domingo, 14 de julho de 2019

ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | Pietro Ferrua: anarquismo e surrealismo


Pietro Ferrua nasceu em Itália, 1930. Foi um dos fundadores em 1957 do C.I.R.A. (Centre International de Recherches sur l’Anarchisme). Dedicou-se ao ensino, passando pela Suíça, França, Brasil e Estados Unidos, onde hoje vive (Portland). Interessou-se pelo surrealismo e publicou em 1982 um estudo pioneiro, “Surréalisme et Anarchisme” (opúsculo dado a lume por Le Monde Libertaire), a partir das relações históricas que tiveram lugar entre os dois movimentos (1951-1953) no jornal Le Libertaire. O estudo foi mais tarde reeditado por André Bernard (1992, Lyon, Atelier de Création Libertaire); está hoje traduzido em muitas línguas. Em português, serviu como introdução ao volume Surrealismo e Anarquismo (São Paulo, 2001). O espólio de Ferrua – incluindo a carta de Robbe-Grillet e as de Herbert Read referidas nesta conversa – está hoje depositado na Joseph Labadie Collection aos cuidados da directora Julie Herrada da Universidade do Michigan em Ann Arbor. Nele existe uma carta de Mário Cesariny, que mais tarde daremos a lume. Esta conversa teve lugar em língua portuguesa, que Ferrua fala e escreve com boa fluência, dado ter vivido muitos anos no Brasil, onde criou uma extensão do CIRA e se ligou a Paulo Paranaguá, colaborador de Phala 1 (1967), revista do movimento surrealista publicada por Sérgio Lima.

ACF | Dedicou-se ao estudo das relações entre o anarquismo e o surrealismo e escreveu um estudo capital em 1982, que ainda hoje constitui um marco para o conhecimento das ligações dos dois movimentos. Qual foi a sua primeira paixão, o anarquismo ou o surrealismo?

PF | Tornei-me anarquista bem cedo, paradoxalmente ao ler um livro de propaganda anti-anarquista. Mas tratava-se de um anarquismo ecléctico e caótico misturado com socialismo e comunismo. Tinha desculpas: a jovem idade (12 anos), a época (segunda guerra mundial), a geografia (vivia na Itália ditatorial onde os partidos da esquerda tinham sido vedados muitos anos antes). Quando colaborei com a Resistência considerei-me comunista, como os outros. Os matizes vieram após a guerra, em 1945, quando ressurgiram as publicações do nosso movimento. Descobri o surrealismo mais tarde, nas colunas do Libertaire e nas minhas leituras de literatura francesa. Meus escritores favoritos eram então Breton, Camus e Sartre. Naquele período também me interessei no letrismo, no existencialismo, no epifanismo.

ACF | Como foi a sua relação com existencialistas e letristas?

PF | Leccionei bastante sobre Sartre e os outros existencialistas. Sobre os Letristas publiquei vários livros e muitos artigos.

ACF | E o surrealismo?

