INTRODUÇÃO | Na verdade, trata-se de provocações
para levar Zuca Sardan, Pedro Kz e Floriano Martins a falarem sobre questões que
a prática da recensão traz à tona, especialmente, claro, as relações entre o ver
e o dizer. Responde quem quiser, um, dois ou todo mundo. Ou ninguém. Também podem
levar a provocação pelo lado que acharem melhor e até mesmo ignorar a pergunta e
formular outra. Por sugestão de Zuca, as “perguntas”
passam a se chamar “enigmas”. [Anita Borgia]
ANITA: Bem, como este número do Katalox é todo dedicado à prática
da recensão, o primeiro enigma é sobre a antiga e fértil tradição da écfrase (descrição).
Certos textos de tipo descritivo-narrativo chegaram a constituir um gênero, estabelecendo
uma relação referencial e representacional com um objeto plástico (que é proposto
como autônomo em relação ao discurso que tenta representá-lo). O bacana é que não
se trata pura e simplesmente de uma descrição “minuciosa e vívida” (como nos informam
verbetes de dicionários): Hermógenes define a écfrase como uma descrição que coloca
o objeto frente aos olhos e - aqui vem para mim a melhor parte - que tem a virtude
da energia. A écfrase é uma força, um impulso dinamizador do objeto de representação.
Acho lindo duas coisas: primeira, o reconhecimento de que objeto plástico e texto
que tenta representá-lo sejam autônomos; e segunda, que a descrição seja vista como
dinamizadora do objeto plástico (também vale vice-versa). Lendo as suas recensões,
reconheço nelas a tradição ecfrástica, mas vejo também algo de muito diferente.
Gostaria de saber como vocês definem essas recensões surrealistas e como as relacionariam
com a tradição da écfrase.
ZUCA: O Surrealismo Totêmico, que desde há mais de 40 séculos se bate contra
o Aristotelismo Acadêmico, adora desmontar o pensamento racional que s’imagina ter
a Verdade na barriga… quando a menina nascer, será bela… e… racional. Então o Surrealismo,
entre outras coisas, tem a mania de desmantelar a racionalidade, pra escândalo das
pessoas bem pensantes. Assim, a descrição diferente do objeto, desbalança os dois
e cria justamente uma nova realidade (surrealidade) do objeto e da descrição, que
a ambos dinamiza.
ANITA: Como assim, “descrição diferente do objeto”, Zuca? As descrições não
correspondem ao objeto descrito? Ou correspondem, mas em outro sentido? Ou não tem
importância? Talvez o Floriano e o Pedro ajudem também a esclarecer sua resposta.
DR. FLOR: Começando pelo próprio título de nossa mesa de inquietações, eu
penso em Katalox como a arte da não-catalogação, daí que me interesse muito
pouco por definições de qualquer ordem. A doxa ou crença comum não me interessa
tanto quanto o paradoxo. Daí até a écfrase, o que me anima, mais do que a minucia
da descrição, é a possibilidade de criar infinitas leituras de um mesmo objeto.
Neste sentido, os Retratos-relâmpagos do Murilo Mendes integram a mesma família
de As cidades invisíveis, Gog e Vidas imaginárias, respectivamente
de Italo Calvino, Giovanni Papini e Marcel Schwob, com o atrativo de não se submeterem
ao Grande Capital, sendo, ao mesmo tempo, representação tanto da realidade quanto
da imaginação. O objeto posto diante dos olhos deve deixar-se impregnar de nossa
visão, distinta em cada um de nós e a cada olhada, de modo que a minúcia interessa
como geratriz de multiplicidades. Daí que nosso Katalox jamais poderia ser
um catálogo, mas antes, parafraseando o já lembrado Calvino seria uma coleção de
areia. Jamais um acervo de peças vítreas.
ANITA:
Não tem como classificar em espécies, Floriano? Vai total antiaristóteles?
ZUCA [percebendo
que Floriano está embatucado, resolve intervir]: Pois é Ana, o Pedro sabe muito
desse assunto…
DR. FLOR: Eu não andava embatucado com nada, Zuca, e sim à espera da manifestação
do Pedro e a tua. De qualquer modo Aristóteles acabou esquecendo que a causa central
da razão é a acidental. A lógica é uma espécie de descuido da imaginação.
