terça-feira, 1 de janeiro de 2019

ENIGMAS DA PEDRA LASKADA



INTRODUÇÃO | Na verdade, trata-se de provocações para levar Zuca Sardan, Pedro Kz e Floriano Martins a falarem sobre questões que a prática da recensão traz à tona, especialmente, claro, as relações entre o ver e o dizer. Responde quem quiser, um, dois ou todo mundo. Ou ninguém. Também podem levar a provocação pelo lado que acharem melhor e até mesmo ignorar a pergunta e formular outra. Por sugestão de Zuca, as “perguntas” passam a se chamar “enigmas”. [Anita Borgia]


ENIGMA 1 | Dizia Hermógenes que a descrição é força dinamizadora

ANITA: Bem, como este número do Katalox é todo dedicado à prática da recensão, o primeiro enigma é sobre a antiga e fértil tradição da écfrase (descrição). Certos textos de tipo descritivo-narrativo chegaram a constituir um gênero, estabelecendo uma relação referencial e representacional com um objeto plástico (que é proposto como autônomo em relação ao discurso que tenta representá-lo). O bacana é que não se trata pura e simplesmente de uma descrição “minuciosa e vívida” (como nos informam verbetes de dicionários): Hermógenes define a écfrase como uma descrição que coloca o objeto frente aos olhos e - aqui vem para mim a melhor parte - que tem a virtude da energia. A écfrase é uma força, um impulso dinamizador do objeto de representação. Acho lindo duas coisas: primeira, o reconhecimento de que objeto plástico e texto que tenta representá-lo sejam autônomos; e segunda, que a descrição seja vista como dinamizadora do objeto plástico (também vale vice-versa). Lendo as suas recensões, reconheço nelas a tradição ecfrástica, mas vejo também algo de muito diferente. Gostaria de saber como vocês definem essas recensões surrealistas e como as relacionariam com a tradição da écfrase.

ZUCA: O Surrealismo Totêmico, que desde há mais de 40 séculos se bate contra o Aristotelismo Acadêmico, adora desmontar o pensamento racional que s’imagina ter a Verdade na barriga… quando a menina nascer, será bela… e… racional. Então o Surrealismo, entre outras coisas, tem a mania de desmantelar a racionalidade, pra escândalo das pessoas bem pensantes. Assim, a descrição diferente do objeto, desbalança os dois e cria justamente uma nova realidade (surrealidade) do objeto e da descrição, que a ambos dinamiza.

ANITA: Como assim, “descrição diferente do objeto”, Zuca? As descrições não correspondem ao objeto descrito? Ou correspondem, mas em outro sentido? Ou não tem importância? Talvez o Floriano e o Pedro ajudem também a esclarecer sua resposta.

DR. FLOR: Começando pelo próprio título de nossa mesa de inquietações, eu penso em Katalox como a arte da não-catalogação, daí que me interesse muito pouco por definições de qualquer ordem. A doxa ou crença comum não me interessa tanto quanto o paradoxo. Daí até a écfrase, o que me anima, mais do que a minucia da descrição, é a possibilidade de criar infinitas leituras de um mesmo objeto. Neste sentido, os Retratos-relâmpagos do Murilo Mendes integram a mesma família de As cidades invisíveis, Gog e Vidas imaginárias, respectivamente de Italo Calvino, Giovanni Papini e Marcel Schwob, com o atrativo de não se submeterem ao Grande Capital, sendo, ao mesmo tempo, representação tanto da realidade quanto da imaginação. O objeto posto diante dos olhos deve deixar-se impregnar de nossa visão, distinta em cada um de nós e a cada olhada, de modo que a minúcia interessa como geratriz de multiplicidades. Daí que nosso Katalox jamais poderia ser um catálogo, mas antes, parafraseando o já lembrado Calvino seria uma coleção de areia. Jamais um acervo de peças vítreas.

ANITA: Não tem como classificar em espécies, Floriano? Vai total antiaristóteles?