PF | Quanto ao surrealismo o contacto directo demorou alguns anos pois quando Le Libertaire começou a publicar os “Billets Surréalistes” cada semana eu encontrava-me preso (durante 15 meses) na Itália por ter recusado o serviço militar, após o que vivi clandestinamente (quase por 3 anos) antes de me refugiar na Suíça. Foi só depois de 1954, quando me estabeleci em Genebra, que comecei a corresponder-me com Jean Schuster e a subscrever as revistas da época (creio que a primeira foi Le surréalisme même). Me parece que comecei a leccionar em 1956-57. Foi na École Internationale-International School. Na Secção Francesa eu utilizava textos de autores literários como exercício de tradução, o do André Breton era o mais difícil de todos. Na secção inglesa eu tinha uma aluna, muito boa pintora, que se chamava Lilian Segall (adquiriu fama passando a assinar Lilian Lijn). Um belo dia se mandou para Paris e se apaixonou por Jean-Jacques Lebel. Tornou-se surrealista e devido à sua juventude, beleza e inteligência era adorada por todos. Falou de mim e o Breton e outros estranharam esse professor desconhecido que parecia saber tanto sobre o assunto e “ensinava” surrealismo, o que eles achavam impossível de se fazer. Um belo dia (de 1958?) recebi um telefonema dela dizendo que estava de passagem por Genebra e queria me apresentar o namorado. Passamos horas conversando, comendo e bebendo no “Estaminet de St. Germain”. Ele me disse que os surrealistas me queriam conhecer e me deixou o endereço do café onde se reuniam durante a semana. Porém, se avisasse de minha chegada, me convidariam para uma reunião mais íntima na casa do André Breton. Ainda tenho o primeiro número da revista Front unique dirigida por Lebel e publicada por Arturo Schwarz, galerista dos surrealistas na Itália e ex-trotskista convertido ao anarquismo.    
O Jean-Jacques me escreveu uma dedicatória na revista e informando-me da próxima saída do n.º 2. Infelizmente, pouco depois, me enviou um cartão anunciando-me, de coração quebrado, que a Lilian o abandonara para viver com o escultor grego Taxis, com quem mais tarde veio a casar e ter um filho. Inútil dizer que quando fui a Paris não procurei os surrealistas, que a consideravam uma traidora.

ACF | Os contactos pararam aí ou foram retomados?

PF | Retomei contacto directo com eles no decénio seguinte, limitando-me a seguir suas actividades de longe, a subscrever as publicações deles (como Bief), a leccionar sobre as suas teorias. De facto, o folheto de 1982, que você menciona, antes de ser uma palestra em francês, apresentada em Montreal na inauguração do Anarchos Institute (onde compartilhei o quarto com Murray Bookchin e encontrei pela primeira vez o Noam Chomsky, apesar de já me ter correspondido com ambos) foi objecto de uma palestra em português nos locais do Centro de Estudos professor José Oiticica (em 1965). Naqueles anos eu leccionava na Alliance Française e o surrealismo estava incluído no meu programa (como já, no ano anterior, no do Colégio Brasileiro de Almeida). Um dos meus alunos, Paulo Paranaguá, fez um filme de curta-metragem muito bom, inspirado por e dedicado ao André Breton: Nadja. Empolgado quis divulgá-lo e o estreamos num curso de cinema que teve lugar no Centro Brasileiro de Estudos Internacionais (que lancei em 1965 com alguns amigos e colegas).
Para os cursos de arte contratei, entre outros, o professor Mário Barata, especialista do surrealismo. Por coincidência naquelas alturas veio ao Rio de Janeiro o romancista e cineasta Alain Robbe-Grillet, ao qual, numa mesa redonda que teve lugar na Maison de France, perguntei se ele se opunha a uma leitura surrealista do filme Lannée dernière à Marienbad. Ele sorriu e disse estar lisonjeado pelo facto que eu tinha captado esta sensação no texto dele e/ou nas imagens de Delphine Seyrig que o Alain Resnais tinha “creado” e acrescentou que o título do filme ia ser Nadja. Antes do lançamento eles convidaram o André Breton para visionar o filme em sessão privada mas ele não entendeu ou não gostou e então o filme não saiu com uma etiqueta surrealista. (Uns dez anos depois escrevi ao Robbe-Grillet para lembrar-lhe nossa conversa no Rio a propósito de O ano passado em Marienbad e pedindo que ele ma confirmasse por escrito pois eu iria discutir o filme num curso que ia professar no Lewis and Clark College. Ainda conservo a carta dele onde a intenção surrealista dos dois autores está confirmada.

ACF | Houve novos contactos?

