terça-feira, 1 de janeiro de 2019

ENTREVISTA CREPUSCULAR DO CIRCO CYCLAME


Antevendo o estrepitoso sucesso de público e o lacônico nariz torcido da crítica, o repórter Kazimir Pierre, da Rádio Boa Cartada, consegue a proeza de entrevistar os dois tramaturgos autores da trama satírica CIRCO CYCLAME, cuja estreia será no teatro do Cassino da Urca, dentro de algumas semanas. Floriano Martins veio de Fracaleza Drinks, cidade ancorada no píer 1957 do marco Kaatinga Dreams. Zuca Sardan, por sua vez, aporta em nossas terras saltando de um trem-fantasma que liga o Burgo de Ham ao continente brasileiro. Aqui os dois se encontram pela primeira vez, tendo sido a peça escrita a quatro mãos virtuais, em uma troca de e-mails de dois ou três meses ao final de 2015. Emocionados, ambos dão um abraço de muito prazer e sentam-se ao lado do repórter para uma boa falação.

KP | Caros Zuca e Floriano, rejubilo-me ao vê-los aqui reunidos, sob este sol inclemente da Urca, para enfrentar, galhardamente, como diria Flaubert, o escrutínio da crítica. A régua, o compasso e o esquadro estalam de admiração diante da saudável descoordenação dessa dupla, com seus diagnósticos de vibrante veracidade e vaticínios de precisão culminante. Para iniciar nossa entrevista, poderiam dizer umas palavrinhas sobre a possível influência dos respectivos pontos de partida geográficos e climáticos sobre a trama deste imbróglio circense?

FM | Não sei se o Zuca conhece Fracaleza Drinks. Eu não faço ideia de como seja o Burgo de Ham. Aqui o calor, que é infernal, é o menor de nossos males. A cidade lateja caipirismos e certamente é possível cruzar pelas ruas - caso houvesse calçadas por onde caminhar - com alguns de nossos personagens. No entanto, é um bom lugar para quem quer ser esquecido do mundo. De qualquer modo, confesso que não penso na cidade em momento algum quando crio. Sou um desses nativos orgulhosos da terra da imaginação.

ZS | Cheguei a Hamburg hypnotizado por uma visão quimérica da infância, o Kremery, um parque wagneriano na boca de Pethropolis, com um bananal florestal colossal, e garçonetes catarinenses imponentes, e gigantescas loiras da colônia teutã… todas de decotes rendados… Meu primo, um pouco mais velho, Fernandinho, alto e magricela, de pernas finíssimas, compridas, tinha um belo pônei branco; e eu, baixote e gorducho, um burrico anão. Cavalgávamos floresta afora, e íamos vendo anões, fadas, dragões e um moinho gigantesco. Nosso Imperador havia feito Petrópolis com famílias de campônios suíços, e a cidade, segundo os planos de Dom Pedro II, deveria imitar uma cidade alemã. Minha Tia Olga, chiquíssima, tinha um balcão nobre no Tetro Municipal, e nos levava pra assistir óperas de Wagner e ballets do Lago dos Cysnes e adjacências… As bailarinas, de collant branco dando pinotes, me maravilhavam… De repente estalou uma briga das bailarinas gansas brancas boazinhas com as bailarinas gansas negras malvadonas mas não menos puladoras e belíssimas… Eu torcendo pelas gansas brancas, pressionadas pelo Cisne Negro… O Cisne Branco tenta protegê-las, e o Cisne Negro dá-lhe um golpe mortal!… O Cysne Branco, caído agonizante, cercado pelas chorosas gansas brancas, e eu, no camarote, choro e me debulho em lágrimas… Quando estou no auge do desespero, Fernandinho, um perverso, me sussurra: Gordito, elas estão nuuuuassss … e gargalha em surdina, pra Tia Olga não perceber… Quando amanhece, o Zeppelin passa por cima do Pão de Açúcar e paira sobre o Cassino da Urca… Mais tarde, eu já jovem pintor, vi o filme do Gabinete do Doutor Caligari… O Doutor com aqueles problemas pra conseguir uma tenda na feira de amostras… onde anseia exibir seu Sonâmbulo que dorme num caixão… Resolvi então, morar em Hamburg.

