com açúcar no meio da tarde
me convém afundar teus pés numa
mordida num mel no riacho do meu ventre
me convém arar teus pensamentos com
meus cílios de não caber
todas as coisas me são lícitas mas
nem tudo me atravessa
é preciso ritualizar a vida a cidade o
sexo a nuca tua cintura a gota que escorre
carinhando o vidro e arrastando a carcaça dos dias
todas as coisas são sagradas e
se transformam amiúde
elas lhe invadem e isso você não
controla
me convém ser atravessada pelo descontrole
me convém rasgar o véu da
realidade e me deitar com
Caeiro e sua balada lúcida de meio
mundo e um fado

me convém a ruptura o descumprimento
a fratura da nossa inutilidade o kaos de
grandes dentes e alívio
todas as coisas me são lícitas mas
nem tudo me atravessa


MAIS FRITA MENOS FARTA

ímpetos e deslizes
a nova textura de um fio
que aumenta a cada fisgada
um anzol percorrendo meu corpo
rasgando a carne que não mais aguenta
- desencantamento
o sangue dessa carne levando parasitas e
mordidas aflitas
o líquido o calor o líquido teu labor
liquido meu sabor
desatino teu vapor
meu peito como um tambor desvairado
tão gigante que quase não cabe teu
verso dobrado
tampouco a gota dilúvio e seu
deserto inundado
dirá esse poema de pele surrada
e corpo molhado
as coisas miúdas aquecendo o túnel
dos meus olhos
afrouxando e excitando poros
ninando delírios estirados no meu colo
sou a eternidade de um
desabrochar de hiatos e pernas tamanhas
e esse poema com rima é
uma rinha entre eu e algumas entranhas


A CONFISSÃO DA LEOA

há um bicho no meu quarto
unhando-me os poemas
rasgando minhas estrias com
perguntas cauterizadas
palavras andando de quatro
subindo pelas paredes
rastejando mentiras aliciadoras
garras atravessando coisas elucidadas
exorcizando meus instintos como se algo lhes
habitasse
meus olhos em direção à chuva ácida da
desordem derretendo tudo que é
monumental
as paredes despindo-se do branco reivindicando
a nudez das serpentes
minha pele ardendo de prazer cantando o
desespero dos signos prostrados ante
o farelo das cores da vontade

há um bicho no meu quarto bebendo
da minha natureza
no hiato da palavra o cabe nascendo
e morrendo incessantemente
há mais da morte na vida que na
própria morte
ver tudo pela primeira vez
esquecer tudo pela última vez
há um bicho no meu quarto e
não há mais ninguém aqui


O OITAVO DIA

quero ventar no olho do teu furacão
quero introduzir a inquietude das
crianças nas suas palavras sem cólera
quero traduzir teu olhar pro tupi
quero que a textura da sua língua não
caiba num poema
quero desamarrar teu peito e te esparramar
pelos meus nervos excitados
quero que as aldeias pagãs prestem culto às tuas
coxas
quero que as meninas sem imaginação tombem diante do
vulcão do seu canto
eu criei uma enxurrada de palavras que
me fizessem esquecer teu pouco delírio
eu fugi pro colo dos poetas putos beberrões que
evitam os jumentos e somente eles
eu bebi o sêmen que escorre dos sonhos
dos bebês no ventre de suas mães
eu dei uma piscadela pro rapaz no metrô
como prova de que não estou entregue
como prova de que nada foge do meu alcance
como prova de que meus pensamentos têm
pernas braços curvas e vontades próprias
como prova de que estou definitivamente derretendo
os monumentos erguidos em dezoito anos de castidade
eu criei o furacão o olho o fogo as coisas
frias também
eu criei você e o que você pensa eu criei
seu olhar sobre mim e criei seu tato que me lembra
outra memória criada
criei o suspiro que você me entrega nos dias
em que o pássaro dos seus dedos me toca
eu criei o pássaro e o voo embriagado das suas ideias
criei as cintilâncias das minhas pernas quando
a fome das suas as devoram
fui criando uma estória para cada sinal
do seu corpo na medida em que teus olhos
iam plantando dálias nos meus olhos
por isso criei um canteiro e um regador amarelo
pra cuidar das suas dálias nos meus olhos
criei até a rede trançada a fio de letra onde coloco
nossos filhos para dormir nas noites em que

me canso de criar
criei esse poema e o homem a quem eu lhe dedico
depois criei a falta que ele me fez
até o momento
e sei que o poema e o homem
são tão reais quanto essa cadeira de couro
vermelho 2001 em que me sento
nessa madrugada úmida de verão