PF | Em 1974 passei um semestre na França e retomei contacto directo com o grupo surrealista. Convidei o poeta Jean-Louis Bédouin (um dos autores dos “Billets Surrealistes” semanais dos anos 50) para uma palestra a meus alunos sobre alguns aspectos do surrealismo. Naquela oportunidade ofereceu-me ele um de seus livros com dedicatória. Outro conferencista do grupo, que ainda se reunia depois do falecimento do Breton, foi Vincent Bonoure, hoje falecido. Retomei também contacto com Roland Breton (que fazia parte do comité de redação de Le Libertaire junto com George Fontenis que tinham substituído o cantautor George Brassens e o futuro letrista Maurice Lemaître) após uma longa ausência na Polónia, antes, e na África francófona, depois, em missão cultural. Entrementes colaborei bastante com o grupo de neo-surrealistas animado por meu velho amigo André Bernard. Expus colagens dele na Galeria de Arte da biblioteca da universidade onde eu ensinava e colaborei numa série de Potlachs (cada uma com título diferente), revista muito original lançada por ele em Paris (como anarquista ele já se tinha feito conhecer através da atitude dele face ao militarismo francês, como publicista na revista Anarchisme et non-violence, como colagista e como membro de várias exposições de grupo ou pessoais).
Convenci também o José Pierre, militante e estudioso do surrealismo encarregado de pesquisa pela Biblioteca Nacional, a reunir e publicar os “Billets surréalistes” (um velho sonho meu, que talvez nunca realizasse). Ele tinha todo o material e tempo disponível. Em poucos meses o livro ficou pronto e ele me agradeceu publicamente pelo estímulo e a colaboração. Também ajudei bastante a autora da primeira tese de doutoramento sobre o assunto específico das relações entre anarquismo e surrealismo: Carole Reynaud Paligot, Parcours politique des surréalistes, 1919-1969. Depois vieram outros e até hoje meus modestos escritos continuam gerando correspondência. Talvez devido ao facto daquele folheto de 1982 ter sido mal distribuído e que as outras edições são todas diferentes (houve três ou quatro em francês, outras tantas em português e italiano, foi traduzido para o grego, o polaco, o checo, o espanhol, o inglês e parece que noutros idiomas).

ACF | O que o atrai no surrealismo?

PF | O que me atrai no surrealismo são algumas componentes originais como a importância dada pela primeira vez às pulsões inconscientes, ao imaginário, à noção da atemporalidade. Mas minha convicção é que o anarquismo encontra-se na história das vanguardas como elemento primordial, amiúde iniciador, propulsor, inspirador. Desde o realismo de Gustave Courbet, passando pelo impressionismo e neo-impressionismo, o suprematismo até chegar ao inismo a nossa presença ideológica é um fermento sempre fecundo e criador.

ACF | No seu estudo de 1982 refere a dado passo uma carta que Herbert Read lhe escreveu a 21 de Fevereiro de 1968. Na edição posterior de André Bernard do seu estudo a carta aparece traduzida em francês. Como foram as suas relações com Herbert Read?

PF | Sempre excelentes. O primeiro contacto ocorreu na época da fundação do C.I.R.A. em Genebra (hoje localizado em Lausanne em prédio próprio) quando estabelecemos um Comité Internacional criando a categoria de Membros de Honra na base de uma lista que ia crescendo na medida em que recebíamos propostas que examinávamos em comum. Alguns eram ou tinham sido militantes do movimento, outros provinham do mundo académico. O importante não era a fama mas o conhecimento do anarquismo e de sua história. O Herbert Read tinha dirigido publicações anarquistas, escrevera vários ensaios filosóficos e históricos sobre o assunto. Houve só uma pessoa que divergiu da escolha, por ele ter aceitado que a Rainha da Inglaterra o tivesse nomeado Sir mas conseguimos convencê-la de que não deveríamos ter esse tipo de preconceito. O Read aceitou. A correspondência gerada por ambas partes ficou nos arquivos do C.I.R.A. A oportunidade seguinte de corresponder com ele foi quando, pesquisando o surrealismo e suas ramificações fora da França, interroguei o Herbert Read sobre suas actividades na Inglaterra nesse campo e ele teve a bondade de me mandar a carta que confirmava o que eu tinha escrito e que foi publicada, na íntegra, no opúsculo de 1982, mas já utilizadas antes, oralmente, em cursos e palestras no Brasil. A última vez que entrei em contacto com Herbert Read foi a pedido do editor carioca Ênio Silveira, dono da editora Civilização Brasileira, para pedir a autorização de traduzir e publicar um livro dele sobre anarquismo. A resposta foi rápida e generosa, ele só pedia uma entrada mínima destinada ao agente literário dele, que, em virtude de um contrato em vigor entre eles, cobrava uma comissão. Cedi essa correspondência ao reconstituído C.I.R.A. (Brasil) e está hoje nas mãos do Prof. Renato Ramos que prometeu digitar e compartilhar com outras bibliotecas especializadas em Anarquismo. Em suma, o Herbert Read foi sempre muito correcto e cordial cada vez que o consultei, e suas respostas foram sempre imediatas, documentadas e positivas, como é de esperar de um “gentleman”. Faleceu em Junho de 1968 e não teve tempo de ficar amargurado com a mudança dos planos editorais.