KP | Este trajeto unindo de um lado Pethropolis e de outro a Terra do Nunca ao Cassino da Urca faz brotar do piso pétreo de um bairro marcial, diante dos nossos olhos incrédulos um geyser, ou gaizer borbulhante… um insólito fulcro de energia bélica e explosão criativa… E como estamos a poucas jardas do Templo Positivista - do incensado cenotáfio de Benjamin Constant -, torna-se absolutamente imprescindível indagar se as formas degradadas de religião, arte e ciência ainda podem de alguma forma remeter a fases ou ciclos bem demarcados de nosso ser social…

FM | Se o fizerem será sob as luzes vesgas de dois pavios circunstanciais: como peças raras em um Museu do Futuro ou mais um sambado truque do Ministério da Propaganda. Tenho para mim que as três balizas de nossa Sacra Inocência perderam o fulcro. E não há quem suporte uma baliza sem pé de apoio… O trio foi substituído no mercadão das sucatas por réplicas que desconhecem as raízes do que porventura chamas de "nosso ser social".

ZS | Eis uma pergunta atualíssima… Os kamikazes islâmicos provocam explosões pra cumprir a Profecia em sua experiência pessoal… Mas até que ponto, se não receberem após o trespasse, as Virgens prometidas pelo generoso Muezim, teria o Devoto se sacrificado em vão?… Seria um Calote Metafísico?… Um massacre desnecessário?… Mais razoável teria sido então haver ele sacrificado tão só uma ovelhinha gorda, que possibilitaria a preparação de um belo prato de cuscus… Mas o kamikazismo, independente de suas razões ostensivas, tal o sacrifício pela Pátria dos kamikazes nipões, ou em protesto a perseguições religiosas por monges budistas, é talvez movido pela volúpia da fúria exterminadora que paira sobre a Humanidade contemporânea, uma irresistível tentação sado-masoquista sempre sedenta à espera de mais uma oportunidade de se manifestar, num megaorgasmo devastador.

KP | Podemos concluir então que os antigos veios da razão e vontade de representação ocidentais são incomunicantes e sem saída no nível imanente, mas que, no nível transcendente, a hipótese de uma explosão orgiástica tangida pela lira dos 10.000 hymens aventa-se pelo oriente. Ora, se tanto a iconoclastia islâmica quanto a autossuficiência científica são figadais inimigas das velhas fábulas e suas deslumbrantes ilustrações, pergunto se a melhor estratégia de salvação possível passaria pela inflação dos pneus da vida cotidiana com os sete ventos da sabedoria, ficção, poesia, mitologia, romance (ah, sim, o bom Quasímodo), arquitetura…

FM | Mas quem acredita nesse Olimpo que eleges? O dilema maior do mundo não está na fé credenciada, mas antes na relutância em defender o padroeiro existencial de cada um, ou de cada temporada. Entregar-se a um deus qualquer é o mesmo que associar-se a um clube. Garante a espécie que se julga devota de uma razão acima de qualquer suspeita, porém não encontra argumentos para quem a dissocia de seus padroeiros de vivenda. Não, não podemos concluir nada, jamais entendi a pressa em concluir algo. O mundo não cabe no dogma finito da matéria. Acaso teríamos tornado possível o exame de DNA apenas para identificar personagens da ficção semanal? Bem sei que tua indagação infringe as normas físicas, mas entendo onde queres chegar. Os excessos religiosos são uma espécie de dádiva para os excessos políticos, na mesma proporção em que os excessos científicos alimentam a bravata dos excessos artísticos. O homem ferrou a razão, limitando-a a uma fonte de justificativa de seus erros.

ZS | Creio que sim. Nos sete Ventos, temos embrulhadas sete Musas. Faltam duas: sugiro incluirmos a Música e a Dança. Mas faltaria uma terceira, se considerarmos o romance uma faceta da ficção. Pra terceira, proponho a Cola, que nas dobras de sua clâmide, incluiria, além da Colagem Surrealista, também a Cola Criativa de Lyceo; sendo a primeira faceta mais gráfica, e a segunda mais escrita. Mas há uma terceira dobra na clâmide da Cola: é a Arte do Falso. Há falsários vulgares, meros diluidores dos originais. E há os Falsários de Gênio, que reinventam o Artista falseado. Ou seja: ao lado do falso da arte, simples falcatrua, há… a Arte do Falso.