PEDRO: É preciso lembrar que Aristóteles não foi somente o pai da balela
iluminista classificatória, mas também o inventor do purgante catártico, sem o qual
as artes teriam sido há muito excluídas do horizonte republicano.
ANITA:
Pedro, cadê sua adivinhação do enigma 1? Não encontrei nos meus papéis.
PEDRO:
Cá está: Obrigado, feroz Esfinge, por juntar as peças desse primeiro
Enigma!
O Hermógenes merece uma coroa de louros nova em folha por mostrar que a descrição
vem investida de uma energia especial, tão bem definida no dueto gracioso “minuciosa
e vívida”. Minúcia pululante, que chega até nós numa corrente elétrica, de priscas
eras, em mosaicos, tapetes e iluminuras. Hermógenes olha para o novo recurso da
descrição visionária e entende que o orador, o poeta e o artista visual (e por que
não o músico, o ator, o dançarino e o ceramista, tão profundamente implicados nessa
mesma sensibilidade mimética…?) têm acesso a um formidável recurso de transporte
para a imaginação. Entramos no território de universos em suspensão… Mas ocorre,
entretanto, que até o maravilhoso acaba por tornar-se vazio se o poeta e o público
não injetarem um grão de fanatismo – de crença numa ideia transformadora, como a
dos grandes sobrenaturalistas… Mas o sobrenaturalismo precisa ganhar impulso por
via de um atrito íntimo com o naturalismo, o classicismo com o romantismo, este
último com o realismo, o surrealismo com o pragmatismo pequeno-burguês… E a recensão
é mais do que descrição, pois segue em frente motivada pelo impulso de inquirição,
vai caminhando e fazendo o balanço.
DR.
FLOR: Espécies visíveis e invisíveis, existentes e inexistentes, sonhadas e lembradas?
Uma vez convertidos em arte todos os animais se irmanam, Ana, todas as visões e
palpites.
ZUCA: Exatamente como na Arca de Noé… que era como uma espécie de esboço
da Liga das Nações. Não havia animais ricos e animais pobres, era um verdadeiro
socialismo materialista dialético, em que todos trabalhavam para o desenvolvimento
quinquenal das espécies. À tardinha, Noé, de bonezinho, gostava de bebericar um
conhaque e conversar com o papagaio, que lhe contava suas recordações do Jardim
do Paraíso, de que Adão foi expulso por razões que o Papagaio parabolizava… “Pois
é… o Adão perdeu a mamata por sua mania de ficar nu de repente… sem querer explicar
suas razões…”
ANITA: Então, a gente conta – com palavras – o que viu – com os olhos
do corpo, do coração, da mente – pois o que viu está oculto a quem se fala, no momento
em que se fala. Alguém não viu e a posição vital desse alguém é muito diferente
da de quem viu. Horst Bredekamp, o historiador da arte, baseia todo seu trabalho
em Teoria do acto icónico em uma afirmação de Da Vinci, na qual este último se refere
ao costume existente de cobrir as pinturas e descobri-las apenas em ocasiões festivas:
“Não me descubras, se a liberdade te é cara, porque a minha face é cárcere do amor”.
Da Vinci procurava ilustrar o arrebatamento ao que as imagens, com sua “força intrínseca”,
levam; Bredekamp acredita ser esta uma frase das mais reveladoras do poder das imagens
sobre quem as vê e a partir daí reflexiona sobre a capacidade de a matéria “morta”
“viver” nas imagens e agir como uma força independente sobre os seres humanos. Nas
recensões, segundo o que entendi, a presença da imagem se dá apenas através das
palavras. E então, já que palavra e vista seduzem de modo diferente, que diriam
sobre a passagem do “arrebatamento” visual? De que modo a matéria “morta” passa
das imagens para as palavras e age sobre os seres humanos?
