Em um planeta onde ainda estava viva a
delicadeza dos dinossauros se produz o primeiro ato surrealista quando,
enfeitiçado por sua inédita consciência do mundo, um homem, em cujo peito se
aninha a chuva e o trovão, a fumaça do vulcão e a desmesura de seu desamparo
primordial, grava a imagem de um bisonte na pedra de sua caverna. Um gesto
provocado pelos mais profundos impulsos de seu sangue, a aceitação da morte e o
resplendor do sol. Anterior à história da arte, fora de toda norma herdada,
anterior a qualquer dogma ou imposições de qualquer religião. Ao fazê-lo, esse
homem penetra nos segredos e um mundo desconhecido que explora, penetra em sua
vertente mágica, dirige com seu sonho o êxito ou o fracasso de uma caçada e
assume, sem sabê-lo, todo o poder do desejo. Ao associar essa imagem com uma
energia capaz de atuar à distância sobre outro ser vivente, fez desaparecer a
fronteira entre o mundo interior e o exterior, declarou a existência desse
ponto único formulado por Breton onde a
vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o
içável, cessam de ser percebidos contraditoriamente. Para o homem indefeso
na imensidão do cosmos, em uma existência onde tem que criar tudo, essa imagem
é o foco de uma grande esperança na qual seu espírito se funde com a
consciência de sua própria divindade. Criou a magia, concebeu a analogia que
vincula todas as coisas com a lei das correspondências, que logo alimentará
durante séculos o pensamento hermético e o ocultismo. O selvagem vagar do
bisonte está agora submetido à imaginação. O homem se instalou no centro da
criação e reclama sua liberdade absoluta. Tal seria, com efeito, a raiz
antropológica do surrealismo, sua manifestação premonitória quando ainda não
tinha nome nem estava instalado como uma constelação brilhante no céu das
ideias, definido como uma revelação no Primeiro
Manifesto de 1924.
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O surrealismo não é um invento, um código, nem uma religião. Poderia, em última instância, ser uma filosofia, porém não no sentido clássico de proposições lógicas, mas sim que nasce e se concretiza através de uma ação sobre a qual se exerce depois uma análise reflexiva. Não é um movimento estético como o impressionismo ou o cubismo e, no plano literário, o simbolismo, o futurismo ou o ultraísmo, ou tantas outras escolas de vanguarda. É, definitivamente, uma concepção total do homem e de suas relações com o universo, uma empresa de conhecimento para liberar o ser, a consciência, das pressões que a dilaceram entre a razão e a intuição, a vigília e o sonho, e aceder assim a uma realidade profunda sem fraturas ou compartimentos estanques.
O surrealismo é, portanto, um elemento
consubstancial da natureza humana, como expressão do desejo de unidade e
comunicação com os seres e as coisas, uma etapa de fogo no desenrolar de sua
aventura. Ressoa na alma como o rumor do mar, o voo dos pássaros, a
desesperação do escravo na estiva do barco negreiro, porém com o furor do motim
e a esperança sem limites na redenção do homem, e na liberdade do espírito
enfrentado a uma sociedade onde todos os valores – dirigidos até os mais baixos
interesses materiais – se degradam ou se convertem em um círculo torturante.
Então se desencadeou a tormenta. Um homem
abre de par em par a janela no mais alto da torre e vê à distância como rodopiam
ao vento, com as cabeleiras desatadas, as mulheres por ele sonhadas, as
montanhas e os rios, e também como vem a seu encontro esse homem instalado na
linha do horizonte, onde se confundem a terra e o céu. Esse homem que é ele
mesmo.
Não vamos aqui nos estender sobre o
conteúdo do movimento surrealista, já definitivamente incorporado à atmosfera
intelectual de nosso tempo; seus clarões estão latentes no mais vivo da
consciência contemporânea.