CICATRIZ DO DESEJO

desencarnar a memória eu
já estraçalhei o sonho proibido
resto inquisidor
mentes quando juras que
me engoliu
sei da minha
coxa entre seus dentes
pendurada à última centelha de
carne e desilusão
semidevorada
ainda há tanto nervo


PARA QUE NÃO PERMANEÇA

me entenda meu amor
as coisas nascem para morrer e
amanhã já não será eu quem
lhe choverá
eu escuto religiosamente nosso CD e tua
ciência nas minhas entranhas nossos
astros a primavera a caminho teu
cabelo veloz e o cheiro do cigarro
no pescoço da minha perda

me entenda meu amor eu
colheria todas as dálias da tua
angústia
eu visitaria seus primos em Niterói com
minha áurea de não caber-te eu
te escreveria a letra de fat old sun no
teto da minha universidade eu
lamberia teu ócio calcado nos jogadores
latino-americanos como sempre fiz
tudo isso para não te perder do
perímetro da memória eu
não quero esquecer a tarde em que você
entrou pela cintura e saiu pelos olhos não
quero perder a tua imagem rasgando a
lua gigante com a inocência dum beija-flor
que espalha a fuga pelo meu corpo
me entenda meu amor
o sabor da tua fruta mordida no
céu da minha boca me dá gana
a mesma gana daqueles adolescentes que
brigaram no bar enquanto falávamos da
república em ruínas
a gana que forjou-te de marra
cobre e algodão
me entenda meu amor
the following footsteps never
catches the dreamboat queen foi
você que me ensinou você que
me encucou o voo você acendeu
o pavio e queimou minha largada
me entenda meu amor
são tempos de que fazer e a
roda que dilacera os campos sempre
segue você sabe
a denúncia o palanque da contradição a
desmesura la revolución do ímpeto
daquelas magnólias felinas o movimento
é disso que se trata esse poema
me entenda meu amor
a queima das minhas palavras deve seguir e
a fuligem dos meus lábios que impregnou-te
a sede não cessa nunca

por isso sei que é chegada a hora
de ir embora


TEM ÁGUA DE ITIQUIRA NESSE SEU TIBIRIÇÁ

para Ricardo Marujo
a ecologia do espírito lustroso
solar cintilância criando
imagens incessantes do
coito das araras o
vermelho e o azul balbuciando
minhas coxas eremitas a
voz de Amelinha cavando minha
derrelição
o silêncio que rabisca e
mói meu pensamento
minha poesia farinha de
mandioca o último alimento que
acaba nunca ceia permanente
fartura e fome
minha língua dilacerada
umedecendo o chicote da sua
vaidade
a catequese da sua
fibra encantamento como
horizonte orgásmico ante a
juventude míope
não querer ruir em delírio e
pretender vida pretender
sonho e fantasia esquivando-se da
hora do lobo
as araras pouco se importam com
o favo com o beijo antes o
frenesi a lâmina das bromélias a

morte suspensa nos cílios a
violação da pergunta a
intrepidez do amarelo manga tropical


MARY SHELLEY

eu roda morta dilacerando a feira
você vendendo caranguejo no
varejo da minha sedução nossos
filhos pedindo o segundo caldo
de cana e você inundando de
açúcar minha má vontade e ai
da minha obsessão querer
dizimar suas intenções eu
queria não pensar tanto na estética
dos meus términos eu queria
não revisitar o sexo dos homens
que amei eu queria não ligar tanto para a
estética desses sexos eu queria
queimar essa vontade de não realizar de
beber ausência de beber eu
queria não contaminar-te com a
velocidade do meu signo ar já
contaminando já sem acreditar nessas
gentes carentes de respostas de mapas de
espelhos essas gentes
que amaciam o verbo mas só
rangem os dentes eu sou de ar sim e
não me amarra a vírgula teu suor
finco a promessa de amor no elemento
terra da sua mentira e mantenho
aceso seu suspiro fogo nossa
nuvem de ternura e fuligem
existo em pedaços em fendas na
metáfora perfeita onde tudo vale
onde o autor nasce no pensamento e sai
morto porque é quando abro a boca que a
cabeça sai rolando minha garganta guilhotina
meu coração marat na banheira de sangue
denunciando a revolução do progresso e da
autoria tudo para assistir-te vendendo
caranguejos no varejo da minha sedução por
mais um dia