ZUCA: A recensão moderna, do século XIX, decorreu da qualidade incipiente
da photographia e typographia, pelo que, para catálogos e livros baratos, era necessária
uma explicação do que representava a foto escura… Este texto explicativo era a recensão,
preparada por professores e críticos que conheciam o quadro em questão, e o descreviam,
e debitavam considerações sobre a arte do momento, e outras divagações que permitisse
o espaço de que dispunham debaixo da foto-borrão, que parecia dizer: “Não me descubras,
oh, bom rapaz, porque minha visão é cárcere do amor”, em voz roufenha a gitana nua,
s’espreguiçando no sofá de Goya…
DR. FLOR: Não é propriamente ou em isolado a palavra quem determina a
compreensão da imagem. Eu diria que antes atua a percepção, de modo que pode haver
um Katalox de imagens sonoras, por exemplo.
A única matéria morta é aquela onde não se realiza uma interação, um diálogo, uma
relação amorosa. A razão não constitui um de nossos seis sentidos, de modo que é
na percepção que fundamos a singularidade de nossa existência. A razão se distrai
com seus monstros.
PEDRO: O Horst Bredekamp parece um autor interessante… O poder das imagens
é fonte de paixões obsessivas e de empreendedorismo maníaco… Leonardo foi um inventor
de maravilhas, um planejador de dispositivos, interessado no controle dos efeitos
de arrebatamento, no jogo com a visibilidade e o desaparecimento… Vendo as coisas
a partir do outro campo: se o verbo parece ser o emissário titular do entendimento
das coisas, o texto descritivo procura emular a mímese visual e seu poder de sedução.
Nisso, a descrição descobre recursos próprios, que cativam de modo diferente o leitor…
Ao postular uma correspondência entre texto e imagem, os gêneros da ilustração e
da ecfrase estabelecem um ponto de encontro hipotético, em que tem lugar o início
de um jogo de esconde-esconde. Os ilustradores do Katalok irão fazer com que o desencontro prossiga, adiando sempre a
possibilidade de um reencontro final.
DR. FLOR: Horst poderia ilustrar o mundo com sua lupa. Assim como Leonardo
recriou o mundo com molas e dobradiças. O maior truque mimético é o da inversão
dos originais, mimese é em essência ilusão. O verdadeiro reencontro será sempre
uma sátira.
ANITA: Gostaria que comentassem o texto abaixo. É uma citação de O cavaleiro inexistente, do Ítalo Calvino.
Como sabem, a narradora é uma freira, que narra para cumprir uma penitência. Às
vezes cansa, e então narra narrando as imagens que produz – e que não vemos –, porque
com elas conta mais rápido. As imagens não só narram, mas parecem obrigar a narrativa
a ir para um lado ou para outro. Esta é uma variante, um subgênero da recensão?
Ou alguma coisa totalmente diferente?
Tudo isso que agora assinalo com
pequenas linhas onduladas é o mar, ou melhor, o oceano. Agora desenho o navio em
que Agilulfo viaja, e aqui ao lado desenho uma enorme baleia, com a tira de papel
e a legenda “Mar Oceano”. Esta flecha indica o percurso do navio. Posso também fazer
outra flecha que indique o percurso da baleia; pronto: se encontram. Assim, nesse
ponto do oceano vai acontecer o choque da baleia com o navio e, como desenhei a
baleia maior, o navio há de levar a pior. Agora desenho tantas flechas cruzadas
em todas as direções para significar que neste ponto entre a baleia e o navio decorre
uma batalha feroz. Agilulfo combate com seus pares e enterra sua lança num flanco
do cetáceo. Um jato nauseante de óleo de baleia o atinge, o que represento com estas
linhas divergentes.
ZUCA: Trata-se de
belo texto, de natureza bem recencional, mas para que seja mesmo recensional, precisaria
levar uma ilustraçâo em cima. Mas, se ilustrada, assim a posteriori, seria um caso
típico de uma recensâo retrospectiva, porque a descriçâo estaria sendo feita antes
da ilustração.
DR. FLOR: Ah aqui está ele, Calvino. E aqui está
rediviva a preocupação, da qual não participo, de nomear os vícios da linguagem.