KP | Vejo que a submissão simultânea de uma única questão a ZS e FM gera uma sutil desconexão temporal - aqui batizada de “efeito mallatesta” - que pode ser percebida em contrapposto ao campo ilusório da “autoria bicéfala”. “Ilusório”, como podem adivinhar, previne aqui possíveis críticas a “autoria bicéfala”, que suspeito não irá agradar, mesmo entre aspas. Isso me levaria a indagar sobre as posições de ambos em relação ao problema da autoria nas presentes condições de produção duchampianas, mas antes devo fazer uma autocrítica: como pondera FM é preciso a todo custo evitar ser conclusivo, deixando a tarefa ao leitor, que, se for esperto irá também passar este direito adiante. O problema é que a KP falta justamente (e cruelmente) o espírito inquisitivo que caracteriza o repórter entrevistador, sendo ele por outro lado excessivamente provido das ideias preconcebidas que os cientistas neoplatônicos identificaram em uma infeliz parcela da população. Bem, voltando à questão da autoria, o Circo Cyclame hasteou em sua entrada a bandeira divertida e assustadora de Dalí, simulacro de ego gigante, como forma de barrar em sua entrada a hegemonia esnobe e impessoal impingida pelos seguidores de Duchamp. A pergunta que segue é, pois, se o (russian) puppet show de Dalí (ou de um Fellini) não seria a contraparte cômica (e terrorífica) da oposição trágica entre razão e emoção (e a possibilidade de privação de ambas), liberdade e destino, que ainda deixa traços nos cenários de Duchamp (ou de um Antonioni). Ou seja (deixando por um momento de lado o problema da eleição dos antepassados): o aparente pluralismo do panorama hodierno se reduziria finalmente a um dualismo ou um monismo? E no “monismo” não estaria implicado um possível princípio de macaqueação?

FM | Não vejo em que a autoria bicéfala possa desagradar. Nem mesmo se acaso se tratasse da velha cobra de duas cabeças, essa de fundo de quintal que sequer devora a si mesma. Tampouco as aspas livram ninguém da forca. Não premeditamos uma afinação ao escrever a quatro mãos. Não creio que funcione assim, como se eu saísse em busca de um entendimento com o pensamento do Zuca. Alguns personagens certamente surgiram em face de naturais discordâncias. E quando nos situamos os dois como personagens, em muitas passagens invertemos a indicação de autoria dos textos, justamente para dar, ainda que ilusória, certa autonomia a cada personagem. Por mais que se esforce, a autoria não consegue ser todos os personagens, um deles sempre lhe foge do controle, assim como muitos surgem como costuras de tempo ou efeito retórico.
Agora que comentas acerca de antepassados é que me lembro que este tema jamais me passou pela cabeça. Os nomes por ti referidos são alheios ao meu universo de afinidades estéticas. Posso pensar que um Alfred Jarry esteja presente na poética de Zuca, assim como trouxe à baila um Frank Zappa que há muito me estimulava a ter uma experiência como esta. Olhando a obra de ambos, fica claro que o desafio maior do Zuca foi o de abrir espaço para o outro, enquanto que para mim a peleja mais intensa foi com o comportamento da escrita, porque eu venho da tragédia e não da sátira. Nos bastidores vejo o quanto Zuca se sentiu mais à vontade, enquanto que eu temperava a tensão do território novo com o puro prazer ante o desconhecido.

Também não penso que tenhamos reduzido o universo da criação a um único domínio. Não vejo onde caiba em nosso roteiro o conceito de monismo. E jogar o ambiente criado nas malhas de um dualismo é uma leitura talvez demasiado preguiçosa. Note que no texto são ridicularizados até mesmos os vícios e imperfeições da própria escrita. Mais do que uma leitura satírica da realidade em si, o que estamos ali desatando é uma cascata de ironias contra o indivíduo, as instituições, o picadeiro em que ambas identidades se relacionam, porém ao mesmo tempo não nos situamos como demiurgos clássicos, não damos receitas ou proclamamos uma verdade inquestionável. No vendaval do script também pusemos nossos dilemas e falhas. Como reagirá o leitor diante desse quadro é algo que sinceramente jamais me preocupou.

ZS | O Monismo, como o próprio vocábulo indica, é mesmo coisa de macaco, nosso primo Mono é um emérito imitador, e inventou o Monismo, que é uma imitação extremada. E o Homem inventou então a Kola, que, por não conseguir - ou não querer - exatamente imitar, inventa uma segunda realidade, que é a Arte. Arte é Kola, e volta à Kola. Nelson Rodrigues e Federico Fellini foram os Grandes Profetas que viveram no século passado, e predisseram o que ora nos ocorre no Novo Milênio: Nelson Rodrigues, com o Vestido de Noiva, profetizou o casamento homossexual, e Fellini com E la Nave Va… previu a Invasão dos Náufragos que se enfiam no Navio Europa, e o terrorismo oriental, com o rapazito moreno do escaler lançando a granada na chaminé do encouraçado que explode, o que dá início à Terceira Guerra Mundial. Aliás, talvez já tenha começado, mas aqui, passamos do macaco ao avestruz, enfiamos a cabeça no buraco do tatu e… fingimos que não vemos.