[ TRÊS PERGUNTAS ]


FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

JM | A vida é a criação, e vice-versa. Sem amor a poesia não irrompe, é broxa; e a liberdade dá o ritmo de tudo. Viver é um constante caminho para dentro e para fora, é quase sempre uma questão de equilibrar essas distâncias. Quem escreve um poema arde nos dois sentidos do caminho, porque o amor é quente e fecundo. Ainda não sei bem da liberdade, às vezes penso ser só uma sensação e nada mais, nada por trás. O que há são palavras, sempre só palavras, isso já me satisfaz. As contradições da tríade não deixam a bolsa estourar; e o poeta está sempre gestando, o que há são sensações de parto.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

JM | Se a escrita é um ritmo, Hilda Hilst é meu grande embalo, ganhei um livro seu de outra referência – Ian Viana, e desde então estou aprisionada em seu voo. O motivo está espalhado por toda a obra de Hilda, pelo corpo e pela metafísica, pelos cachorros e pela busca de Deus, pela loucura paterna e pelo sexo; é o entendimento do todo que é pura linguagem e abandono. Hilda e Pessoa funcionam como alicerces, os outros são alimentos, uns mais digestivos que outros. Já passei meses lendo Florbela Espanca incessantemente na insistência de engolir delicadeza e morte de uma vez; entendi que foram feitas para estagnarem na garganta. Breton e os surrealistas foram um salto – agonia e alívio –, me deram dispositivos e possibilidades preciosas. Marquês de Sade foi me comendo pelas beiradas, cheguei a pensar que estava ficando louca; foi quando Octavio Paz me ajudou a entendê-lo. Mautner é o sol tropical antropofágico, o demiurgo dos meus sonhos, quem, em minha opinião, melhor transita na zona da infância, juntamente com a potência Manoel de Barros. Somado à literatura, sou estudante de história, quem me apresentou Hayden White, o ponto de partida do meu interesse em teoria e na análise dos discursos historiográficos. Wittgenstein, Foucault, Auerbach, Florence Dupont, são todos grandes expoentes que já me afetaram em algum momento e que pretendo conhecer mais a fundo. Penso que a afinidade está mais entre as angústias de quem escreve que entre os escritos propriamente. A despeito das preferências, é preciso devorar de tudo, comer a poesia – em especial a brasileira – com farofa e pimenta; a erudição é a munição do poeta.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

JM | Bom, não sei sobre o renascimento dessa lírica, quando termina e quando ressurge, mas sei da solidariedade explícita e da densidade de uma voz própria. Nossa geração é desgarrada de tradição, o que nos une é a angústia, a derrelição. Bebemos movimentos o tempo inteiro, mas quem somos nós? Me parece que falta a causa, a individualização nos alcançou e o zeitgeist está sufocado. Essa coisa da voz própria é parte da resposta à aceleração e à reclusão. Aqui em Brasília criamos um Coletivo Poético chamado Assum Preto, porque assim como os olhos do pássaro, os nossos vêm sendo furados, mas o canto não pode deixar de sair. Eu acredito sempre no grupo, em conjuntos de pessoas, na partilha; ninguém faz nada sozinho. Quem sabe a conjuntura política que enfrentaremos daqui em diante não nos coloque contra a parede e extraia o álcool da nossa unidade, creio no potencial das crises.



[ FOLHA DE VIDA ]

Júlia Moura (Brasília, 1999). É graduanda em História na Universidade de Brasília. Por meio de seu pai, escritor, desde pequena foi estimulada a mergulhar no mundo da literatura. Integra o Coletivo Poético Assum Preto, junto com outros artistas que pulsam a veia das nuances latino-americanas, relacionam-se tanto com o verso arma como com o verso lírio. Militante da poesia, declara fazer parte dessa luta que de tão vã, se torna imprescindível. Inédita em livro. Contato: juifmoura@gmail.com.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 127 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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