O surrealismo assume as consignas de
Rimbaud de “mudar a vida” e “reinventar o amor”, porém as dilata e as estrutura
na ação com uma nova ideia do homem e de seu destino, que o levará a assumir
suas responsabilidades diante dos fatos sociais que perpetuam a injustiça e a
exploração do homem. Sua vontade de revelar o lado secreto das coisas, de
aprofundar uma síntese do sonho e da realidade sensorial, do objetivo e do
subjetivo, de liberar o espírito dos dogmas religiosos, morais, estéticos etc.,
que se apõem à sua livre expressão, seu emprego da escritura automática para
assumir no artístico o mundo do inconsciente, sua disposição para penetrar no
maravilho de nosso entorno fora da ordem estritamente utilitária com que o
estratifica a razão, e, sobretudo, por sua invocação da poesia como uma energia
capaz de transformar a miséria moral ao exigir a absoluta identidade da poesia,
da liberdade e do amor, abre uma ardente esperança de libertação. A
personalidade de arestas de diamante de André Breton foi o polo magnético deste
movimento de rasgos tão especiais na aventura do conhecimento.
Os postulados surrealistas se desenvolvem
desde o foco mais vivo de nossa natureza: o desejo. Tudo está dirigido a
liberar as imagens que o desejo envia: desejo de absoluto, desejo do amor. Tudo
aquilo cuja chegada se espera na inquietude da existência, na respiração, nas
veias, nos relampagueantes labirintos do sexo, na avidez de uma totalidade em
nossa relação com os seres e as coisas. Quanto o desejo convoca ante a
hipnotizante grandeza do mar e as confidências insones da chuva, quanto faz
nascer de realidade exterior, tal como as miragens que provoca uma cabeleira de
mulher: uma preguiçosa habitação do trópico, com um aroma de algodão, de azeite
de coco e resina, reverberação de um sonho como o que envolve Baudelaire na
cabeleira de Jeanne Duval, ou esse “fogo de bosque em chamas” que se impõe a
Breton na cabeleira de sua mulher. El surrealismo se ergue como resposta ao
trágico conflito de nossa condição, mentalmente dividida em compartimentos
estanques que a desgarram. Não se trata de um simples interesse estético pelos
conteúdos do inconsciente, mas sim da integração de todos os estados mentais em
um mesmo nível de valor expressivo para contribuir com a criação. A palavra se
enriquece, descobre seu fundo duplo, concentra em sua auréola a lucidez, a
magia e o mistério, sai da obrigatória trajetória do discurso para abrir-se
como uma estrela. Porém o surrealismo não se reduz ao automatismo, como muitos
creem. Este é somente um método de exploração que o próprio Breton considerou
insuficiente. O surrealismo é, antes de tudo, uma atitude espiritual que pode
se manifestar com as mais diversas formas, mesmo sem a menor incoerência, além
de qualquer retórica nascida de imitação dos produtos da escritura automática e
de algumas de suas formas estereotipadas.
A presente exposição de pintura[1]
é uma referência da influência que o surrealismo exerceu entre nossos artistas.
A América não podia menos do que encontrar em certos elementos do surrealismo a
ressonância de elementos próprios. Perduram nela mitos ancestrais e o sentido
da unidade entre o homem e a terra, a Pacha-Mama maternal, sempre celebrada e
em suas massas camponesas predomina um tipo de fervor animista. O surrealismo
é, de certo modo, um estado natural da América. Quando Breton chega ao Caribe
se deslumbra com a Martinica, “a encantadora de serpentes”, e depois com o
México, que chama de “país surrealista por excelência”. Na Argentina, o
surrealismo se identificou em um conjunto de artistas e escritores que aderiam
à sua mensagem e o manifestaram em suas obras. Devemos aqui especialmente
render homenagem à personalidade de Aldo Pellegrini, o grande animador de seus
ideais em nosso país, e fundação da revista Qué,
em 1928, a primeira publicação surrealista em todo o mundo de fala espanhola.
O reino sem limites da imaginação se
desdobra em todas as direções. Um vulcão que cresce incessantemente se instala
nessa geografia do desejo e do sonho, e de sua cratera, em plena erupção, surge
uma imensa nuvem de borboletas que cobre o céu.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA |
CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Leonor
Fini (Argentina, 1907-1966)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 138 | Julho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão |
FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
[1] Texto escrito para a exposição
“Surrealismo Nuevo Mundo”, Buenos Aires, 1992, sob a curadoria de Sylvia
Valdés.
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