KP | A arena do circo continua sendo, como nos tempos antigos, um sucedâneo do altar sacrificial? O que sucedeu às plateias vorazes que encandeciam os Salões dos Recusados e a Batalha de Hernani?

ZS | Ave Caesar, morituri te salutant… Hoje César é o espectador de Tevê, sentado no sofá com uma cerveja, assistindo comprazido aos sangrentos arranca-rabos internacionais no vídeo, as sensacionais peripécias do Armagedom de São João Evangelista, com a mesma Putinha Santa da Babilônia que comanda os espetáculos de sangue e sugestivos bacanais… É a nova Gruta de Platão a domicílio. o tele-espectador é o César Tevesinus que goza num sadomasoquismo audiovisual, com apoio da Verdade pasteurizada em sutil sublimação da moral liberal racional universal. Pouco satisfeitos com tal proposta, jovens rebeldes acorrem em êxtase, aos grandes shows de Astros e Estrelas do Rock e Pop, que perfazem os rituais místico-orgiásticos da sociedade.
A Batalha de Hernani não terá lugar, e tampouco o Salão dos Recusados, face ao sucesso das galerias de Nova York, Londres, Katar, que prescrevem a moda. Os antigos recusados, dos dois séculos anteriores, são os atuais gênios dos Museus internacionais, que acolhem multidões cada vez maiores, MAS… só mostram figurões do passado, ou algum salvo-do-incêndio da atualidade.

FM | A domesticação das plateias é um fenômeno matreiro de nosso tempo, tão duramente empenhado nos princípios da customização. Evidente que mesmo a clássica arena romana já era marcada por um toma lá, dá cá que mantinha em curso reinado e submissão. Não nos iludamos em relação à plateia. Não à toa os estádios de futebol retomaram a denominação de arenas. Em igual escala também funciona as raves que são, a rigor, uma arena permitida (não permissiva) de liberação controlada de uma cólera coletiva. Tudo muito em um espírito de controle religioso, a igual modo que os cultos evangélicos. Uma vez sindicalizada a expressão social torna-se impraticável a rebeldia. Também o picadeiro circense foi higienizado, o que acabou enterrando uma tradição nômade e relegando aos confins da espécie humana a velha caravana de magia e encantamento.

KP | O circo evoca ainda a nostalgia de um sonho comum que transporta coletivamente a plateia, num pacto de adesão voluntária, o que ocorre também com um de seus sucedâneos, o cinema, como é mostrado naquela imagem sublime em que o público se deita, lado a lado, as cabecinhas afundadas num colossal travesseiro, sob um imenso edredon, com os olhos fixados no écran prateado (não estou certo se a cena está em Roma ou Amarcord de Fellini)… Mas a convenção mais fundamental do espetáculo circense talvez seja a sucessão de números ou quadros. Ora, tanto Zuca quanto Floriano são mestres insignes nas artes da digressão, da deriva e da fuga (no sentido houdinesco e bachiano), que os leva a burlar a linearidade esquemática do xôu de variedades com inserções líricas dignas de Maldoror, uma mise-en-scène invadida por trucagens barrocas e abissais, pontuações de um desencanto pós-adorniano e elucubrações estéticas na tradição de um Horácio ou pseudo-Longino, como aquela em que Euxímio fala no belo horrível!… A pavorosa atração do Abysmo…. O Palhaço Larica, por outro lado, representa os apetites contumazes da humanidade que repetitivamente impedem que ela abandone a “estaca zero”. O Circo Cyclame estaria inopinadamente revelando uma oscilação pendular entre a decadência e a barbárie, que assola a consciência ocidental?