Exceto quando quero me divertir com eles. Quando quero fazer da linguagem um bufão,
e da realidade uma pantomima. Geoffrey Chaucer e a bela Sheherazade encontraram-se
uma noite e ela se pôs a cantar para ele e seu timbre, mais do que o relato das
canções, levou o cortesão inglês por terras há muito apagadas da memória. Ao despertar
do sol Chaucer impressionou-se com o que se apressou a julgar ter sido um sonho.
O cego Borges certamente contaria essa história mudando os personagens para Boccaccio
e Cobra Grande. E o timbre da voz feminina não teria atuado com a mesma força que
seu sotaque de sílabas quebradas. Somos sempre alguém totalmente diferente do que
imaginamos ou supomos ser.
PEDRO: A monja traçou seu plano de recriação da
luta dos cavaleiros-arpoadores contra as baleias… num estilo linha clara tachista,
ligeiramente escatológico. Os sinais desenvolvem uma coreografia que parece sair
do papel… movida pela matéria ou letra morta, como o afresco descascado de Pisanello,
S. Jorge e a Princesa de Trebisonda, ou o poema filosófico de Lucrécio, De rerum
natura, que dariam bom combustivel. Nos EUA havia um crítico de cinema, Farber,
que também era pintor e transformou enredos de faroestes, filmes de gangster e do
gordo e o magro em naturezas mortas. Nas composições dele, o percurso dos objetos
corresponderia, supostamente, à linha dramática do filmes. “Uma démarche” que bem
condiz com nossa proposta de entretenimento e formação estética…
ANITA: Ih, o enigma sumiu. Mas era para comentar a pegadinha de 1,4 milhão
de libras esterlinas do Banksy. Quem quiser, pode olhar aqui: https://seuhistory.com/noticias/obra-do-artista-plastico-banksy-se-autodestroi-apos-venda-milionaria
ZUCA: Eis que, bem no estilo Bansky, o Enigma 4 desapareceu, tal as obras
de Bansky se derretem, ou explodem, durante o leilão a que estão sendo expostas.
Valeria talvez uma recensão, com um quadro em preto. Ou em branco?… Eis o Enigma.
DR. FLOR: Mas eu havia escrito algo aqui, o que houve?
PEDRO:
Esse enigma pra mim é mortal. Em matéria de autodestruição da obra e multiplicação
do ouro, eu chego, no máximo, ao Yves Klein, e assim mesmo num laivo de futilidade
retrô. Devore-me, Esfinge!
ANA: A Esfinge está
dormindo, Pedro. Como sabe, sou apenas a mensageira. Quando ela acordar eu dou
o recado e se ela estiver com fome…
DR. FLOR: Encontrei, encontrei, estava malocada sob a saia da giganta
Experidiana.
A ele eu prefiro os narradores
apócrifos, aqueles de quem nós herdamos a prosa entranhável das mitologias. Os relatos
à beira do fogo. Os contos dos grandes anônimos. Porém logo me digo que não tenho
que preferir os papiros medievais ao estêncil de Robert Banks. O que salta aos olhos,
e não falo aqui de um caso específico, é a obsessão da autoria. Mesmo quando o criador
bola um plano em torno de si para a permanência do mistério. Quando pensamos no
futuro daquilo que criamos, o que se nos impõe com mais veemência: o reconhecimento
de nosso nome pelas futuras gerações ou a perenidade da criação?
ANA: Será que alguma
dessas duas preocupações continuará existindo, Dr. Flor? E por quanto tempo?