ZUCA [percebendo que Floriano está embatucado, resolve intervir]: Pois é Ana, o Pedro sabe muito desse assunto…

DR. FLOR: Eu não andava embatucado com nada, Zuca, e sim à espera da manifestação do Pedro e a tua. De qualquer modo Aristóteles acabou esquecendo que a causa central da razão é a acidental. A lógica é uma espécie de descuido da imaginação.

PEDRO: É preciso lembrar que Aristóteles não foi somente o pai da balela iluminista classificatória, mas também o inventor do purgante catártico, sem o qual as artes teriam sido há muito excluídas do horizonte republicano.

ANITA: Pedro, cadê sua adivinhação do enigma 1? Não encontrei nos meus papéis.

PEDRO: Cá está: Obrigado, feroz Esfinge, por juntar as peças desse primeiro Enigma!
O Hermógenes merece uma coroa de louros nova em folha por mostrar que a descrição vem investida de uma energia especial, tão bem definida no dueto gracioso “minuciosa e vívida”. Minúcia pululante, que chega até nós numa corrente elétrica, de priscas eras, em mosaicos, tapetes e iluminuras. Hermógenes olha para o novo recurso da descrição visionária e entende que o orador, o poeta e o artista visual (e por que não o músico, o ator, o dançarino e o ceramista, tão profundamente implicados nessa mesma sensibilidade mimética…?) têm acesso a um formidável recurso de transporte para a imaginação. Entramos no território de universos em suspensão… Mas ocorre, entretanto, que até o maravilhoso acaba por tornar-se vazio se o poeta e o público não injetarem um grão de fanatismo – de crença numa ideia transformadora, como a dos grandes sobrenaturalistas… Mas o sobrenaturalismo precisa ganhar impulso por via de um atrito íntimo com o naturalismo, o classicismo com o romantismo, este último com o realismo, o surrealismo com o pragmatismo pequeno-burguês… E a recensão é mais do que descrição, pois segue em frente motivada pelo impulso de inquirição, vai caminhando e fazendo o balanço.

DR. FLOR: Espécies visíveis e invisíveis, existentes e inexistentes, sonhadas e lembradas? Uma vez convertidos em arte todos os animais se irmanam, Ana, todas as visões e palpites.

ZUCA: Exatamente como na Arca de Noé… que era como uma espécie de esboço da Liga das Nações. Não havia animais ricos e animais pobres, era um verdadeiro socialismo materialista dialético, em que todos trabalhavam para o desenvolvimento quinquenal das espécies. À tardinha, Noé, de bonezinho, gostava de bebericar um conhaque e conversar com o papagaio, que lhe contava suas recordações do Jardim do Paraíso, de que Adão foi expulso por razões que o Papagaio parabolizava… “Pois é… o Adão perdeu a mamata por sua mania de ficar nu de repente… sem querer explicar suas razões…”


ENIGMA 2 | “Não me descubras, se a liberdade te é cara, porque a minha face é cárcere do amor”.

ANITA: Então, a gente conta – com palavras – o que viu – com os olhos do corpo, do coração, da mente – pois o que viu está oculto a quem se fala, no momento em que se fala. Alguém não viu e a posição vital desse alguém é muito diferente da de quem viu. Horst Bredekamp, o historiador da arte, baseia todo seu trabalho em Teoria do acto icónico em uma afirmação de Da Vinci, na qual este último se refere ao costume existente de cobrir as pinturas e descobri-las apenas em ocasiões festivas: “Não me descubras, se a liberdade te é cara, porque a minha face é cárcere do amor”. Da Vinci procurava ilustrar o arrebatamento ao que as imagens, com sua “força intrínseca”, levam; Bredekamp acredita ser esta uma frase das mais reveladoras do poder das imagens sobre quem as vê e a partir daí reflexiona sobre a capacidade de a matéria “morta” “viver” nas imagens e agir como uma força independente sobre os seres humanos. Nas recensões, segundo o que entendi, a presença da imagem se dá apenas através das palavras. E então, já que palavra e vista seduzem de modo diferente, que diriam sobre a passagem do “arrebatamento” visual? De que modo a matéria “morta” passa das imagens para as palavras e age sobre os seres humanos?