FM | É impossível não fazê-lo. E tua referência ao Fellini me fez aqui lembrar uma frase dele, ao dizer que o visionário é o mais realista de todos os homens, porque somente ele "dará um testemunho ainda maior da realidade na medida em que seja mais fiel ao seu ponto de vista". E este é o ponto em que nos reunimos em uma mesma mesa, com Fellini, Houdini, Bach, lugares cativos para Arrabal, Jarry, Zappa e entre um vinho e outro nos lembra Ionesco "que a arte deve ser exemplar, como uma coisa que será a significação de outra". Agora, tal significação deve ser inopinada, como sugeres, porque o criador também carece de um sentido próprio, de uma verdade que a encontra apenas latente (em si, no outro), e ele quer participar do mundo não em sua definição, mas antes, no risco de sua compreensão. Ele necessita ser a significação de uma coisa em outra. Talvez por não entender isto, por exceder-se em uma obsessão de determinar e impor uma verdade, é que a consciência humana (eu já não destacaria a ocidental, como o fazes), quanto mais escava a memória de seus atos só encontra barbárie e decadência. O palhaço Larica bem sabe que não importa quantas vezes ele ateie fogo no picadeiro, dali ressurgirá sempre a mesma ave apegada a um significado que há muito - já nem se lembra quando - perdeu a sua razão de ser.

ZS | Cher Kazimir… a Natureza detesta o Vácuo… Quando a decadência aumenta… aparece a barbárie… Tal qual aconteceu com o antigo Império Romano… A História hoje se repete… O mundo do século 21 está rachando… Frau Nerkel procura nos convencer que os Bárbaros são bonzinhos… nos querem bem… só há uma meia-dúzia de alienados que soltam bombas… bancam os kamikazes… Se vocês continuarem assim, não vão ganhar garotas mil no Além!… Eles são jovens revoltados, é preciso aceitá-los, e… civilizá-los… Vamos fazer um Grande Banquete… Podem trazer seus camelos!… Masss… não comam com as mãos… Não belisquem o bumbum das gorduchas… Padre Jardel e Muezim Roruf vão se abrazzzarrr… Ecumenismo!!… Direitos Humanos!!! Democracia!!! Mercado Globallllll!!!… Russos e Norte-americanos são os dois Colossos vencedores da Segunda Guerra, e o Capital se virtualizou, e passa invisível por cima da cabeça dos proletas… Então, pra haver acesso universal às Matérias Primas, os Dois Colossos acabaram com o Colonialismo. Mas os antigos nativos colonizados não se conformam de estarem assim abandonados, eles gostam dos seus Colonizadores, que lhes mostraram as maravilhas da Civilização, que iria paulatinamente chegar às Colônias… Então os nativos agora resolveram emigrar pros países dos antigos Colonizadores. Seria o Colonialismo a Domicílio!!!… Proposta do Doutor Cascavel, rejeitada com indignação pelas Nações democráticas… que sentem vergonha de seu Passado de Impérios Coloniais… e aderiram ao Mercado Global… com acesso assim às matérias-primas, e não precisam se preocupar mais com a sorte dos nativos… Tem sempre um Presidente eleito, um Rei Boka, que pode oficialmente fechar os negócios… No Brasil, com a Independência… o Brasil se transformou num… Império!… Ou seja, era um Império, de que a colônia… era ele mesmo!… Casa-Grande e Senzala era o Colonialismo a Domicílio, que ora propõe Doutor Cascavel.

KP | Pensei em encerrarmos, se concordarem, com uma cabalística sétima pergunta… Trata-se de uma questão palpitante, no meu entender, sobre a qual haveria muito a dizer… As artes visuais parecem precisar de recorrer à literatura para obter um mínimo de status intelectual, prestígio social e legitimação cultural. A literatura, por outro lado, parece precisar da arte (da mesma forma como esta precisa da música!) como modelo de da capacidade de produzir impressões fortes e imediatas, fonte de assombro e deleite… Como escritores e criadores de imagens, de que maneira vocês reagiriam a esses condicionantes (se é que existem de fato) no processo individual de criação?