ACF | A propósito do artigo de J-C Tertrais em Le Monde Libertaire (n.º 88, Março, 1963), fala no seu estudo de 1982 da necessidade duma síntese anarco-surrealista. Existe um anarco-surrealismo? Como o delineia?

PF | Acho que existe, sim; aliás, é essa a razão mesma da colaboração dos surrealistas no [jornal] Le Libertaire. A meu ver a razão do fracasso é outra, se é que se pode falar duma derrota. A maioria dos surrealistas daquele período achava que o movimento tinha enfim chegado a conciliar as duas unidades. Depois dum breve parêntese marxista ortodoxo, eles foram atraídos pelas sereias trotskistas: dois enganos, histórico-políticos, que alguns militantes anarquistas não souberam perdoar. Como esquecer a traição da revolução dos sovietes e o massacre de Kronstadt? Com algumas excepções (Benjamin Péret, por exemplo) os surrealistas entendiam pouco a política militante do dia-a-dia. Achavam, além disso, que o surrealismo era a filosofia natural do anarquismo. Faltava-lhes uma visão pluralista. Não sabiam substituir Marx com vários nomes; bastava o nome do André Breton, novo Profeta do anarquismo. Breton não tinha culpa disso, ele era uma pessoa amável, inteligente, generosa. Mas alguns anarquistas preferiam praticar um tipo de anarquismo específico que os distinguisse de outros: anarco/tolstoiano, anarco/proudhoniano, anarco/stirneriano, anarco/comunista, anarco/colectivista, anarco/individualista ou ainda anarco/existencialista etc. Havia também quem se definisse só anarquista, achando suficiente. Essas distinções tornaram-se importantes em várias situações históricas, como na Russia Soviética. O Lenine dizia lutar contra os anarco-bandidos, mas que outros tipos de anarquismo eram bem-vindos. Houve quem acreditasse. O resultado foi que sobreviveram um pouquinho mais; Estaline proibiu todo tipo de anarquismos. Ainda hoje essa distinção se faz nos Estados Unidos onde todos os anarquistas que não jogam bombas são chamados de anarquistas-filosóficos.
Acho que sim existe ainda hoje o anarco-surrealismo. Entre outros eu escolheria o André Bernard. Falo dele sem ter a certeza se ele se define assim. Conheço-o há mais de meio século. Para começar refugiou-se na Suíça para não prestar serviço militar. Colaborou com Le Réveil Anarchiste e com o C.I.R.A.; de repente achou que não era suficiente, então voltou para a França e se constituiu. Foi preso, julgado e condenado. Fundou a revista Anarchisme et Non-violence que durou vários anos. Começou a expor em Galerias (neo) surrealistas. Escrevi sobre eles – aliás textos que permaneceram inéditos – e colaborei em várias iniciativas tomadas por ele. Agora mesmo ele está recolhendo em volumes bem ilustrados as suas obras encantadoras.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Leonor Fini (Argentina, 1907-1966)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 138 | Julho de 2019
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