ZUCA: A recensão moderna, do século XIX, decorreu da qualidade incipiente da photographia e typographia, pelo que, para catálogos e livros baratos, era necessária uma explicação do que representava a foto escura… Este texto explicativo era a recensão, preparada por professores e críticos que conheciam o quadro em questão, e o descreviam, e debitavam considerações sobre a arte do momento, e outras divagações que permitisse o espaço de que dispunham debaixo da foto-borrão, que parecia dizer: “Não me descubras, oh, bom rapaz, porque minha visão é cárcere do amor”, em voz roufenha a gitana nua, s’espreguiçando no sofá de Goya…

DR. FLOR: Não é propriamente ou em isolado a palavra quem determina a compreensão da imagem. Eu diria que antes atua a percepção, de modo que pode haver um Katalox de imagens sonoras, por exemplo. A única matéria morta é aquela onde não se realiza uma interação, um diálogo, uma relação amorosa. A razão não constitui um de nossos seis sentidos, de modo que é na percepção que fundamos a singularidade de nossa existência. A razão se distrai com seus monstros.

PEDRO: O Horst Bredekamp parece um autor interessante… O poder das imagens é fonte de paixões obsessivas e de empreendedorismo maníaco… Leonardo foi um inventor de maravilhas, um planejador de dispositivos, interessado no controle dos efeitos de arrebatamento, no jogo com a visibilidade e o desaparecimento… Vendo as coisas a partir do outro campo: se o verbo parece ser o emissário titular do entendimento das coisas, o texto descritivo procura emular a mímese visual e seu poder de sedução. Nisso, a descrição descobre recursos próprios, que cativam de modo diferente o leitor… Ao postular uma correspondência entre texto e imagem, os gêneros da ilustração e da ecfrase estabelecem um ponto de encontro hipotético, em que tem lugar o início de um jogo de esconde-esconde. Os ilustradores do Katalok irão fazer com que o desencontro prossiga, adiando sempre a possibilidade de um reencontro final.

DR. FLOR: Horst poderia ilustrar o mundo com sua lupa. Assim como Leonardo recriou o mundo com molas e dobradiças. O maior truque mimético é o da inversão dos originais, mimese é em essência ilusão. O verdadeiro reencontro será sempre uma sátira.


ENIGMA 3 | … “como desenhei a baleia maior, o navio há de levar a pior”

ANITA: Gostaria que comentassem o texto abaixo. É uma citação de O cavaleiro inexistente, do Ítalo Calvino. Como sabem, a narradora é uma freira, que narra para cumprir uma penitência. Às vezes cansa, e então narra narrando as imagens que produz – e que não vemos –, porque com elas conta mais rápido. As imagens não só narram, mas parecem obrigar a narrativa a ir para um lado ou para outro. Esta é uma variante, um subgênero da recensão? Ou alguma coisa totalmente diferente?

Tudo isso que agora assinalo com pequenas linhas onduladas é o mar, ou melhor, o oceano. Agora desenho o navio em que Agilulfo viaja, e aqui ao lado desenho uma enorme baleia, com a tira de papel e a legenda “Mar Oceano”. Esta flecha indica o percurso do navio. Posso também fazer outra flecha que indique o percurso da baleia; pronto: se encontram. Assim, nesse ponto do oceano vai acontecer o choque da baleia com o navio e, como desenhei a baleia maior, o navio há de levar a pior. Agora desenho tantas flechas cruzadas em todas as direções para significar que neste ponto entre a baleia e o navio decorre uma batalha feroz. Agilulfo combate com seus pares e enterra sua lança num flanco do cetáceo. Um jato nauseante de óleo de baleia o atinge, o que represento com estas linhas divergentes.

ZUCA: Trata-se de belo texto, de natureza bem recencional, mas para que seja mesmo recensional, precisaria levar uma ilustraçâo em cima. Mas, se ilustrada, assim a posteriori, seria um caso típico de uma recensâo retrospectiva, porque a descriçâo estaria sendo feita antes da ilustração.

DR. FLOR: Ah aqui está ele, Calvino. E aqui está rediviva a preocupação, da qual não participo, de nomear os vícios da linguagem. Exceto quando quero me divertir com eles. Quando quero fazer da linguagem um bufão, e da realidade uma pantomima. Geoffrey Chaucer e a bela Sheherazade encontraram-se uma noite e ela se pôs a cantar para ele e seu timbre, mais do que o relato das canções, levou o cortesão inglês por terras há muito apagadas da memória. Ao despertar do sol Chaucer impressionou-se com o que se apressou a julgar ter sido um sonho. O cego Borges certamente contaria essa história mudando os personagens para Boccaccio e Cobra Grande. E o timbre da voz feminina não teria atuado com a mesma força que seu sotaque de sílabas quebradas. Somos sempre alguém totalmente diferente do que imaginamos ou supomos ser.

PEDRO: A monja traçou seu plano de recriação da luta dos cavaleiros-arpoadores contra as baleias… num estilo linha clara tachista, ligeiramente escatológico. Os sinais desenvolvem uma coreografia que parece sair do papel… movida pela matéria ou letra morta, como o afresco descascado de Pisanello, S. Jorge e a Princesa de Trebisonda, ou o poema filosófico de Lucrécio, De rerum natura, que dariam bom combustivel. Nos EUA havia um crítico de cinema, Farber, que também era pintor e transformou enredos de faroestes, filmes de gangster e do gordo e o magro em naturezas mortas. Nas composições dele, o percurso dos objetos corresponderia, supostamente, à linha dramática do filmes. “Uma démarche” que bem condiz com nossa proposta de entretenimento e formação estética…


ENIGMA 4 | Banksy [toc-toc-toc]

ANITA: Ih, o enigma sumiu. Mas era para comentar a pegadinha de 1,4 milhão de libras esterlinas do Banksy. Quem quiser, pode olhar aqui: https://seuhistory.com/noticias/obra-do-artista-plastico-banksy-se-autodestroi-apos-venda-milionaria

ZUCA: Eis que, bem no estilo Bansky, o Enigma 4 desapareceu, tal as obras de Bansky se derretem, ou explodem, durante o leilão a que estão sendo expostas. Valeria talvez uma recensão, com um quadro em preto. Ou em branco?… Eis o Enigma.

DR. FLOR: Mas eu havia escrito algo aqui, o que houve?

PEDRO: Esse enigma pra mim é mortal. Em matéria de autodestruição da obra e multiplicação do ouro, eu chego, no máximo, ao Yves Klein, e assim mesmo num laivo de futilidade retrô. Devore-me, Esfinge!

ANA: A Esfinge está dormindo, Pedro. Como sabe, sou apenas a mensageira. Quando ela acordar eu dou o recado e se ela estiver com fome…


DR. FLOR: Encontrei, encontrei, estava malocada sob a saia da giganta Experidiana.
A ele eu prefiro os narradores apócrifos, aqueles de quem nós herdamos a prosa entranhável das mitologias. Os relatos à beira do fogo. Os contos dos grandes anônimos. Porém logo me digo que não tenho que preferir os papiros medievais ao estêncil de Robert Banks. O que salta aos olhos, e não falo aqui de um caso específico, é a obsessão da autoria. Mesmo quando o criador bola um plano em torno de si para a permanência do mistério. Quando pensamos no futuro daquilo que criamos, o que se nos impõe com mais veemência: o reconhecimento de nosso nome pelas futuras gerações ou a perenidade da criação?

ANA: Será que alguma dessas duas preocupações continuará existindo, Dr. Flor? E por quanto tempo? Digo por que estou de acordo com você, no sentido da existência de uma obsessão de autoria. Mas essa obsessão, em termos históricos, é relativamente nova e não sei quanto mais pode resistir, considerando todas as atuais tecnologias de reprodução. O mercado da arte, neste sentido, há de ser a força mais conservadora, porque lhe interessa a continuidade da obsessão, já que paga-se pela assinatura. Aliás, a ironia de todo o caso Banksy está em que o mecanismo que ele idealizou para destruir a obra enguiçou antes de terminar e a obra foi rebatizada e dobrou de valor com esse meio-picote. “Banksy não destruiu uma obra de arte durante o leilão, mas criou uma”, afirmou em comunicado Alex Branczik, chefe do departamento de arte contemporânea da Europa da Sotheby's. A compradora, que segundo a Sotheby's é uma colecionadora europeia, disse ter ficado ‘sentida no início’. ‘Mas pouco a pouco me dei conta de que iria possuir um pedaço da história da arte’, explicou no comunicado” [http://horadesantacatarina.clicrbs.com.br/sc/geral/noticia/2018/10/banksy-admite-que-pretendia-total-autodestruicao-de-obra-leiloada-10623851.html]. Pronto. Que bonito. “Um pedaço da história da arte”, então tá. Nem o Branczik nem a compradora querem perder dinheiro, né?


ZUCA: Preferia que a Musa Bellona, da Posteridade, viesse, numa operação retrospectiva me reconhecer agora, e não ficasse escondida atrás da lápide, porque seu bundão avulta além da borda.


ENIGMA 5 | “Ah se ao menos soubéssemos o que existe!”

DR. FLOR: A frase, de Freud, finaliza sua tradução das aulas de Charcot, por ele assistidas quando ainda jovem estudante em Salpêtrière. A partir dela podemos distinguir entre arte e ciência, usando por parâmetros a mentira e o paradoxo. Como navegar em tais águas com dois livros de bordo ostentando em cada capa Criação e Descoberta?

PEDRO: Muito bem, vamos por partes, mas para encontrar uma saída para esse enigma, temo que seja preciso um otimismo de gigante. Freud, como sabemos, acreditava em primeiro lugar na capacidade humana de se auto-iludir, e talvez devamos nos aferrar a essa certeza básica. Passando a outro ponto, quem sabe não é possível considerar novamente a hipótese da criação, no domínio da física e da metafísica, quem sabe… A radicalidade do surgimento do novo não poderia ser intuída pela radicalidade, talvez mais evidente, da morte, do desaparecimento total?… Quanto ao tópico da descoberta, é preciso ponderar que se pode passar muito tempo sem descobrir o que quer que seja. A tábua de salvação pode ser a redescoberta, ou, como disse o filósofo, a rememoração do que já se sabia…

ZUCA: Não se pode saber o que se sabia há milênios… e todos os sábios das diferentes correntes esotéricas pregam o hermetismo, a rolha, não se deve contar o segredo pra ninguém, a não ser pros discípulos… e os discípulos fazem rolha mais cerrada que a dos velhos sábios… E a ciência racional cascateia à vontade. Conta quantas pernas tem o besouro, a Filosofia inventa uma série de teoremas lógicos mais preciosos que o manto do Rei Nu, os americanos filmam a lunissagem de seu foguete no quintal da Nasa, e vendem pedrinhas da Lua numa Feira de Astronomia.


ANITA: Eu bem que comprava uma pedrinha da Lua. Mas preferia um rabo de cometa.

DR. FLOR: Sem sair da mesa de autópsia desse cadáver mutilado, começaria pelo engano de Freud, posto que talvez haja melhor solução para a descoberta do ser, ao invés de iludir-se a si mesmo, em sua obsessiva afirmação e permanente vigília em todos os elementos constitutivos da existência. Resta saber se a certeza acaso seria algo mais do que uma sofisticada forma de ilusão. Observando agora os órgãos vitais, a ideia do novo é um truque gasto e pode ser extraída como uma vesícula, um apêndice, sem causar maior dano ao todo. Resta saber se o homem algum dia aprenderá a desarmar essa bomba, se aprenderá a conviver sem a fraude da novidade perene. Por último anotemos a condição dos membros, a mecânica da memória, o movimento sistemático das sombras, a vileza do conceito de descoberta. Evidente que por trás desse biombo, como no caso do acaso, se encontra, esperneando, uma prosa que acredita na fixidez das formas e na exortação capitular do tempo. Resta saber se a redescoberta convenceria o mundo de sua existência tanto fabular quanto real.