FM | Sempre achei esta uma daquelas famosas falsas questões. Como as páginas finais de A grande arte de enganar que, por serem branquinhas, embora hoje amarelecidas, há quem jure que em tinta invisível ali foram grafados os segredos da transmigração das almas. A segmentação, na criação artística, é fruto de uma estratégia de marketing. O mercadão precisa diversificar suas prateleiras de oferta, e a academia adora catalogar insetos raros. A Igreja também sempre foi do ramo, e nem só da venda de santinhos o Vaticano tornou-se a potência que é. Por mais cabotina que possa parecer a frase, a verdade é que criar não tem fronteiras. Acho que somente maus artistas se sentem intimidados por outras linguagens. A música, o teatro, a plástica, sempre fizeram parte de minha vida, portanto de minha criação poética. Aqui mesmo, no Circo Cyclame, Zuca e eu somos roteiristas, cenógrafos, compositores, maquiadores, trapezistas e ilusionistas. Creio que o fato de um pintor ocasionalmente não compor música vem simplesmente dele haver escolhido a pintura para manifestar seu espírito. Isto não o afasta da música. É infinita a lista de dublês de literatura e plástica - de George Sand a Boris Vian, de Lamartine a Ionesco, de Henry Michaux a Lucebert. Há pouco falei do Fellini que desenhava cenários e personagens de seus filmes. Chaplin era cineasta e compositor. Muitos compositores de ópera, cantata, oratório, escreveram seus próprios libretos. O guitarrista Ron Wood é um notável pintor, e a cantora Janis Joplin nos deixou belos desenhos. A Renascença foi um celeiro infindável de criadores que desconheciam os condicionantes mencionados por ti. Fez parte de minha formação desconsiderar essas limitações. Sempre tive Da Vinci, por exemplo, como uma referência maior. Agora, o cenário que pintas é uma gigantralha de mercado. Todos os criadores dignos do nome sabem que em suas partituras, telas, libretos se encontram todas as possibilidades mágicas da arte. E nenhuma delas supera as demais.

ZS | O pensamento é feito de imagens virtuais e palavras também virtuais (não pronunciadas), que por vezes se revezam e por vezes se combinam; e também por sons. Doutor Roskoff, materialista convicto, para demonstrar a falácia da crença em fantasmas que falassem, retoricamente pergunta: Como podem os fantasmas falar sem ter cordas vocais?… Ao que responde o Príncipe Cigano: Nos sonhos, todos os personagens falam, o sonhador os ouve nitidamente, e esses personagens não possuem cordas vocais. Do mesmo modo, ouvimos sons de uma sonata conhecida que imaginamos, sem que haja em torno vibrações sonoras. Ou seja, o som INDEPENDE das ondas sonoras, NÃO é formado pelas ondas sonoras, tal pensa Doutor Roskoff. Pode ser formado por ondas sonoras, MAS não necessariamente. E, se pensamos numa pessoa, podemos ver sua imagem, sobretudo o rosto, sem fechar os olhos, a imagem mental se faz sobre-e-independente da visão física, ou seja visão mental e visão física são diferentes e podem ser simultaneamente ativadas. A interação das várias sensações virtuais sonoras, verbais e visuais, e, também, das sensações e atividades virtuais com as físicas, são tão somente teoricamente separáveis, princípio racionalista que é transportado pras artes. O cinema, que se firmou como arte no início do século 20, revolucionou as artes justamente porque juntou, a partir da eclosão do cinema sonoro, todas as sensações, que tinham, nas artes tradicionais, cada uma seu campo específico e intransponível. Daí o aparecimento, no transcorrer do século 20, das assemblages, performances e outros tipos de manifestação artística, que são, curiosamente, sempre consideradas plásticas. Hoje vai-se a uma exposição de Artes Plásticas Contemporâneas e raramente se encontra um quadro… mas sim coisas que pulam pra fora da tela, que desaparece, mas o resultado segue sendo considerado pintura… E por que não escultura?… Porque os quadros podem se movimentar, produzir sons e as esculturas resistem? Porque Nicky de Saint Phalle, enquanto dava tiros nas suas telas é pintora e Tanguy é escultor? Nicky, mesmo depois que começou a fazer suas Mamies… ela PINTAVA as Mamies… Porque ela é pintora… Com a irrupção das comunicações eletrônicas, e da web, houve, no emergente século 21, uma radical mudança política, pela instantaneidade de comunicação entre indivíduos fora do controle da Autoridade… Estatal, e das autoridades morais, artísticas, religiosas… Tudo isso mudou o Mundo tão drasticamente, que o século 20 foi atirado há séculos atrás, e eu quando tento agora recordar minha longínqua mocidade, vejo-me de peruca branca de cachos de Mozart, casaco florido, chapéu de três bicos, bengala, sentado num fiacre, com um rolo de papel, escrevendo com pena de gralha estas linhas proféticas…



EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

QUARTETO KOLAX é uma carroça de atores percorrendo os escombros da arte contemporânea com seu teatro automático. Seus integrantes são Anita Borgia, Dr. Flor, Pedro Kz e Zuca Sardan. As imagens que acompanham a edição, reconhecidas ou não, por efeito cênico, são estrategicamente anônimas.


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 125 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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