Digo por que estou de acordo com você, no sentido da existência de uma obsessão
de autoria. Mas essa obsessão, em termos históricos, é relativamente nova e não
sei quanto mais pode resistir, considerando todas as atuais tecnologias de
reprodução. O mercado da arte, neste sentido, há de ser a força mais
conservadora, porque lhe interessa a continuidade da obsessão, já que paga-se
pela assinatura. Aliás, a ironia de todo o caso Banksy está em que o mecanismo
que ele idealizou para destruir a obra enguiçou antes de terminar e a obra foi
rebatizada e dobrou de valor com esse meio-picote. “Banksy não destruiu
uma obra de arte durante o leilão, mas criou uma”, afirmou em comunicado Alex
Branczik, chefe do departamento de arte contemporânea da Europa da Sotheby's. A
compradora, que segundo a Sotheby's é uma colecionadora europeia, disse ter
ficado ‘sentida no início’. ‘Mas pouco a pouco me dei conta de que iria possuir
um pedaço da história da arte’, explicou no comunicado” [http://horadesantacatarina.clicrbs.com.br/sc/geral/noticia/2018/10/banksy-admite-que-pretendia-total-autodestruicao-de-obra-leiloada-10623851.html]. Pronto. Que bonito. “Um pedaço da história da arte”, então tá. Nem o Branczik
nem a compradora querem perder dinheiro, né?
ZUCA:
Preferia que a Musa Bellona, da Posteridade, viesse, numa operação retrospectiva
me reconhecer agora, e não ficasse escondida atrás da lápide, porque
seu bundão avulta além da borda.
DR. FLOR: A frase, de Freud, finaliza sua tradução das aulas de Charcot,
por ele assistidas quando ainda jovem estudante em Salpêtrière. A partir dela podemos
distinguir entre arte e ciência, usando por parâmetros a mentira e o paradoxo. Como
navegar em tais águas com dois livros de bordo ostentando em cada capa Criação e Descoberta?
PEDRO: Muito bem, vamos por
partes, mas para encontrar uma saída para esse enigma, temo que seja preciso um
otimismo de gigante. Freud, como sabemos, acreditava em primeiro lugar na capacidade
humana de se auto-iludir, e talvez devamos nos aferrar a essa certeza básica. Passando
a outro ponto, quem sabe não é possível considerar novamente a hipótese da criação,
no domínio da física e da metafísica, quem sabe… A radicalidade do surgimento do
novo não poderia ser intuída pela radicalidade, talvez mais evidente, da morte,
do desaparecimento total?… Quanto ao tópico da descoberta, é preciso ponderar que
se pode passar muito tempo sem descobrir o que quer que seja. A tábua de salvação
pode ser a redescoberta, ou, como disse o filósofo, a rememoração do que já se sabia…
ZUCA:
Não se pode saber o que se sabia há milênios… e todos os sábios das diferentes correntes
esotéricas pregam o hermetismo, a rolha, não se deve contar o segredo pra ninguém,
a não ser pros discípulos… e os discípulos fazem rolha mais cerrada que a dos velhos
sábios… E a ciência racional cascateia à vontade. Conta quantas pernas tem o besouro,
a Filosofia inventa uma série de teoremas lógicos mais preciosos que o manto do
Rei Nu, os americanos filmam a lunissagem de seu foguete no quintal
da Nasa, e vendem pedrinhas da Lua numa Feira de Astronomia.
ANITA: Eu bem que comprava uma pedrinha da Lua. Mas preferia um rabo de cometa.
DR. FLOR: Sem sair da mesa de autópsia desse cadáver mutilado, começaria
pelo engano de Freud, posto que talvez haja melhor solução para a descoberta do
ser, ao invés de iludir-se a si mesmo, em sua obsessiva afirmação e permanente vigília
em todos os elementos constitutivos da existência. Resta saber se a certeza acaso
seria algo mais do que uma sofisticada forma de ilusão. Observando agora os órgãos
vitais, a ideia do novo é um truque gasto e pode ser extraída como uma vesícula,
um apêndice, sem causar maior dano ao todo. Resta saber se o homem algum dia aprenderá
a desarmar essa bomba, se aprenderá a conviver sem a fraude da novidade perene.
Por último anotemos a condição dos membros, a mecânica da memória, o movimento sistemático
das sombras, a vileza do conceito de descoberta. Evidente que por trás desse biombo,
como no caso do acaso, se encontra, esperneando, uma prosa que acredita na fixidez
das formas e na exortação capitular do tempo. Resta saber se a redescoberta convenceria
o mundo de sua existência tanto fabular quanto real.