ZUCA: Se a fixidez da forma for mostrada na televisão, todo mundo acredita. É como a alunissagem no quintal do General Walter. Mas o homem jamais conviverá sem o conceito da novidade. Como precisa acreditar nalguma coisa, na medida em que as verdades velhas vão-se esboroando, ele precisa de novas, como todas as coisas que utiliza, ele também precisa utilizar as verdades, pra mostrar que é atualizado, e criticar os reacionários que ainda se aferram às antigas verdades. E os empresários, e os supermercados, previdentes, sempre surgem com Novidades!!!

PEDRO: Pensei que a primeira intervenção do Floriano fizesse parte do enigma… Em relação à questão da volta a um Creacionismo, acharia interessante adotar uma postura pragmática e fazer como os eumaricanos que crearam sua própria história do foguete, deixando Lavoisier e Darwin de lado por uns tempos.

DR. FLOR: As intervenções são a alma de qualquer enigma. A história é o capítulo das desavenças da memória. Lembro o chileno Vicente Huidobro ao dizer, em um de seus manifestos do Creacionismo, que a poesia obedecia a três leis severas: criar, criar e criar. Portanto, podemos criar um enigma despido das teorias de tempo e espaço, um enigma do não-acontecido e que fatalmente, caso existisse, não caberia em sítio algum.

ZUCA: Ademais, após a falta de tato e compostura do Édipo, a Esfinge abandou sua gruta, e ora propõe apenas xaradas, nas matinês do Circo Flores. Perguntei-lhe porque tanto assim se agastara. E Ela, com triste sorriso, respondeu: “Eia zuz, Zuca!… O Édipo, um campônio ignorantaço, respondeu a questão ao pé da letra…”

ANITA: Eu acho que existe tudo o que existe, o que existiu e o que existirá, em todos os universos paralelos ou transversais. E estou falando sério. Nós só percebemos uma parte, uns um pouco mais, outros um pouco menos, uns umas coisas, outros, outras. O universo e além não cabem em nenhum ser humano. Apesar de tudo, acho que todo o ethos burguês, construído no século XIX – tempo linear e progressivo, separações taxativas entre realidade e ficção, História como fato e história como invenção, razão e fé, racionalidade e irracionalidade etc. – tudo isso levou umas boas cacetadas desde a virada para o século XX e as vanguardas e Freud fizeram muito para que pudéssemos ver e sentir e pensar o invisível, o insensível, o impensável. Gosto do que amplia nosso ser. Vieram as reações, claro, mas vamos batendo de volta como dá. Gostaria, e acho isso possível, que fôssemos inteiros, integrados, razão e não-razão. Não acho o pensamento estruturado, nem sequer a lógica formal, uma invenção desprezível. Horrível é fazer dela uma tirana sem limites e negar todos os outros modos de conhecer, como a percepção; ou todos os outros modos de transformar o mundo, como os que vêm do afeto. E note-se que digo “não-razão” e não “irracionalidade”, outra criadora de monstros, como notou Goya. Ah, puxa, pausa para escutar “Volver a los diecisiete”.


A CORTINA ESBAFORIDA | Costuramos os enigmas com a tinta desfiada dos humores. No paradoxo da pele de mil demônios. Em cada vértebra do horizonte que mascamos ao dormir. E deixamos ao leitor uma caixa preta de ardis. As iluminuras do iluminismo e o mármore insatisfeito com as formas mais recentes nele encontradas. O dilema está na consciência ou no método? O leitor que trate de nos dizer, caso um dia nos encontre. [Dr. Flor]



EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

QUARTETO KOLAX é uma carroça de atores percorrendo os escombros da arte contemporânea com seu teatro automático. Seus integrantes são Anita Borgia, Dr. Flor, Pedro Kz e Zuca Sardan. As imagens que acompanham a edição, reconhecidas ou não, por efeito cênico, são estrategicamente anônimas.


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 125 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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