ZUCA: Se a fixidez da forma for mostrada na televisão, todo
mundo acredita. É como a alunissagem no quintal do General Walter. Mas o homem jamais
conviverá sem o conceito da novidade. Como precisa acreditar nalguma coisa, na medida
em que as verdades velhas vão-se esboroando, ele precisa de novas, como todas as
coisas que utiliza, ele também precisa utilizar as verdades, pra mostrar que é atualizado,
e criticar os reacionários que ainda se aferram às antigas verdades. E os empresários,
e os supermercados, previdentes, sempre surgem com Novidades!!!
PEDRO: Pensei que a primeira intervenção do Floriano fizesse
parte do enigma… Em relação à questão da volta a um Creacionismo, acharia interessante
adotar uma postura pragmática e fazer como os eumaricanos que crearam sua própria
história do foguete, deixando Lavoisier e Darwin de lado por uns tempos.
DR. FLOR: As intervenções são a alma de qualquer enigma. A história é
o capítulo das desavenças da memória. Lembro o chileno Vicente Huidobro ao dizer,
em um de seus manifestos do Creacionismo, que a poesia obedecia a três leis severas:
criar, criar e criar. Portanto, podemos criar um enigma despido das teorias de tempo
e espaço, um enigma do não-acontecido e que fatalmente, caso existisse, não caberia
em sítio algum.
ZUCA: Ademais, após a falta de tato e compostura do Édipo, a Esfinge abandou
sua gruta, e ora propõe apenas xaradas, nas matinês do Circo Flores. Perguntei-lhe
porque tanto assim se agastara. E Ela, com triste sorriso, respondeu: “Eia zuz,
Zuca!… O Édipo, um campônio ignorantaço, respondeu a questão ao pé da letra…”
ANITA: Eu acho que existe tudo o que existe, o que existiu e o que existirá,
em todos os universos paralelos ou transversais. E estou falando sério. Nós só percebemos
uma parte, uns um pouco mais, outros um pouco menos, uns umas coisas, outros, outras.
O universo e além não cabem em nenhum ser humano. Apesar de tudo, acho que todo
o ethos burguês, construído no século
XIX – tempo linear e progressivo, separações taxativas entre realidade e ficção,
História como fato e história como invenção, razão e fé, racionalidade e irracionalidade
etc. – tudo isso levou umas boas cacetadas desde a virada para o século XX e as
vanguardas e Freud fizeram muito para que pudéssemos ver e sentir
e pensar o invisível, o insensível, o impensável. Gosto do que amplia nosso
ser. Vieram as reações, claro, mas vamos batendo de volta como dá. Gostaria, e acho
isso possível, que fôssemos inteiros, integrados, razão e não-razão. Não acho o
pensamento estruturado, nem sequer a lógica formal, uma invenção desprezível. Horrível
é fazer dela uma tirana sem limites e negar todos os outros modos de conhecer, como
a percepção; ou todos os outros modos de transformar o mundo, como os que vêm do
afeto. E note-se que digo “não-razão” e não “irracionalidade”, outra criadora de
monstros, como notou Goya. Ah, puxa, pausa para escutar “Volver a los diecisiete”.
A CORTINA ESBAFORIDA | Costuramos os enigmas com a tinta
desfiada dos humores. No paradoxo da pele de mil demônios. Em cada vértebra do horizonte
que mascamos ao dormir. E deixamos ao leitor uma caixa preta de ardis. As iluminuras
do iluminismo e o mármore insatisfeito com as formas mais recentes nele encontradas.
O dilema está na consciência ou no método? O leitor que trate de nos dizer, caso
um dia nos encontre. [Dr. Flor]
EDIÇÃO COMEMORATIVA
| CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
QUARTETO KOLAX é uma carroça de atores
percorrendo os escombros da arte contemporânea com seu teatro automático. Seus integrantes
são Anita Borgia, Dr. Flor, Pedro Kz e Zuca Sardan. As imagens que acompanham a
edição, reconhecidas ou não, por efeito cênico, são estrategicamente anônimas.
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 125 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS
| floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO
SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO
MARTINS
revisão de textos & difusão
| FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário